A vida de Buda, vida de todas as pessoas

Esta é a história de um monge. Ela conta por que ele se tomou monge, relata os sofrimentos por que ele passou e fala da sua iluminação. Embora esse monge tenha vivido há 2.500 anos, esta história não é meramente uma história. Se assim fosse, ela não teria importância para os que são apanhados pela mais vital das questões.

Deixem-me antes contar a história e, depois, ver como posso demonstrar que ela vai muito além do mero conto a respeito de um homem que morreu há muito tempo.

Há 2.500 anos, nasceu uma criança, o filho de um rei da Índia. Quando ele nasceu, os sábios predisseram que, ao crescer, ele seria um rei ou um monge. O pai, não querendo que o filho tivesse de suportar as dificuldades de uma vida ascética, e também desejando a continuação de sua linhagem, protegeu a criança dos problemas da existência e ofereceu-lhe toda a segurança e os prazeres que o dinheiro podia comprar.

A criança, chamada Siddhartha Gautama, cresceu e tornou-se um homem completo, competente nas artes e nas ciências do seu tempo. Na devida época, casou-se e teve um filho. Contudo, ele estava inquieto, sentia-se preso aos prazeres que o pai lhe proporciona e desejava conhecer mais da vida do que aquilo que se encerrava entre os muros dos palácios em que vivia. Ele chamou seu cocheiro, foi para o mundo turbulento dos homens comuns e, nesse mundo, encontrou um homem doente, um homem velho e um homem morto.

Ele ficou confuso com os encontros e pediu ao cocheiro que lhe explicasse o seu significado. Ficou sabendo que aquilo era o destino de todos e que ninguém escapava a três ocorrências: doença, velhice e morte. Sua mente mergulhou num turbilhão, mas, embora estivesse confuso e perdido, ele ainda teria mais um encontro – dessa vez, com um monge. Inspirado pela profunda serenidade e paz de espirito que impregnavam esse homem, Gautama fez o voto de tornar-se, também ele, um monge.

Uma noite, despediu-se da esposa e do filho enquanto dormiam; foi embora para uma floresta para tomar-se um asceta errante e cortou o cabelo para simbolizar o rompimento com todos os laços mundanos. Estudou com os sábios da floresta, mas, depois de aprender tudo o que eles tinham para oferecer, ainda sentia-se insatisfeito e inquieto. Ele viajou, encontrou alguns ascetas, juntou-se a eles e pós em prática todas as provações ascéticas. Fez jejum e infligiu a si mesmo vários tipos de tormentos. No final, quando estava se aproximando da morte, lembrou-se de um tempo em que observava o pai e os trabalhadores enquanto aravam. Naquele momento, ele se tomara um com toda a dor e o sofrimento do mundo. Lembrando-se dessa experiência e de como ela parecia ter-lhe aberto a porta para uma profunda consciência da unidade, ele resolveu abrir mão da prática ascética, que podia levar apenas à morte, e procuras despertar novamente para essa Unidade.

Nesse exato momento, estava passando uma pastora, Nandabala, que, ao ver Gautama fraco por falta de alimento, ofereceu-lhe um pouco de leite de cabra para beber. Recuperado, Siddharta então continuou em busca de um lugar adequado para meditar. Encontrou a árvore Bo. Sotthiya, um jardineiro que estava passando, deu-me um pouco de grama para servir de assento. Gautama aceitou a grama e espalhou-a ao pé da árvore. Depois, sentando-se, fez o seguinte voto: “Mesmo que minha carne definhe e fique pendurada nos ossos, mesmo que meus ossos sejam esmagados, mesmo que o meu sangue seque e transforme-se em poeira, não sairei deste lugar enquanto não atingir a completa iluminação.” Então, durante toda alonga noite, ele foi tentado por Maca. Quando amanheceu, olhou para a estrela-d’alva; de repente, despertou completamente e gritou: “Maravilha das maravilhas, todos os seres são dotados da natureza de Buda.”

Como devemos interpretar essa história? Como um relato histórico ou biográfico da vida de um monge? Ou será que ela tem algum outro valor? Siddhartha Gautama, que se tomou Shakyainuni Buda, foi sem dúvida um homem admirável. Sozinho, ele provocou um grande renascimento espiritual que acabou transformando partes da Índia, Tibete, China, Sudeste da Ásia, Coréia, Japão – e agora, quem sabe, talvez também a América do Norte. Mesmo depois de 2.500 anos, seus ensinamentos ainda são vitais, e, do ponto de vista de muitas pessoas, o único modo válido para encontrarmos um caminho através do nosso estupor tecnológico para encontrar integridade e significado. A história da vida de tão grande homem seria interessante, repleta de momentos teatrais e talvez até mesmo inspiradora. Ela seria um bom tema de pesquisa e estudo. Porém, no final, se isso é mesmo tudo – a história de um grande homem -, será que ela não teria um valor muito limitado?

