A plenitude do tempo e a simultaneidade

Texto de Ryotan Tokuda Igarashi
Texto extraído de
www.geocities.com/~bodisatva.

Esta é a transcrição da segunda palestra do monge Tokuda sobre o pensamento comparado dos mestres Dogen e Eckart, pronunciada em Porto Alegre, outubro de 1989, como promoção do Centro de Estudos Budistas.

O que significam as expressões “plenitude do tempo” e “simultaneidade”? Inicialmente vamos ver algumas citações apresentadas por mestre Eckart com diferentes significados para a “plenitude do tempo”: São Paulo diz: “Na plenitude do tempo, Deus mandou seu Filho.” Santo Agostinho diz: “Esta plenitude do tempo consiste do seguinte: onde não existe mais tempo, isto é a plenitude do tempo.” Um outro significado da plenitude do: Se alguém tivesse habilidade e poder de ajuntar no momento presente o tempo e tudo o que aconteceu em seis mil anos ou o que acontecerá até o fim dos tempos, agora, isto é que seria a plenitude dos tempos.

Em A Palavra Secreta falei que para escutar a voz de Deus existem três tipos de obstáculos: a corporalidade, a temporariedade e a multiplicidade. Tomemos inicialmente a temporariedade. Nessa dimensão de temporariedade é que temos a vida e a morte, os pecados e todo o tipo de dificuldades. Para superar essas dificuldades todas temos então que transcender a temporariedade. A “plenitude do tempo”, como compreendida por Santo Agostinho, significa “onde não há mais tempo”, ou seja, o tempo se torna a eternidade. Isso, essa dimensão, é a simultaneidade.

Quem começou a empregar esta palavra nessa acepção foi Kierkegaard. Nesse contexto, . a expressão não significa que estão ocorrendo eventos diferentes ao mesmo tempo. Não. O sentido disso é diferente. O sentido é o da simultaneidade original, onde Jesus Cristo está com seu Pai; simultaneidade original transcendental. Sendo assim, par a superar a temporariedade é preciso que se morra enquanto existência temporal. Todos querem viver, mas é preciso morrer. De certo modo todos buscamos, o tempo todo, o caminho para chegar a esta eternidade, ao absoluto, à paz eterna. Com este objetivo nos encaminhamos ao cristianismo, ao budismo, ou a outras filosofias e religiões. Nos sentimos irresistivelmente atraídos e compelidos a encontrar esta eternidade.

“Simultaneidade” é isto, o lugar de onde viemos e para onde voltaremos. É a origem e também o destino final de nosso ser. Este é o sentido da expressão. Há ainda a simultaneidade histórica, isto é, Jesus Cristo veio a este mundo, nasceu, e com trinta e três anos foi crucificado. Ele viveu como homem na terra, sofreu como nós, mas ao mesmo tempo está transcendendo o temporal, está sempre presente.

Quem busca o encontro com Deus, a realização de si próprio, em primeiro lugar tem que ter a energia para buscar a direção da simultaneidade original, o lugar onde está Deus, imóvel, quieto: esta é a direção a percorrer. Mas, paradoxalmente, a dificuldade de chegar até lá está justamente na própria existência dessa vontade. Quando se tem essa vontade, há a idéia de que “eu estou aqui e algo absoluto está lá”. Isto é, há a dualidade, há “eu e o absoluto”. Fica tudo dual, todas as coisas ficam separadas. É preciso transcender isso, ou seja, na busca, a própria vontade é obstáculo para a realização. Mas se não há a vontade, como chegar lá? Indo, indo, indo e repentinamente reconhecendo que a vontade, ela mesma, é um obstáculo. Aí começa-se a abandonar tudo. Em vez de buscar, é então necessário esquecer, abandonar, cortar, morrer, perder. Dentro da experiência mística, esse tipo de morte não pode faltar. Chama-se “via negativa”. A via negativa é depois sucedida pela via positiva, mas primeiro sempre vem essa via negativa. O processo é doloroso mas e necessário passar por ele pois a presença do ego e sempre muito forte.

