Abrindo a caixa de Pandora



Abrindo a caixa de Pandora

Texto de Charlotte Joko Beck,
extraído do livro”Sempre Zen

A qualidade de nossa prática está sempre refletida na qualidade de nossa vida. Se de fato estivermos praticando, haverá uma diferença com o passar do tempo. Bem, uma das ilusões que talvez alimentemos quanto à nossa prática, é que ela tornará as coisas mais confortáveis, mais claras, mais fáceis, mais pacificas etc. Nada poderia estar mais distante da verdade. Hoje de manhã, enquanto tomava café, dois contos de fadas surgiram de repente em minha memória e imagino que nada que aconteça assim seja desprovido de algum motivo. Os contos de fadas implicam algumas verdades básicas e fundamentais sobre as pessoas. Por isso, permanecem vivos por tanto tempo.

O primeiro conto que me surgiu foi o da princesa e a ervilha. Em tempos remotos, o teste para se saber se a princesa era verdadeira consistia em fazê-la dormir em cima de uma pilha de trinta colchões e ver se ela podia sentir a ervilha embaixo do último. Bem, poderíamos dizer que a prática nos transforma em princesas; tornamo-nos mais sensíveis. Passamos a conhecer coisas a respeito de nós mesmos e dos outros, que antes desconhecíamos. Tornamo-nos muito mais sensíveis, mas às vezes também ficamos mais mordazes.

A outra história foi sobre a caixa de Pandora. Vocês se lembram alguém ficou tão curioso a respeito do conteúdo daquela misteriosa caixa, que finalmente a abriu e tudo que havia de mau saiu de dentro, criando o caos. Para nós, a prática é sempre assim: abre a caixa de Pandora.

Todos nós nos sentimos separados da vida; sentiremos que existe uma parede a nossa volta. Pode não ser uma parede muito visível; pode até ser invisível, mas ela está lá. Enquanto nos sentirmos separados da vida, sentiremos a presença de uma parede. Uma pessoa iluminada não terá paredes a sua volta, contudo, nunca conheci alguém que eu sentisse estar completamente livre delas. Porém, com o prosseguimento da prática, a parede fica cada vez mais fina e transparente.

Essa parede vem nos mantendo distantes do contato. Talvez estejamos ansiosos, podemos estar tendo pensamentos perturbadores, mas nossa parede nos mantém inconscientes disso tudo. Entretanto, ao praticarmos (e muitos aqui sabem disso muito bem), a parede começa a ter buracos. Antes era uma prancha cobrindo a água borbulhante agora, a prancha começou a ter furos, pois a prática nos torna mais cônscios e sensíveis. Não podemos nos sentar imóveis durante trinta minutos sem aprender alguma coisa. Quando esses trinta minutos acontecem dia após dia, por muito tempo, aprendemos cada vez mais. Queiramos ou não, aprendemos.

Pedaços da prancha podem até despencar e assim a água começa a borbulhar pelos furos e pelas falhas. Claro que aquilo que encobrimos é a parte que não desejamos conhecer a respeito de nós mesmos. Quando as bolhas sobem (o que acontece com a prática), é como se a caixa de Pandora começasse a se abrir. Na prática, em nível ideal essa caixa jamais deveria ser lançada ao ar para se abrir de uma vez. Porém, uma vez que a compreensão não é toda previsível, podem haver algumas surpresas e ate mesmo perdas. Às vezes, a tampa sai e tudo que nunca quisemos ver em nós mesmos vem borbulhando à tona e, em vez de nos sentirmos melhor, sentimo-nos pior.

A caixa de Pandora consiste em todas as nossas atividades autocentradas e todas as emoções correspondentes que elas criam. Mesmo que estejamos praticando bem, haverá momentos (não para todos, só para algumas pessoas) em que a caixa parece explodir e, de repente, um furacão de emoções começa a rodopiar. A maioria não gosta de sentar quando isso está acontecendo, mas aqueles para quem essa erupção se resolve com mais facilidade são os que não desistem jamais de sentar, querendo ou não fazê-lo. Em minha própria vida, a libertação aconteceu muito suave e discretamente, talvez porque eu estivesse praticando bastante o sentar e participando de inúmeros sesshins.