O grande e fundamental ensinamento do budismo é que tudo é Uno – não há o Outro. A Unidade é o objetivo, o meio e a conseqüência. Na Unidade, iniciamos a jornada, na Unidade continuamos e na Unidade terminamos. Mesmo sem nos dividir-nos, mesmo que fiquemos eternamente em nossos lares, ainda assim somos cativados pelas ilusões que surgem das ondas mentais, e, nesse estado, nossa Unidade é aparentemente fragmentada, assim como o reflexo da lua fica esparramado na superfície de um lago agitado pelo vento.

As últimas palavras de Buda aos seus discípulos mais próximos foram as seguintes:
“Sejam ilhas em si mesmos, sejam um refúgio para si mesmos, não tomem para si mesmos nenhum outro refúgio. Vejam a verdade como uma ilha, vejam a verdade como um refúgio. Não procurem refúgio em ninguém a não ser em si próprios.”

Tornando-se um refúgio para si mesmo, não procurando a verdade do lado de fora e abandonando a miragem do Outro, os ventos deixam de soprar, a integridade fica aparente, e a fragmentação – vista como uma ilusão. Por si só, a simples história da vida de um grande homem não tem muito valor. Na verdade, por maior que Seja a sua verdade e por mais sábios que sejam os seus ensinamentos, se ele é exaltado e adorado, isso é capaz de tomar-se por si só a maior e mais impenetrável barreira que bloqueia para sempre a liberdade que ele tanto lutou para tornar conhecida de todos nós. Procurar “imitar” Buda, procurar ser “como” Buda seria como cortar os pés enquanto estamos aprendendo a andar ou como vendar os olhos enquanto estamos tentando ver. Colocar Buda num pedestal, vê-lo como especial entre os homens, incomparável, distante, pertencente a outro mundo, é abrir uma fenda profunda no próprio chão em que nos assentamos. A religião é considerada por muitas pessoas como um porto ou refúgio para protegê-las das intempéries da existência. Uma linda cantata de Bach diz, triunfalmente: “Uma poderosa fortaleza é o nosso Deus.” Mas esse não é o caminho do Zen. Todo porto acaba tomando-se água estagnada; toda fortaleza, uma prisão.

Com isso em mente, podemos perguntar, qual é, então, o valor dessa vida de Shakvamuni? Como dizia o mestre Zen Mumon: “Você que compreende a iluminação pode dizer: ‘se o venerável Shakvamuni e o grande Bodhidharma aparecessem, eu os afastaria instantaneamente, perguntando, ‘Por que vocês hesitam? Já não são mais necessários’.” Com esse objetivo em vista, por que nos preocupamos com essa história?

É porque a vida de Gautama é a vida de todos os homens, a sua e a minha, homem ou mulher. Nisso reside a grande inspiração.

Há 2.500 anos, nasceu uma criança, o filho de um rei na índia.

Tanto o Sutra do Lôtus do budismo como o Novo Testamento do cristianismo contavam a mesma parábola, que consiste mais ou menos no seguinte:
Havia, uma vez, o filho de um rei que abandonou o lar e foi perambular muito longe. Em sua perambulação, ele gradualmente perdeu todas as lembranças de suas origens. Passou por tempos difíceis e tornou-se um mendicante Para sustentar-se, cuidou de porcos que pertenciam a outras pessoas, compartilhando com esses porcos as bolotas de carvalho e as cascas de alimentos que eles recebiam para comer. Porém, veio o dia em. que, das profundezas do seu desespero e da sua miséria, a lembrança de quem e do que ele havia sido voltou e tomou-se uma força propulsora em sua vida. Ele abandonou as pocilgas e voltou para a casa do pai.

Cada um de nós é filho ou filha de um rei, e cada um é herdeiro ou herdeira de um reino, que nada mais é do que todo o universo, O rei é a verdadeira natureza de cada um de nós, e cada um de nós perambula longe do seu verdadeiro lar. Nossa verdadeira natureza é a nossa natureza búdica. Buda significa “desperto” e implica “conhecimento”. Como não há o “outro”, corno “desde o inicio das coisas basicamente não conhecemos “algo”, como conhecer e ser não estão separados, não há nada para conhecer e nada que se conheça. Como isso é assim, tudo está contido em conhecer e nada está fora: somos um todo e somos completos, e essa mente é Buda. O mundo todo é um reino, e o mundo todo é rei.

Quando ele nasceu, os sábios predisseram que, ao crescer, ele seria um rei ou um monge.