Para entrar no estado de simultaneidade é necessário transcender a temporariedade, a corporalidade e a multiplicidade. Buda ganhou a iluminação dia 8 de dezembro em Bodigaia. Sentado imóvel sob a árvore Bodi, viu as estrelas na madrugada e disse, “que maravilhoso, todos os seres viventes tem a natureza de Buda”. E completou, “juntos estão céu e terra comigo mesmo, ao mesmo tempo”. Isto é simultaneidade. Originalmente estamos iluminados junto com Buda. Quando Buda ganhou a iluminação, nós a ganhamos ao mesmo tempo. E com esta idéia, a prática de meditação, o treinamento budista, muda inteiramente.

Geralmente a pessoa pensa que se pratica o caminho para colher frutos depois, que é necessário treinar para alcançar aquele estado. Neste enfoque, treinamento e iluminação são duas coisas diferentes. O tempo também é visto dentro do sentido convencional, primeiro o treinamento, depois iluminação. Este é um obstáculo! Há no entanto a outra idéia: estamos praticando, treinando, meditando… Por quê? Porque somos iluminados originalmente, por isso estamos sentando.

Esta compreensão surgiu originalmente ao mestre Dogen. Mestre Dogen defrontou-se com uma grande dúvida: “Todos os budas dizem que somos intrinsecamente de uma natureza pura, sem qualquer mácula. Por que então treinar e realizar o caminho?” Consultou os mestres da época e nenhum soube responder, até que alguém disse, “retornou da China recentemente um mestre zen japonês. E a única pessoa que pode lhe dar a resposta”. A resposta que Dogen buscava não poderia ser verbal, mas deveria conduzir a realização, a entender mesmo, a sentir experimentando. A resposta tinha que conduzir à prática e à realização. Ele a encontrou no som dos vales e nas cores das montanhas, reconhecendo a impossibilidade de transmitir verbalmente essa experiência. Sobre isso, assim falou: “Saibam que esta realização [quanto ás cores das montanhas e ao som dos vales] é intransferível. Saibam que o Buda não pôde expor o sentido da apresentação da flor e nem Hui Neng, ficando em seu lugar, pôde alcançar a medula de Bodidarma. Mas graças às virtudes dos sons dos vales, às formas das montanhas e à terra imensa, todos os seres sensoriais realizam o caminho, ao mesmo tempo que Sakiamuni e todos os budas atingem o despertar no instante em que aparece a estrela da manhã. “

“Os seres sensoriais realizam o caminho ao mesmo tempo que Sakiamuni”, diz mestre Dogen. Quando o Buda Sakiamuni viu aquela estrela da madrugada, ganhou a iluminação. Ao mesmo tempo, todos os seres sensoriais realizaram o caminho perfeitamente. Ou seja, nada falta, apenas não percebemos isto. As cores das montanhas estão presentes, assim como os sons dos vales, como o sermão de Buda, como o corpo de Buda. Isso nunca esteve oculto, a dificuldade é nossa. Temos visão cármica, limitada, condicionada e por isso não vemos; eis aí o sentido do treinamento e da purificação.

Qual é, no entanto, a razão da prática, se estamos já iluminados? É que sentando, já iluminado, cada um se encontra consigo mesmo. O momento da prática do zazen é então a própria realização. Mestre Eckart disse, “A alma é criada como se estivesse num ponto entre o tempo e a eternidade, tocando a ambos. Com os poderes mais elevados ela toca a eternidade, mas com os poderes mais baixos ela toca o tempo. Assim, observem, ela funciona no tempo não de acordo com o tempo, mas de acordo com a eternidade.” Isto é simultaneidade. O mundo é visto como fumaça, sombra, relâmpago, algo transitório.

Mas, e se você encontrar esta simultaneidade, onde Deus sempre está presente? Então, é preciso compreender que apesar de Jesus Cristo ter nascido em Nazaré, vivido e morrido aos 33 anos, nós estamos em Porto Alegre, etc. Enquanto um lado toca o tempo, no mesmo instante o outro lado está tocando a eternidade. Então percebemos nosso sofrimento, nossas dores, e compreendemos que um dia morreremos. Mas ao mesmo tempo em que compreendemos isto, ao mesmo tempo em que compreendemos este aspecto temporal da existência, percebemos que vivemos na eternidade. Neste caso, nascimento-e-morte perdem seu sentido anterior. Houve o encontro com Deus, a realização. Isto é ao mesmo tempo budismo e cristianismo, assim é que vejo.