Conforme a prática no Centro vai amadurecendo, vejo que a vida da maioria dos alunos se transforma. Isso não significa que a caixa de Pandora não esteja se abrindo; as duas coisas acontecem juntas: a transformação e o desconforto. Para alguns, esse período é muito doloroso — isto é, quando a caixa começa a se abrir. Por exemplo, uma raiva inesperada pode emergir (mas, por favor, não a atire em mais ninguém). Portanto, a ilusão que temos de que a prática será sempre pacifica e amorosa não se sustenta. Que a caixa se abra, isso é perfeitamente normal e necessário. Não é nem bom nem mau. É apenas o que tem de acontecer, se de fato, desejamos que nossa vida se aquiete e fique mais livre de reações contínuas. Parte alguma deste processo é indesejável; aliás, quando trabalha de forma adequada, é desejável. Entretanto, o elemento crucial é como praticamos essa efervescência.

A prática não é fácil. Ela irá transformar nossa vida. Porém, se temos idéias ingênuas quanto a essa transformação ocorrer sem que paguemos um preço, estamos nos iludindo. Não pratique a menos que acredite que não há mais nada que você possa fazer. Em vez disso, mergulhe de cabeça no surf, na ginástica ou na música. Se essas atividades o satisfazem, execute-as. Não pratique a menos que sinta que deve mesmo. É preciso uma coragem muito grande para ter uma verdadeira prática. Você terá de encarar tudo a seu respeito que estiver oculto dentro da caixa, incluindo algumas coisas desagradáveis que não deseja nem mesmo ouvir falar.

Para ter uma prática zen, precisamos desejar um determinado tipo de vida. Em termos tradicionais, é uma vida na qual nossos votos sobrepujam nossas considerações pessoais comuns; devemos estar determinados a conseguir que nossa vida desenvolva um contexto universal e a vida dos outros também o desenvolva. Se estivermos num certo estágio de nossa vida (que não é nem bom nem mau, mas só um estágio) no qual a única coisa que nos interessa é como nós nos sentimos, o que nós desejamos, então a prática será muito difícil. Talvez devêssemos esperar um pouco mais. Como instrutora, posso facilitar a prática e, evidentemente, estimular os esforços da pessoa, mas não posso dar a ninguém essa determinação inicial, que precisa estar ali para que a prática possa firmar-se.

A caixa está se abrindo agora para muitos de vocês —como é que vocês irão lidar com ela? Preciso que saibam algumas coisas a respeito dessa perturbadora fase da prática. A primeira, é normal para as pessoas que estão neste caminho; aliás, é necessária. A segunda não dura para sempre. A terceira, mais do que em qualquer outro momento da vida, é uma fase em que precisamos entender nossa prática e saber o que é a paciência. Em especial, é uma fase na qual se deve fazer sesshins. Se vocês já estão praticando o sentar há vinte ou trinta anos, se fazem ou não os sesshins não é tão essencial. Mas, numa certa época é de vital importância e vocês devem fazê-los tanto quanto sua situação de vida permitir. Esse conselho pressupõe a força de manter essa intensidade da prática. Não e mau" não querer uma prática tão dedicada. Quero deixar isso bem claro. As vezes, as pessoas precisam de outros dez anos ou mais, "quebrando a cara", deixando que a vida lhes ensine todas as lições, antes que se sintam prontas para o compromisso de uma prática tão intensa.

Desta forma, a caixa de Pandora, aquilo que nos aborrece e perturba tanto, é o aforamento (às vezes, numa inundação) daquilo que antes não percebíamos de modo consciente: nossa raiva diante da vida. Ela ferverá cedo ou tarde. É nosso ego, nossa raiva da vida não ser do modo como desejamos que ela aconteça. "Não me convém! Não oferece o que eu desejo! Quero que a vida me trate bem!" É nossa fúria quando as pessoas e os acontecimentos em nossa vida simplesmente não nos dão aquilo que exigimos.

Talvez vocês estejam agora no exato momento de abrir a caixa. Em alguma outra oportunidade, gostaria que compartilhassem aquilo que sentiram ser útil nesta etapa de sua prática. Um aprendiz, em certo sentido, pode ser muito mais útil aos outros do que uma pessoa que, como eu, mal consegue se recordar desse estágio. Entendo o conflito bastante bem, no entanto, a lembrança real do quanto foi difícil está quase apagada. Essa é uma das coisas importantes de um sangha: é um grupo de pessoas com uma referência mútua de prática. No sangha podemos ser honestos, não precisamos esconder ou encobrir nossas lutas. O mais doloroso é pensar que existe algo de errado comigo e ninguém mais está tendo os mesmos problemas. Claro que isso não é verdade.


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