Não somos um, somos dois, embora os dois sejam como as duas faces de uma moeda, que é o todo. Ao nascer, temos o potencial para sermos monges ou reis, e a luta básica e a guerra que nos dilaceram durante toda a nossa vida acontecem entre essas duas facetas. Quando nos adiantamos para conquistar, para agir no mundo, alguma coisa dentro de nós parece estar sendo negada. Quando nos voltamos para dentro em busca da verdade e da realidade, sentimos estar desperdiçando tempo; ficamos inquietos. Alcançamos um ponto em que, não importa o que estamos fazendo, sentimos que deveríamos estar fazendo outra coisa. Um dos sentimentos mais universais e dolorosos que atingem muitas pessoas é o de que, de algum modo, a vida está passando por elas. Aquelas que ficam presas aos afazeres da vida geralmente anseiam por um mundo de solidão, paz e tranqüilidade. As que vivem retiradas do mundo geralmente aspiram por ação e ocupação. Quando o rei se movimenta e se agita nos novos domínios do ser, o monge fica perturbado, contraído por falta de alimento e da luz do sol; quando o monge penetra cada vez mais no domínio do conhecimento e do prodígio, o rei definha, flácido e sem espinha dorsal, com o vigor desgastado e o espírito aventureiro amedrontado e hesitante. E como se, ao nascer, fôssemos mortalmente feridos.

O pai, não querendo que o filho tivesse de suportar as dificuldades de uma vida ascética, e também desejando a continuação de sua linhagem…

Esse é o papel assumido pelos pais: o de protetores. Um bebê nasceu; ele é fraco e indefeso, mas dotado, por natureza, de uma arma mortal o sorriso. Podemos viver uma vida errante, vagando desregrados e não nos preocupando demais com coisa alguma. Casamo-nos e nasce um bebê. No inicio, ele é quase um vegetal – molhado e impertinente. Mas, com o seu sorriso, ele mantêm como reféns o pai e a mãe a vida toda. Eles trabalham, labutam e sofrem para manter esse sorriso, O soriso que envolve o mundo todo em uma radiância, O sorriso de um bebê não tem malícia nem presunção, e por meio dele entrevemos novamente nossa natureza desperta, nossa própria vida de integridade.
Ë natural que Suddhodana, pai de Gautama, quisesse proteger o filho de uma vida de privação e ascetismo. Não há sofrimento maior do que suportar o sofrimento de um filho, O seu próprio sofrimento pode ser combatido, compreendido, usado como fonte de energia, transmutado. O sofrimento do seu cônjuge é pior, mas você pode conversar com ele, consolá-lo e encorajá-lo ou caminhar com ele pelo vale. Mas quando um filho está entregue à dor, mudo e paciente, embora perplexo e temeroso, o que você faz? Como trazer de volta o sorriso? Dizem, com razão, que as crianças são reféns do acaso. Você se preocupa com a possibilidade de elas se perderem, tomarem o caminho errado, acabarem fazendo as mesmas tolices, caírem nas mesmas valas e tropeçarem nas mesmas pedras que você mesmo já conhece. “O seu filho crescerá para ser bem-sucedido, forte, admirado por todos, para ocupar uma posição de grande poder – ou talvez seja um nada, pobre, ridicularizado, humilhado, à procura do que os próprios imortais não puderam encontrar.” Ë natural que Suddhodana não quisesse que seu filho fosse um asceta.

[Ele] protegeu o filho dos Problemas da existência e ofereceu-lhe toda a segurança e os prazeres que o dinheiro podia comprar.

Essa é a grande tragédia: no grande amor que temos por nossos filhos, negamos a eles o sofrimento. Esbanjamos com eles tudo o que podemos, e as crianças, mais cedo ou mais tarde, acabam odiando-nos e acusando-nos de sermos falsos. O problema é que eles estão certos:
uma vida sem o reconhecimento do sofrimento – aquela que é vivida na pretensão de que a dor e a ansiedade, a humilhação, o medo, o desespero e a culpa, o ferimento e a doença, a injúria e a morte são acidentes ou a visita de alguma força malévola – é, na melhor das hipóteses, meio vida, meio morte. Agravamos o nosso erro dando às crianças tudo o que querem, geralmente evitando a luta que ocorrerá se não o fizermos. Toda a nossa sociedade é assim. Somos como crianças que agora se voltam contra os pais e os odeiam por lhes terem fornecido drogas que as protegeram das dores da vida, que transformaram a morte num fantasma irreal, que lhes ofereceram sonhos prontos para consumo em Technicolor, em caixas que podem ser colocadas numa sala de estar com móveis e almofadas macias; país que, no inverno, obtiveram para seus filhos as frutas típicas do verão, que lhes deram rodas para passear e asas para transportá-los às praias, ao sol, ao divertimento e ao mar. De fato, temos todos os prazeres que o dinheiro pode comprar. Mas aprendemos a detestar médicos, supermercados, a odiar carros e aviões, a TV e o cinema. A tragédia é que a tragédia não tem fim e é encenada em nome do amor.