Não estou falando em cristianismo e budismo para comparar estas duas religióes; tampouco para comparar mestre Eckart e Dogenzenji. Claro, comparando podemos conhecer melhor a nós mesmos. Ainda assim, o sentido que me move a estudar mestre Eckart e Dogenzenji não é o de comparação. Através dessas duas figuras tento entender o que é o ser humano, e, afinal de contas, o que é Deus e o que é Buda, qual a origem do nosso ser; esta é a razão do meu estudo. Quando encontramos Buda-Deus, encontramos a paz eterna, apesar de estarmos sujeitos a surgimento e desaparecimento.

Segue mestre Eckart: “Você sabe dizer me por que Deus é Deus? Ele é Deus porque é sem criatura não nomeou-se no tempo. No tempo estão todas as criaturas, o pecado e a morte, e estes são, em certo sentido, parecidos. Tão pronto a alma sai do tempo, ali não existem dor e lamentação, até mesmo o desespero ela transforma então em alegria.” mestre Eckart está falando sobre o estado de nirvana. Aí não existem mais pecados, dores; mesmo o desespero se transforma em alegria. Desespero e dor existem mas não atingem esse estado, por isso chama-se de nirvana. Existem dois tipos de nirvana. Enquanto estamos vivos há o corpo, e por isso a doença, envelhecimento e morte. Isso ninguém pode evitar. Mas, morrendo, entra-se em parinirvana, o nirvana perfeito; este é o estado de simultaneidade. Simultaneidade e nirvana são a mesma coisa, são sinônimos, apenas as expressões são diferentes, como “cristão e budista”.

Mestre Eckart diz: “Ele deve dar tudo ou nada. Seu soar é simples, completamente simples e perfeito, sem divisões. E não se dá no tempo, mas na eternidade. Estejam certos disto, assim como eu vivo. Se é que vamos perceber esta forma dele, devemos nos elevar até a eternidade, além do tempo. Na eternidade todas as coisas estão presentes.”

Todas as coisas estão presentes, nada falta.

Mestre Dogen disse: “Zazen é como um caramanchão no topo de um mirante.” Você está lá sentado e vê todas as coisas, tem aquela visão panorâmica. Estamos agora montando o Mosteiro de Ouro Preto, no morro de São Sebastião, o morro mais alto da cidade. De lá vemos a cidade. Vemos os carros, ônibus e motos entrando, passando e saindo. Ali pode-se ver passado, presente e futuro ao mesmo tempo. Isto mestre Dogen diz, “entrando nas montanhas, subindo montanhas, descendo montanhas… chega-se ao pico”. De lá você tem a visão panorâmica, muitas montanhas, muitos picos. É lindo! Vi a montanha de baixo, subi na montanha e estive em seu pico e agora estou aqui. Isto é passado, presente e futuro e está tudo aqui no presente. Isto chama-se “agora”, “absoluto”, “presente”. Aí não há mais tempo. Entrando nesse estado, presente, passado e futuro estão todos aí.

Tive uma vez uma experiência um pouco esquisita. Meditando, pensei em cortar o tempo. Um ano em doze meses, um mês em 30 dias, um dia em 24 horas, uma hora em 60 minutos, um minuto em 60 segundos, e aí um segundo. Um segundo eu visualizei como uma unidade e comecei a cortá-lo, inicialmente pela metade, 1/2 segundo, e depois a metade da metade e assim por diante, até que restou algo bem pequenino como o intervalo de tempo, e não era mais possível cortar. Aí então eu usei meu “aparelho cerebral” e tomei essa porção como nova unidade e comecei a cortar, cortar… e com grande atenção, como se estivesse sentado sobre um galho seco sobre um rio e qualquer movimento pudesse me derrubar. Assim, prossegui cortando, cortando… Enquanto havia o tempo, podia cortá-lo, não é? Não sei durante quanto tempo isso se deu, repentinamente meu corpo mergulhou dentro desse instante, no momento. Esse instante tornou-se tanto o passado como o futuro.