A criança, chamada Siddhartha Gautama, cresceu e tornou-se um homem completo, competente nas artes e nas ciências do seu tempo.

Uma das crenças mais comuns dos que não praticam uma religião é que aqueles que o fazem são, de algum modo, incompetentes. Eles são considerados como alienados que procuram a religião como um conforto, como um modo de fugir dos fatos difíceis da vida, porque não os agüentam. Sem dúvida, há muitos que usam a religião como fuga. Mas não há também muitos outros que usam o trabalho, o sexo, a amizade -na verdade, quase qualquer coisa – para proteger-se contra a dor de suas vidas? Porém, o fato de algumas pessoas fazerem isso não significa que todas o façam. Porque algumas usam o trabalho para evitar enfrentar os seus problemas, isso não significa que todos os que trabalham são
vorkaholics. Fica claro, a partir das histórias que chegaram até nós, que Shakyamuni não era do tipo que não conseguia agüentar.

Porém, ao mesmo tempo, devemos ter cuidado para não cometer o erro de acreditar que as aptidões e as habilidades tais como o mundo as conhece são requisitos para o “progresso” no caminho espiritual ou que são o resultado do trabalho consigo mesmo. Nossas habilidades e aptidões nos são dadas – elas se desdobram como as pétalas de uma flor desabrochada. As vezes, as circunstâncias são adequadas e tudo flui, e gostamos de acreditam que somos nós os autores disso. Outras vezes, nada sai direito. Lutamos e nos esforçamos, trabalhamos e labutamos, mas nada se encaixa e tudo desmorona. Então, preferimos acreditar que somos vitimas de um destino sobre o qual não temos controle.

Na devida época, casou-se e teve um filha

O ciclo agora está completo. Começando como criança, a pessoa torna-se pai ou mãe. Começando como protegida, ela passa a ser protetora. A roda da vida é inexorável; ela gira, e nós, presos e emaranhados nessa roda, giramos com ela.

Alguns dizem que, em seu aniversário, Buda sabia que tinha uma grande missão e que sua vida anterior havia sido vivida na plena consciência dessa missão. Mas os fatos sugerem outra coisa. Gautama casou-se – ele buscou o caminho de todos os homens. Ele se casou por todos os motivos pelos quais os homens e mulheres se casam e, quando se casou, provavelmente comprometeu-se com o casamento acreditando que, desse modo, alcançaria a felicidade.

Ë verdade que, às vezes, é difícil aceitar que a riqueza e o contentamento não estão relacionados. “Se ao menos eu tivesse mais dinheiro”, um lar diferente”. “um emprego melhor”, “uma esposa mais compreensiva”, “mais roupas”… a lista é infinita. George Bernard Shaw parece ter dito que o valor de uma educação universitária é mostrar-nos que nem tudo está perdido quando não se pode tê-la. O mesmo pode ser dito com relação a toda riqueza. Uma pessoa pode ter muito dinheiro e o sentimento de que falta alguma coisa; pode ter um bom emprego e, ainda assim, sentir que não tem desafio suficiente; pode ter um casamento maravilhoso, com lindos filhos, e viver atormentada pela solidão; pode ter um talento considerável e, mesmo assim, sentir-se inferior. Sabemos tudo isso. Já vimos que, muitas vezes, fomos arrebatados pela promessa ilusória de satisfação, e, ainda assim, fomos sugados pelo próximo sonho do qual calmos vitimas.

Contudo, ele estava inquieto e sentia-se preso aos prazeres que o pai lhe proporcionara, e desejava conhecer mais da vida do que aquilo que se encerrava entre os muros dos palácios em que vivia.

Essa inquietude é como “uma coceira”, no dizer de certo mestre. E como a coceira da frieira – quanto mais coçamos, pior fica. Essa inquietude é precursora da verdadeira busca. No fundo de nós mesmos, alguma coisa está se movendo. Ficamos surpresos ao perceber que nem todas as pessoas estão igualmente inquietas. Valores que uma vez acreditamos serem caros, atividades de que gostávamos, idéias que namorávamos, tudo vira poeira e cinzas. A inquietude transforma-se em pânico, e passamos a ver coisas ás quais antes não prestávamos atenção. Elas nos fitam nos olhos, e sabemos que não podemos mais esconder-nos delas. No momento, elas é que são reais, enquanto todo o resto nada mais é que sombras trêmulas.

Diz-se que, se a natureza é jogada fora pela porta da frente, ela volta pela janela. Ë tolice acreditar que podemos proteger a nós mesmos ou aos outros do sofrimento da existência. Diz-se que, uma vez, um homem ficou sabendo que Yama – o deus da morte – iria buscá-lo no dia seguinte. O homem começou a tremer, a transpirar e a apertar as mãos; ele não sabia o que fazer. Finalmente, encontrou uma solução. Se Yama estava indo buscá-lo, então ele não estaria lá quando Yama chegasse. Viajaria para um pais distante e se esconderia entre o povo, e Yama jamais o encontraria. Assim, comprou uma passagem aérea, entrou no avião e logo percebeu que estava sendo empurrado por uma multidão de pessoas do pais que havia abandonado. Enquanto se debatia com a multidão, ele olhou para cima e lã viu Yama, que vinha em sua direção com um grande sorriso. “Ah! Ai está você”, disse Yama. “Temos um compromisso hoje, e eu estava exatamente imaginando como iria conseguir chegar à sua casa em tempo. Que bom que você está aqui!”

Os melhores esquemas entre ratos e homens geralmente se mostram impróprios, como disse o poeta escocês Robert Burns. Não porque haja algo inerentemente errado com o plano. Os ratos que Burns encontrou no campo que estava arando haviam escolhido o local perfeito para o seu ninho e haviam construído o seu ninho com o maior cuidado. Mas havia outro plano: o fazendeiro queda fazer sua colheita e, ao fazê-la, ele revirou o ninho dos ratos e destruiu os planos deles.

Cada um de nós está sujeito ao seu karma, isto é, estamos sujeitos à totalidade das forças que colocamos em movimento a cada momento com todo ato, escolha e decisão que realizamos. As vezes, essas forças demoram para nos alcançar, ás vezes mal plantamos a semente e já estamos colhendo a tempestade. Predomina uma lei inexorável mais forte do que qualquer esforço que possamos fazer para subvertê-la em nosso favor ou em favor de outra pessoa. Tudo tem uma causa, toda causa tem um efeito.

Ele chamou seu cocheiro e foi para o mundo turbulento dos homens comuns, e, nesse mundo, encontrou um homem doente, um homem velho e um homem morto.

Doença, velhice e morte – o destino inevitável de todas as pessoas. Como tentamos proteger-nos desses espectros! Gostamos de acreditar que esses acidentes só acontecem com os outros. A doença é uma interrupção na vida, para o que nem sempre temos tempo. A velhice pode ser adiada com cosméticos, exercícios, planos e otimismo. A morte pode ser enterrada debaixo de rituais elaborados, acessórios caros, flores bonitas. Mas, ainda assim, esses três se fazem perceber – uma pontada aqui, uma dor súbita acolá, e lá estamos nós, fitando a garganta vermelha de Yama.

Uma nova síndrome parece estar ficando famosa; ela aflige as pessoas tipicamente aos quarenta anos de idade. As vezes mais cedo, às vezes mais tarde, mas sempre com os mesmos componentes. A pessoa sente-se completamente à deriva, sem nenhum apoio. Todas as compensações parecem cessar, e a pessoa tem de encarar a morte. Ela vê a inevitabilidade da velhice, que leva á morte, e teme a doença, que será a precursora da velhice. Jung disse que a neurose do jovem surge do medo da vida, mas a neurose de uma pessoa com mais de 40 anos surge do medo da morte. Nem todos são afetados por essa síndrome, mas a riqueza, o poder, as habilidades ou a vitalidade não são garantias contra ela. Por volta dos 40 anos, muitas pessoas fazem tolices: abandonam empregos seguros e começam novas carreiras, divorciam-se de companheiros que amaram e com quem viveram por muitos anos, desenvolvem estranhas neuroses; alguns até mesmo caem mortos. Durante anos, evitaram um encontro com o trio apocalíptico esquivando-se com suavidade; planos, objetivos, metas hipotecaram o futuro até que já não há mais tempo…

Finalmente, ele encontrou um monge andarilho.

Que encontro! Se o monge não tivesse tomado aquele caminho, como a história do mundo poderia ter sido diferente. Mas esse encontro havia sido determinado antes; era o karma de Buda-era o nosso karma.

O sofrimento mais terrível é o sofrimento inútil. O sofrimento de vacas, cavalos, cachorros, esquilos, elefantes, crocodilos – ele é terrível porque parece ser tão inútil. Mas o sofrimento dos seres humanos pode ser seguido de um encontro com um monge, com um homem sagrado, com um homem que abriu mão de tudo na certeza de que é capaz de encontrar a verdade e de que a encontrará. O sofrimento prepara o caminho para o encontro; e se o sofrimento for aceito, e se for intencional, o encontro com o monge é inevitável, porque o monge nada mais é que o chamado da nossa verdadeira natureza.