Esta é uma experiência muito estranha, o passado infinito funde-se com o futuro infinito e ao mesmo tempo é o presente agora! Isso não tem explicação, vejo assim! Com essa experiência eu posso dizer, o passado já passou, você não pode pegar; o futuro não veio ainda, e agora mesmo podemos pegá-lo, ou não? Quando dizemos “ah, peguei”, já passou… Como pegar o tempo? A única maneira é mergulhar dentro do tempo, onde não há mais tempo. Isto é prender o tempo, quando não há mais tempo, a eternidade. Com o espaço pode acontecer isto também. Não há mais espaço, não há mais dimensão.

Quando criança, mestre Gensha era pescador, e ajudava seu pai no mar. Numa ocasião, foram pescar à noite. Durante a noite, às vezes, a pescaria é muito boa. Lá estavam quando, não sei por que, de repente seu pai caiu no mar, e ele imediatamente estendeu o remo em sua direção. Neste momento a luz da lua refletiu-se nas ondas e ele ficou paralisado, não mais movendo-se para salvar seu pai, abandonando-o a sua sorte. O pai chamou “oh, filho, o que você está fazendo?!” Ele então virou-se, e foi embora com o barco, enquanto seu pai, exausto, afundava no mar.

Voltando à praia, deixou o mar, abandonou a pesca, e imediatamente buscou as montanhas procurando um mosteiro, onde tornou-se monge. Seu treinamento foi diferente do de outros monges, foi muito duro. Passou um ano, outro e mais outro com o mestre Sepu, um grande mestre. Mesmo assim não conseguiu realizar a compreensão, sofrendo muito sempre. Sentia que não conseguia avançar. Um dia pensou, “tenho um carma muito pesado, talvez não tenha condição de realizar a iluminação apenas com o auxílio desse mestre. Gostaria de fazer uma viagem, uma peregrinação, visitando outros mosteiros e conhecendo outros mestres”. E tratou de obter licença para a viagem.

Liberado por seu mestre, descendo a montanha do mosteiro, no meio do caminho bateu o pé numa pedra, quebrou a unha, sangrou muito e teve de suportar muita dor. Em meio ao seu grito de dor, nesse exato momento, lembrou-se do sutra e perguntou, “de onde vem esta dor?” Mas não era verdadeiramente uma pergunta, e sim a realização dele, a sua própria iluminação. Com a dor, ele gritou “ai! ai!”; neste momento não tinha mais o seu corpo, o universo inteiro era dor. Já que o corpo inteiro, o universo inteiro era dor, de onde poderia vir essa dor? O sentido da pergunta era este.

Imediatamente ele voltou ao mosteiro de onde acabara de sair. Vendo isso, o mestre disse, “você começou sua peregrinação apenas para quebrar seus pés?” Ele respondeu “mestre, não brinque mais comigo…” E o mestre: “Tudo bem, mas por que você não retoma a peregrinação?” Gensha respondeu: “Bodidarma não veio à China, o segundo patriarca não foi à Índia.” Isto na verdade é um koan. Bodidarma foi da Índia para a China para transmitir o Darma correto. Ele foi o primeiro patriarca da China, isto todos sabem e pertence à história. Mas Gensha disse: “Bodidarma não veio à China e o segundo patriarca não foi à Índia.” E, historicamente, não foi. Aqui, a expressão “Bodidarma não veio e o segundo patriarca não foi à India” é uma afirmação que não se refere a ir e vir, mas ao não haver mais no mundo ocidente e oriente, Índia, China. Isto havia passado. Ele experimentava um mundo uno. Este é o sentido desse diálogo.