Uma noite, ele se despediu da esposa e do filho enquanto dormiam e foi embora para uma floresta a fim de tornar-se um asceta errante…

Foi feito assim na Índia e ainda vem sendo feito até hoje. Para dar um exemplo, J. G. Bennett, o matemático e filósofo britânico, estudante de Gurdjieff, escreveu a respeito do seu encontro com Shivapuri Baba, um asceta indiano que morreu no final da década de 50 com 132 anos de idade. Shivapuri Baba deixou sua casa quando tinha dezoito anos e ficou na floresta durante 25 anos, sozinho, antes de passar por um grande despertar. Incidentalmente, após esse despertar, ele disse que se reintegraria à sociedade e, então, aos sessenta anos, viajou pelo mundo e visitou um grande número de pessoas eminentes na época.

Ramana Maharshi é outro; aos dezessete anos, depois de um grande despertar, também deixou a casa dos pais para viajar ao monte Arunachala, onde permaneceu pelo resto da vida.

Mas histórias como essas devem ser entendidas com muito cuidado. Não se tratava de abandonar a esposa e a família, ou o pai e a mãe. Algumas pessoas que não compreendem bem a intenção e o estado de espirito de Buda ficam imaginando como é que um ato de aparente irresponsabilidade pôde ter um resultado que valesse a pena. A lei do karma diz que, de uma ação má, mais cedo ou mais tarde, o mal fluirá. Mas o ato de Buda estava inteiramente de acordo com o seu karma. Sua esposa e sua família estavam bem amparadas. As pessoas que lutam e que se preocupam em sair de casa ou abandonar um emprego ou começar algo novo, provavelmente não estão preparadas para a mudança.
Outras sociedades, particularmente aquelas com climas menos hospitaleiros, não têm essa tradição de ir à floresta e simplesmente viver fora do mundo.

Mas não é o fato de deixar o lar que é tão importante. Ê o ato da renúncia. Para começar com seriedade um caminho espiritual, é de fundamental importância que se “renuncie ao mundo”. Isso pode ser feito mesmo que não haja mudança óbvia na rotina ou na atividade. O ato de renúncia se realiza quando a pessoa vê inequivocamente que o “mundo” e tudo aquilo que ele representa não podem amenizar em nada a angústia do espírito. A pessoa vê diretamente através do mundo e, por um momento, permanece nua e solitária. Wifliam James diz que o caminho religioso começa com um grito de socorro. O momento da renúncia pode ser um momento terrível, e a pessoa sente-se tão impotente, tão só que grita por algum apoio. Por mais que ela tente, não consegue abjurar. Algo foi destruído naquele instante e jamais poderá ser substituído. A pessoa deve agora continuar em frente sem descanso ou retirar-se do cenário humano.

Ele estudou com os sábios da floresta, mas, depois de aprender tudo o que eles tinham para oferecer, ainda sentia-se insatisfeito e inquieto.

Seus mestres foram Alara Kalama, Rama e Uddaka. O primeiro, Alara, ensinou-lhe um modo de alcançar o reino do vazio, mas não mais que isso. Rama levou Buda mais longe, ao lugar onde não há mais percepção de nada, e Uddaka foi capaz de levá-lo mais longe ainda, mas muito pouco. O reino do vazio e o lugar onde não há percepção ainda estão no âmbito da consciência e da forma; eles ainda estão baseados em algo que conhece o vazio ou que foi para além da percepção. Nenhuma segurança suprema vem dai. Muitas formas de meditação podem levar-nos para fora de nós mesmos, por assim dizer. Algumas requerem grande disciplina e esforço. Mas a libertação só é a verdadeira libertação quando se manifesta em nossa vida cotidiana. “O que ê a verdade?”, perguntou alguém a Joshu. “Quando eu tenho fome, como; quando estou cansado, durmo.” Estados da mente exaltados, cheios de glória, luz e hosanas são apenas o pico da montanha-russa que nunca mergulha até o fundo. Os estados psíquicos mantidos de maneira tênue no silêncio e no isolamento são simplesmente ginástica mental, e assim como a ginástica física não traz a paz absoluta, tampouco pirotecnias mentais, percepção extra-sensorial, levitação e estados medúnicos têm valor algum para conduzir-nos á Grande libertação.

Ele viajou, encontrou alguns ascetas e, juntando-se a eles, pós em prática todas as provações ascéticas.

Como é freqüente ver isto: a vida é insatisfatória, por isso se faz alguma prática ascética; freqüentemente, realiza-se alguma forma de jejum ou controle da respiração. Gautama praticou por seis anos e alcançou um ponto em que estava comendo apenas um grão de arroz por dia. Mas há graus de ascetismo, e sem dúvida as dietas que causam tantos danos às pessoas, assim como a epidemia de jogging que infectou a América, são apenas práticas ascéticas artificiais realizadas pela falta de uma verdadeira compreensão de como praticar a disciplina espiritual.
Até mesmo o zazen, praticado sem a orientação de um mestre experiente, pode degenerar numa forma sutil de ascetismo. Há o famoso mondo entre Nangaku e Baso:
Nangaku observou Baso praticando o zasen e perguntou-lhe o que estava fazendo. Baso respondeu que estava tentando tomar-se um Buda.
Nangaku pegou uma telha e começou a esfregá-la numa pedra. Dessa vez, foi a vez de Baso perguntar a Nangaku o que ele estava fazendo. Nangaku disse que a estava polindo para fazer um espelho.
– Como é que polir uma telha pode torná-la um espelho? – perguntou Baso.
– Como é que ficar sentado pode fazê-lo tomar-se um Buda? -retrucou Nangaku.
Baso então indagou:
– O que eu deveria fazer?
Nangaku respondeu:
Se você estivesse dirigindo uma carroça e ela não andasse, você chicotearia a carroça ou o boi?
Baso não respondeu.
O ponto da história não é – como alguns poderiam pensar – abandonar o zazen como forma de ascetismo. Ao praticar o ascetismo, nós simplesmente podamos os galhos e ramos, enquanto a raiz floresce ainda mais.

Ao final, quando estava se aproximando da morte, lembrou-se de um tempo em que observava o pai e os trabalhadores enquanto aravam. Naquele momento, ele se tornara um só com toda a dor e o sofrimento do mundo.

A iluminação antes da iluminação. O súbito gosto espontâneo de liberdade que se fixa por um momento e depois sai voando como um pássaro assustado. Ë surpreendente o número de pessoas que sentiram esse gosto. Ele vem de todas as maneiras: numa noite de férias, quando se ouve música, quando se está apaixonado, num momento de intensa aflição, na doença, num instante de profunda piedade. Ele vem.., e vai embora. Ele é tão familiar e, no entanto, tão arrebatador em seu frescor. A pessoa vê através de uma fenda na existência, num lampejo, mas é o suficiente. Então, vem o tempo em que esse encontro amadurece e, como um ímã, atua como guia, e cada vez mais nossas tendências voltam-se para uma única direção até que, finalmente, somos levados adiante como por uma força irresistível, em busca do despertar.

Lembrando-se dessa experiência e de como ela parecia ter-lhe aberto a porta para uma profunda consciência da unidade, ele resolveu abrir mão da prática ascética, que podia levar apenas á morte, e procurar despertar novamente para essa Unidade.

Esse é um grande momento. Para Buda., uma vez bastou; mas os outros, que muitas e muitas vezes afastam-se da verdade, devem tomar a despertar muitas e muitas vezes para a inutilidade de todas as dores auto-inflingidas. Com um toque de verdade, tudo toma-se tão simples e óbvio. A pessoa se pergunta como pôde perder-se tão completamente; mas muitas e muitas vezes colidimos com um emaranhado de arbustos e espinheiros, tentando forçar cegamente um caminho para onde nau temos necessidade de ir. Freqüentemente, ouvimos: “abandone a luta”, “não perturbe a mente”, “apenas alivie-se do seu fardo”, mas com a mesma freqüência adotamos técnicas e estratégias; tentamos isso ou forçamos aquilo, pensamos isso ou fazemos aquilo. Ë abrindo mão de todas as coisas, fazendo o sacrifício total de tudo – até mesmo daquilo que mais prezamos, nossa prática de disciplina espiritual- que a nossa intuição mais profunda pode ser despertada e, por meio desse despertar, o véu da dualidade pode ser rasgado.

Nesse exato momento, estava passando uma pastora, Nandabala, que, ao ver Gautama fraco por falta de alimento, ofereceu-lhe um pouco de leite de cabra para beber. Recuperado, Siddharta continuou em busca de uni lugar adequado para meditar. Encontrou a árvore Bo. Sotthiya, um jardineiro que estava passando, deu-lhe um pouco de grama para servir de assento.

Em The Three Pillars of Zen [Os Três Pilares do Zen], Roshi Kapleau escreve o seguinte: “Pode acreditar nisto: quando você entra no caminho do Buda com sinceridade e zelo, os bodhisattvas surgem em toda parte para ajudá-lo.”