Mestre Eckart diz, “Ali, o que está a mil quilômetros de distância está tão próximo a mim como o lugar onde estou agora. Existe plenitude e gozo na divindade, existe uma só unidade. Ah, que nobre é aquele poder que transcende o tempo e transcende o lugar, pois que está acima do tempo e tanto contém todo o tempo como é todo o tempo. E, por menos que o homem possa ter este poder que transcende o tempo, ele é rico de fato com isto, pois aquilo que está além do mar mais distante não está mais longe deste poder do que aquilo que está presente aqui e agora. Portanto, são tais os que o Pai procura. “

Para este poder do intelecto nada é distante ou externo. O que está mais além do mar ou a mil quilômetros de distância é tão verdadeiramente conhecido e presente quanto este lugar onde estou neste momento. Este poder apanha Deus nu em seu ser essencial. Ele é uno na unidade, não-semelhante na semelhança. Com esta experiência, ele entra na dimensão de simultaneidade, está tudo presente, em unidade. Mestre Gensha disse: “eu e Buda Sakiamuni somos colegas”. Ao que um monge retrucou, “estranho, com quem você aprendeu?”. E o mestre Gensha respondeu: “Jassapru”, nome do pescador menino antes de tornar-se monge. Este foi o segundo koan.

“Eu e Buda Sakiamuni somos colegas”. Estranho, mas também acontece. Na Bíblia também encontramos frases assim. Jesus Cristo disse uma vez: “estou aqui antes de Abraão e Davi”. Estranho, não? Abraão e Davi aparecem já no Velho Testamento, e Jesus Cristo no Novo Testamento. Como poderia ele fazer tal afirmação tantos anos depois? O tempo está então invertido aqui! Por quê? Jesus Cristo é o único Filho de Deus. Quando Deus estava criando, Jesus Cristo estava lá, vendo. Assim, isso não é nada estranho. O tempo para nós existe aqui, mas em algum momento o tempo desaparece, e surge a eternidade. Temos que viver este mundo com o tempo e além do tempo. Você realiza a si próprio encontrando-se com Deus e trabalhando para os outros.

Em João 15.15, diz Jesus: “Tudo o que ouvi de meu Pai eu vos disse; eu não vos chamei de servos, mas de amigos. O servo não conhece a vontade de seu mestre, mas o amigo sabe tudo que sabe o seu amigo. Tudo aquilo que ouvi de meu Pai transmiti a vocês, e tudo o que meu Pai sabe eu também sei, e tudo aquilo que eu sei vocês sabem, pois eu e meu Pai temos um só espírito”: São Paulo disse: “Se você for criado com o Cristo, então procure o que está acima, onde o Cristo está sentado ao lado direito de sen Pai, e que não provém das coisas que estão na terra. Vocês morrerão e suas vidas estão ocultas com o Cristo em Deus, no céu. “

Simultaneidade é isto. Ao entrar na simultaneidade, Buda, assim como Jesus Cristo, são seus amigos, seus colegas, seus contemporâneos. Aqui não há o tempo, nem antes e nem depois, você vive no mesmo mundo, você vê com os mesmos olhos e escuta com os mesmos ouvidos dos budas e de Jesus Cristo, e tudo está realizado neste momento. Buda disse, “para entender a natureza de Buda, você tem que entender o tempo, mas estudando você chega aí”. Mestre Dogen interpreta isto assim: “O tempo vai chegar e você entenderá, mas na verdade o tempo já chegou, já está aqui”. Quando se fala “o tempo vai chegar”, mesmo treinando com mestres competentes, a realização nunca chega. Deixando o tempo, meditando e treinando, o tempo já chegou. Já está realizado neste momento. Mas não esperando o tempo chegar e amadurecer. Enquanto você esta sentado, você já está realizado. É difícil sentir isso com o consciente, mas é verdade. Por isso, independentemente de ganhar a iluminação ou não, treine, pratique. A prática já é a iluminação. Mestre Dogen disse: “chegando ao último ponto, não pare, continue!”

Diz mestre Eckart: “Uma mulher perguntou a Nosso Senhor como deveríamos rezar, e Nosso Senhor disse: ‘Virá o tempo, e já chegou de fato, quando os verdadeiros veneradores vão venerar em espírito e em verdade, pois que Deus é um espírito; portanto, você deve rezar em espírito e em verdade.'” Anotem bem o que é dito, a hora virá e é agora. Aquele que veneraria o Pai, deve conduzir a eternidade em seus desejos e esperanças. Existe um ponto mais elevado da alma, que está além do tempo e nada sabe do tempo ou do corpo. Ele fala aqui da promessa ou juramento do Pai. Essa promessa também foi dada a nós, para que fôssemos batizados no Espírito Santo e recebêssemos o presente dele, morando além do tempo, na eternidade. No tempo , o Espírito Santo não pode ser dado e nem recebido.