Isso acontece com tanta freqüência que a pessoa nem bem se dispõe a libertar-se, e a ajuda de outras surge naturalmente e sem esforço. Isso não é um exemplo do poder do pensamento positivo, mas exatamente o oposto. Assim que abrimos mão de nossa teimosia e sacrificamos nossas barreiras mais queridas ao despertar, abrimo-nos para o mundo todo – e nesse estado de integridade temos naturalmente aquilo que é necessário. Os bodhisattvas geralmente são considerados, no budismo, como seres elevados que estão próximos apenas do próprio Buda. Mas, no Zen, um bodhisattva é alguém que ajuda você ao longo do caminho.
As vezes, essa ajuda é óbvia quando acompanhada por um mestre Zen ou alguém que está avançado no caminho. Mas ás vezes ela não é tão óbvia: a mulher que bate no seu cano, o burocrata que insiste no formulário correto, o policial que lhe aplica uma multa – esses não são menos bodhisattvas do que a garota que lhe oferece um livro sobre o Zen, ou o homem que lhe indicou um curso, ou o rapaz que lhe deu uma carona até o Zen Center.

Depois, sentando-se, fez o seguinte voto: “Mesmo que minha come definhe e fique pendurada nos ossos, mesmo que meus ossos sejam esmagados, mesmo que o meu sangue seque e se transforme em poeira, não sairei deste lugar enquanto não atingir a completa iluminação.”

Um relato diz que “ele sentou-se de pemas cruzadas numa posição difícil, da qual nem mesmo a descida de mil raios ao mesmo tempo poderia desalojá-lo”. Esse é o momento supremo. Com tamanha resolução, o que poderia dar errado? Não apenas o corpo está imóvel, mas também a incute. Corpo e mente como rochas. Pensamentos, como moscas, arremetem em vão contra essa resolução. O mundo todo fica transparente. Embora a pessoa se sente em meio à confusão e ao bani-lho, nada se move, nem mesmo a consciência de que nada se move.

Então, durante toda a longa noite, ele foi tentado por Mara.

Mara é o mal. A palavra mara deriva do sânscrito mri: morte. Os filhos de mara são o capricho, a alegria e a malícia suas três filhas dão o deleite, o descontentamento e a sede. Os nomes das filhas em sãnscrito são Rati, Arati e Trsna. Bati significa “deleite sensual”, particularmente o deleite sexual. Arati, portanto, significa “frigidez” e “frieza”. Trsna é “sede”, a sede insaciável, a ânsia que permanece depois que tudo por que ansiamos foi abandonado e só restou o som irritante que a tentativa de eliminar apenas agrava.
Aqueles que se sentaram em sesshin ou prática séria estão familiarizados com Mara. Os medos inomináveis; o vazio onde as coisas tornam-se insubstanciais; os trocadilhos caprichosos e as piadas oferecidos por um intelecto ocioso; o riso e o choro; a frustração beligerante; a seca aridez; a imagética sexual; o querer a todo custo, querer por querer; a falta de seriedade…

Não importa a hora, sempre é noite quando enfrentamos Mara. Nas antigas lendas, não foram os filhos e as filhas de Mara que tentaram Buda, mas exércitos semelhantes aos de Breugel equipados com todo tipo de armas. A persistência incansável de Mara, na medida em que ela produz uma armadilha depois de um bloco, depois de uma barreira, depois de um caminho secreto, depois de uma inconseqüência, é como um exército, um exército demoníaco lutando para acabar com a quietude da mente em unidade. A essa altura, até mesmo dar uma olhadinha no desfile que passa é o bastante para fazer Mara sair gargalhando e dançando, com a mente fragmentada em mil pedaços, a pedra dissolvida em areia, a montanha transformada numa colina de formigas rastejantes.

Quando amanheceu, ele olhou para a estrela-d’alva; de repente, despertou completamente e gritou: “Maravilha das maravilhas, todos os seres são dotados da natureza de Buda.”

Para o zen-budista, esse é o cerne da história da vida de Buda. Esse é o grande milagre – o encontro consigo mesmo, a lembrança de si mesmo. Ë o ciclo completado. O despertar de uma pessoa é o despertar de todo o universo; se uma pessoa pode despertar, qualquer um e qualquer coisa que tenha sensibilidade também pode. Mas despertar sem nenhuma orientação, inspiração ou encorajamento, despertar inteiramente por causa da necessidade interior que não pode ser satisfeita com nada menos que o despertar total é algo muito fora do comum.
Os budistas veneram Shakyamuni Buda porque ele foi um homem admirável; com seus grandes esforços e sua tenacidade inabalável, ele reabriu um caminho e o ensinou a todos os que quisessem ouvir. Cruciais para esse caminho são o despertar e a integração do despertar na vida cotidiana. A veneração de Shakyamuni, portanto, também significa abrir-nos para a grande possibilidade do despertar. Ler a história simplesmente como o relato da vida de um grande homem é perder sua essência; lê-la apenas como uma afirmação do despertar é perder o fato.


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