Dentro de treinamento zen, quando chega o momento, se recebe a transmissão do Darma. Esse documento chama-se “Shiho”. É um documento que demonstra sua árvore da linhagem de transmissão. Está escrito em seda pura, com a marca de uma flor de ameixeira. É raro esse documento. Aí encontra-se o nome de Buda e uma sucessão de nomes de budas e patriarcas até seu mestre. A linhagem dos budas e patriarcas começa com Shakamunibutsu Daiosho, após Makakasho Daiosho, Ananda Daiosho, etc., até Bodaidaruma Daiosho, seguindo ainda até o sexto patriarca. Depois prossegue, passando de nome em nome até o mestre atual e chega a uma linha final com o nome do novo Buda, o próprio nome do monge que recebe o documento. Após esse nome, há uma linha que conduz novamente de volta ao Buda Sakiamuni. Isto significa que nesse momento tudo fica uma coisa só; apesar de haver tantos patriarcas diferentes, na verdade todos são o mesmo. Isso é a transmissão.

Os budas, patriarcas e grandes mestres, todos treinaram e transmitiram este Darma até a mim. Eu estou treinando; se isto for interrompido, essa transmissão não irá adiante para as próximas gerações, terminará em mim mesmo. Isso significa que todos os treinamentos dos que me antecederam acabam comigo. Minha responsabilidade é muito grande; esta é a única diferença entre monges e leigos. Os leigos podem aprender, alcançar, ter a iluminação da mesma forma que os monges, mas a especialidade do monge é a responsabilidade em transmitir adiante esses ensinamentos. Agora o budismo está chegando ao ocidente ocidente e também ao Brasil. Isto significa que também depende de mim e de meu treinamento a realização continuada de todos aqueles mestres, patriarcas e budas. Quando temos esta consciência, o treinamento do dia-a-dia não pode ser abandonado. Não é muita coisa, não, é simplesmente manter continuamente o treinamento de modo igual. Isto é importante. As dificuldades aparecem, os obstáculos. Estes momentos, ao transcender as dificuldades, tornarn-se momentos de iluminação, de realização. Dentro da tradição budista, temos sete budas do passado até Sakiamuni Buda, que são: Bibashibutsu Daiosho, Shikibutsu Daiosho, Bishafubutsu Daiosho, Kurusonbutsu Daiosho, Kunagonmunibutsu Daiosho, Kashobutsu Daiosho e Shakamunibutsu Daiosho, o Buda Sakiamuni. E Ananda perguntou, “esses sete budas do passado aprenderam com quem?”, Buda Sakiamuni disse, “eu sou o mestre deles”. Aqui também o tempo está invertido, os budas do passado, os que vieram antes de Buda, aprenderam com o novo Buda! Como pode ser isso?

Uma coisa semelhante pode ser encontrada dentro da Bíblia. Quando Jesus Cristo chegou para ser batizado por João Batista, este disse, “não, eu não mereço isso!” E Cristo: “Eu compreendo, mas dá-me o batismo neste momento”. São João então falou, “vou dar o batismo com água, mas esta pessoa a quem batizo é que poderá batizar com o Espírito Santo”. Quando Cristo foi batizado o céu abriu-se e apareceu um pombo branco. São João então disse, “Eu não mereço nem mesmo lavar os seus pés, mas neste momento eu o batizo”. Assim são as relações mestre-discípulo. Quando torna-se “um”, o discípulo tem que ter capacidade de dar ensinamento para seu próprio mestre! Não fosse assim, essa força desapareceria.

Na tradição zen diz-se que, se o discípulo tem uma força igual a do mestre, se ambos têm igual altura de ombros, então a força fica dividida por dois. O discípulo tem que subir e apoiar seus pés sobre os ombros de seu mestre. Tem que ser maior e melhor do que seu próprio mestre. Com isto ele consegue transmitir por inteiro a força completa de seu mestre, sem nada perder. Dentro do zen, essa transmissão é algo que preocupa muito. Passar de uma pessoa para outra é difícil. Neste momento, o oriente está querendo transmitir para o ocidente. Aí dá-se um grande choque cultural. A linguagem é diferente, os costumes, a religião, a comida, tudo é diferente. Mas mesmo assim, confiando na natureza de Buda e na alma pura, há essa possibilidade de transmitir. Isto porque, apesar de tudo, não há ocidente nem oriente para a natureza de Buda.

Santo Agostinho encontrou duas grandes linhas de filosofia antiga, a filosofia grega e a hebraica, e ocorreu então um grande evento para os seres humanos e para a fé em Cristo: a sua obra teológica. O encontro do ocidente com o oriente já está acontecendo intensamente. Há grande intercâmbio entre padres católicos e monges zen. Em 1986, na cidade de Assis, na Itália, houve um encontro de todas as religiões, em todas suas variadas origens geográficas. Estiveram lá budistas, cristãos, africanos, índios, muçulmanos, judeus, hinduístas, etc., reunidos e falando sobre paz internacional. Isso revela este crescente espírito de intercâmbio e paz.

Há um capítulo do Shobogenzo de mestre Dogen chamado “A Lua”. A lua tem quatro fases, a nova, a crescente, a cheia e a minguante. Todos pensam que quando a lua é cheia, está realizada, despertando aquela vontade de buscar o caminho supremo, depois o treinamento, a iluminação e nirvana. Mas mestre Dogen diz, quando a lua é crescente, mesmo aí já há a realização completa, não é necessário nem mesmo chegar à lua cheia. Com a lua minguante é a mesma coisa. Falta um pequeno pedaço, mas exatamente assim ela está perfeita e realizada. Essas afirmações nos aliviam muito, pois temos muitos defeitos e dificuldades. Porém com isto já há realização completa, por que preocupar-se? A única preocupação é praticar, seguir. Algumas pessoas já estão satisfeitas, nem mesmo precisam chegar à lua cheia. Alguns já realizaram, assim não precisam se preocupar se a lua está ou não cheia, ou se está começando a lua minguante. Nossa vida é assim, muitos querem aprender sempre mais; é bom, mas na verdade a realização já está pronta.

É importante compreender que o primeiro passo no budismo é estar satisfeito com o que você tem agora. Ter poucos desejos, poucas ambições, e estar satisfeito. Quando você chega a este estado, você está já realizado, é lua cheia. Não precisa ter tudo. Uma pessoa que já realizou a sua vida não precisa de muito luxo, jóias, muitos carros. Simplificar a vida, a comida, a maneira de viver é bom. E com isso vem a felicidade, a ausência das preocupações bancárias… Neste sentido, mestre Eckart fala do sol pela madrugada, das 10 horas da manhã, do meio-dia, da tarde e da noite. Com o sol subindo o dia se aquece, mas depois começa a diminuir. A luz da manhã é a luz da natureza, a luz do meio-dia é a luz dos anjos, a luz da tarde é como a luz divina e, durante a noite, é a luz de Deus. A noite não tem luz, mas é a luz máxima. A luz começa aquecendo pela manhã, passando para o meio-dia o calor que vai se acumulando até a tarde. Ou seja, em cada um dos aspectos todos os outros estão presentes ao mesmo tempo. Quando desperta a vontade de buscar o Caminho supremo, já está realizado. Isso não quer dizer que deve-se interromper o treinamento aí, só despertar a vontade não basta. É preciso treinar.

Treinar constantemente alimenta a vontade. A busca da mente Bodi é como olho de peixe, não é diamante, apodrece se não cuidar. É preciso apenas continuar constantemente. Chegando-se à iluminação pode-se pensar, “ah, cheguei, vou parar com isto”. Não, treinamento é iluminação, e iluminação é treinamento. Por isso Buda passou por seis anos de treinamento. Bodidarma foi à China e sentou nove anos antes de pregar. Esses nove anos não foram para obter a iluminação, ele já estava iluminado, foi apenas a continuidade do sentar. Ninguém pode mais parar. Dentro do zazen, com as pernas cruzadas, cruzam-se tempo e eternidade. Apesar de vivermos neste mundo mortal, quando você senta, está no estado de simultaneidade, junto com todos os budas do passado, presente e futuro!



Print Friendly, PDF & Email

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *