Conhecendo o Melhor Modo de Viver Sozinho

Thich Nhat Hanh
Retiro em Upperr Hamlet
5 de abril de 1998
Transcrito e editado por Carol Fegan, Chan An Cu
Revisado por Brendan Sillifant
Traduzido ao Português por Claudio Miklos.


Querido Sangha, hoje é o quinto dia de abril, 1998. Nós estamos em Upper Hamlet, no Retiro da Primavera. Agora nós iremos à liturgia para a manhã de quinta-feira. Ela inclui o Sutra do Conhecimento do Melhor Modo de Viver Sozinho, e o Sutra nos Quarenta Versos ou Ratnagunasamcaya. O Sutra do Conhecimento do Melhor Modo de Viver Sozinho é chamado o Bhaddekaratta Sutta em Pali. Pertence ao Majjhima Nikaya, 131. “Saber como viver sozinho” não pretende aqui significar viver em solidão, separado de outras pessoas, numa caverna na montanha. “Viver só” significa aqui viver para atingir o domínio de você mesmo, ter liberdade, e não ser arrastado pelo passado, não ter medo do futuro, não ser tragado pelas circunstâncias do presente. Nós sempre somos mestres de nós mesmos, podemos lidar com a situação como ela é, somos donos da situação e de nós mesmos. Há muitos pontos no Sutra onde o Buddha diz que “estar só” não significa ficar separado de outras pessoas. Nós podemos estar sentados em uma caverna, mas não estaremos necessariamente sozinhos, porque nos perderemos em nossos pensamentos, e assim não estaremos sós. No Majjhima Nikaya há pelo menos quatro sutras que falam sobre a questão de saber viver só, e no Madhyama Agama há também sutras que falam sobre a questão de viver só. Portanto, sabemos que a questão de viver sozinho é um assunto muito importante nos ensinamentos do Buddha. Nós temos de saber como fazer isto, como viver em liberdade, não sermos aprisionados pelo futuro e não sermos arrebatados pelas coisas no presente.

O Sutra do Conhecimento do Melhor Modo de Viver Sozinho nos ensina como viver cada momento de nossa vida diária muito profundamente. Quando nós podemos viver nossa vida diária profundamente, começamos a adquirir concentração e sabedoria; nós podemos ver a verdadeira natureza da vida, chegamos a uma grande liberdade, e liberdade é a essência da felicidade. Se nós estamos sofrendo, é porque não somos livres, e então praticar é recuperar nossa liberdade. Quando nós temos liberdade, ficamos sólidos. Liberdade e solidez são as duas características do Nirvana, assim precisamos de um programa de liberdade e solidez. Se alguém está sofrendo, sabemos que esta pessoa não está livre; e porque não são livres, as pessoas estão sofrendo, elas estão aprisionadas pelo passado, ou elas estão sendo oprimidas pelo presente, ou elas estão sendo arrebatadas pelo futuro, e é por isso que elas estão sofrendo. A prática é restabelecer nossa liberdade, e então nós não sofreremos, e nossa felicidade aumentará. Os mais velhos comentários sobre o modo melhor de se viver só, ou de como viver profundamente no momento presente, são achados neste Sutra. Por exemplo, alguém ouve o médico dizer, “Você tem câncer, você viverá durante mais seis meses.” Aquela pessoa se sentirá completamente arrasada. O medo, a idéia de que vamos nos extinguir em seis meses afasta toda nossa paz e alegria. Antes que o médico nos falasse que estávamos com câncer, tínhamos a capacidade de nos divertir com nossos amigos. Porém, uma vez que o médico nos diz aquilo, perdemos toda nossa capacidade para se sentar e desfrutar de nosso chá, ou desfrutar nossa comida, ou contemplar a lua, porque estamos com tanto medo do momento em que morreremos. Isso nos tira toda nossa liberdade. Se você sabe que a morte é algo que acontece a todo o mundo, não sofrerá tanto. O médico diz que nos resta seis meses para viver, mas o médico também morrerá. Talvez o médico saiba que nós temos seis meses, mas o médico não sabe quantos meses ele mesmo tem para viver. Talvez o médico morra antes de nós. Talvez dirigindo para casa depois das consultas ele venha a sofrer um acidente, portanto o conhecimento do médico não é tão grande. Ele fala que só nos resta seis meses. Nós podemos talvez ser afortunados por viver mais seis meses, pois o médico poderia morrer antes de nós. Assim se olharmos profundamente nós veremos coisas que, se não olhássemos profundamente, não veríamos. Olhando profundamente nós podemos resgatar nossa liberdade do medo, e com esta liberdade, com nosso não-medo, podemos viver felizes esses seis meses.

Todos nós somos iguais no que diz respeito à vida e morte: estamos todos morrendo. Assim ela é igual – acontecerá a todo o mundo. Todo o mundo tem de morrer, mas antes de nós morrermos, vamos viver corretamente? Eu estou empenhado em viver corretamente até morrer. Esta é uma coisa muito consciente de se dizer. Se nós vamos morrer, então temos que viver o melhor possível, e se nós podemos viver seis meses do melhor modo, então a qualidade destes seis meses será tal como se estivéssemos vivendo durante seis anos, ou sessenta anos. Se nossa vida está envolvida nas correntes do sofrimento, então nossa vida não tem o mesmo sentido de como se vivêssemos em liberdade. Assim, sabendo que nós temos de morrer, eu estou empenhado em viver minha vida corretamente, profundamente. Todos nós temos que morrer, mas se nós não podemos viver em paz, alegria, e liberdade antes que nós morramos, então nós vivemos como se já estivéssemos mortos, até mesmo antes disto acontecer.

Em primeiro lugar, o Buddha nos ensina que temos de lutar para resgatar nossa liberdade, para poder viver os momentos de nossa vida diária profundamente. Nestes momentos de nossa vida diária nós podemos ter paz, podemos ter alegria, e podemos curar o sofrimento que temos em nossos corpos e em nossas mentes. Vivendo profundamente em cada momento de nossa vida nos ajuda a estar em contato com as maravilhosas coisas da vida, nos ajuda a nutrir nosso corpo e nossa mente com estes elementos maravilhosos, e ao mesmo tempo nos ajuda a envolver e transformar o sofrimento que sentimos. Assim viver profundamente no momento presente de nossa vida diária é viver uma vida de maravilhas, nutrição, e cura. Vivendo assim podemos resgatar nossa liberdade, e viver profundamente: nós fazemos surgir a verdade, despertamos o entendimento, e nossos medos, nossas ansiedades, nossos sofrimentos e nossas tristezas evaporarão, e nos tornaremos uma fonte de alegria e de vida para nós mesmos e para aqueles ao nosso redor. De acordo com Budismo, este é o método de vivenciar com felicidade o momento presente. Observando cuidadosamente, nós veremos que estes comentários do Conhecimento do Melhor Modo de Viver Sozinho são os mais antigos textos humanos sobre como viver o momento presente, assim este é um Sutra muito importante. Nós deveríamos estudá-lo cuidadosamente, e então aplicá-lo em nossas vidas e na nossa prática. Sabemos que todos os ensinamentos relacionados com o ensino sobre viver no momento presente deveriam ser estudados da mesma maneira. Havia um monge cujo nome era Thera. Seus amigos provavelmente lhe deram o nome Thera, que quer dizer “o ancião.” Aquele monge gostava de viver sozinho. Ele sempre saia para o pedido de esmolas sozinho. Ele gostava de fazer a meditação andante sozinho. Ele gostava de comer sozinho, ele gostava de lavar suas roupas sozinho. Ele realmente gostava de fazer tudo sozinho. Ele parecia gostar de evitar seus companheiros de prática tanto quanto possível. Todos os monges tinham ouvido o Buddha louvar o modo melhor de se viver sozinho, mas o modo como o Buddha usava o significado de “viver só,” queria dizer não ser aprisionado pelo passado, não ser pressionado pelo futuro, e não ser arrebatado pelo que estava acontecendo no presente. O Buddha não quis dizer que viver só significa se distanciar e se separar de seus companheiros de prática. Não obstante, este monge gostava de fazer as coisas sozinho, comendo sozinho, indo para a cidade sozinho, e evitando outras pessoas. Os outros monges sabiam que ele gostava de fazer as coisas sozinho, mas eles sentiam que havia algo não muito certo sobre tal modo de vida. Sentiam que ele realmente não estava praticando de acordo com o espírito dos ensinamentos de Buddha. Assim os outros monges foram ao Buddha e disseram, “Senhor Buddha, um de nossos companheiros praticantes chamado Thera, o ancião, gosta de fazer tudo sozinho: caminhada meditativa, refeição meditativa, trabalhando sempre sozinho, e nós não sabemos se viver assim realmente seja viver verdadeiramente só.” E Buddha disse, “Onde este monge está? Peçam-lhe para vir aqui e tomar uma xícara de chá conosco.” Assim os monges foram e convidaram Thera a unir-se a eles, e o Buddha disse, “Eu ouvi que gostas de viver só. Como tu vives por conta própria? Por favor dizei-me.” E Thera disse, “Senhor Buddha, eu me sento em meditação só, eu como sozinho, eu lavo minhas roupas sozinho, eu vou à aldeia para pedir esmolas sozinho “.

E o Buddha disse, “Oh, sendo esta a verdade, então tu realmente vives só. Mas talvez o modo em que vivas só não seja o melhor modo para viver sozinho, há um modo melhor para se viver só.” E então o Buddha recitou um gatha: “Se tu vives sem ser aprisionado pelo passado, não sendo pressionado pelo futuro, não sendo arrebatado pelas formas e imagens do momento presente, vivendo cada momento de sua vida profundamente, este será o verdadeiro modo de viver sozinho.” Quando Thera ouviu isto, soube que tinha estado vivendo só apenas de forma externa, e que havia um modo mais profundo para se viver só.

O Sutra onde esta história é contada é chamado o Theranama Sutra, está no Samyutta Nikaya, e também há um Sutra equivalente no Samyukta Agama, é o de Número 71 no Samyukta Agama. A essência do Sutra é um poema. O Buddha escrevia poemas, mas os poemas do Buddha eram idealizados mais para nos mostrar como praticar. O gatha que fala sobre a arte de viver sozinho é chamado o gatha de Bhaddekaratta. Bhaddekaratta quer dizer “o melhor modo para viver só.” Muitas pessoas traduziram mal este título: Um mestre traduziu isto como “praticando durante uma noite.” Também há outro mestre que traduziu este título como “estando presente.” A tradução correta é “O melhor modo de praticar a vida solitária.” Este poema diz:

Não persiga o passado.
Não se perca no futuro.
O passado já não existe.
O futuro ainda não veio.
Olhando a vida profundamente como ela é
exatamente no aqui e agora,
o praticante vive
em estabilidade e liberdade.

Toda a essência dos ensinos de Buddha está contida nestas palavras. Nós sabemos que estabilidade e liberdade são as duas características do nirvana, e esta é a meta de nossa prática. A meta de nossa prática é todo aquele momento de nossa vida diária em que podemos produzir estabilidade e liberdade: caminhando, se deitando, se sentando, ficando em pé, nós produzimos liberdade e estabilidade. Nirvana é algo que nós podemos tocar neste exato momento presente, não apenas com nossas mentes, mas também com nosso corpo. Quando nossos pés estão caminhando de um modo vagaroso, sólido e livre, então nossos pés estão tocando o nirvana. Tão logo nós atinjamos estabilidade e liberdade, o nirvana estará lá. O nível de liberdade e estabilidade nos indica se fomos capazes de tocar o nirvana profundamente. Não persiga o passado. Existem pessoas que estão cansadas do presente e pensam que o passado era mais bonito, e que a vida era antes mais bonita. Eles sempre pensam que o passado era mais bonito. Assim, eles não podem ver a felicidade no presente. Muitos de nós somos envolvidos neste modo de pensamento. O passado já não existe mais, e nós o comparamos com o presente, e dizemos que o passado era mais bonito que o presente; mas mesmo quando tivemos aqueles momentos no passado nós realmente não os estimávamos então, porque no passado nós não éramos capazes de viver no momento presente. Nós sempre estávamos correndo em busca do futuro, e se fôssemos levados agora de volta ao passado, faríamos o mesmo. Naquele tempo a vida era mais bonita, o sol era mais luminoso, a lua era mais luminosa — essas são palavras de uma canção francesa. Existem pessoas que buscam o passado, não porque elas pensam que o passado fosse bonito, mas porque o passado lhes fez sofrer, o passado foi um trauma, uma profunda ferida para elas. Nós sofremos, nós fomos feridos, nós morremos no passado, e essas profundas feridas estão nos chamando de volta o passado, gritando “Volte aqui, volte ao passado. Eu sou o objetivo, você não pode me escapar!” Isso é o que o passado nos diz. Nós somos iguais a ovelhas que correm atrás do passado, para nos enclausurar, nos encarcerar, nos fazer sofrer. O passado é também uma prisão muito grande. Nós ouvimos as palavras do passado, e corremos atrás do passado, recusamos viver nossa vida no momento presente, sempre estamos regressando para o passado. Assim o Buddha diz, “não persiga o passado.”

Estas são as palavras de nosso mestre: “Não persiga o passado.” Nós deveríamos escrever um poema, como nós podemos escrever um poema de modo a podermos realizar isto? Às vezes nós estamos sentados com um amigo. Nosso amigo está sentado lá, mas nós nos sentimos abandonados por ele, porque nosso amigo está se afogando no passado. Nosso amigo está sentados junto a nós, mas nosso amigo não estão conosco, nosso amigo está aprisionado pelo passado. Nosso amigo está lá, mas nosso amigo realmente não está lá. Sabemos que nós estamos sentados lá, e sentimos que nosso amigo não está sentado lá conosco. Assim nós achamos um modo para tirar nosso amigo do passado, e dizemos a ele: “Um centavo por seus pensamentos. Em quê você está pensando? Me fale. Eu lhe darei dez centavos se você me disser.” Aquela pessoa pode despertar, sobressaltar-se, sorrir e se livrar da prisão do passado. Se somos monges ou monjas, deveríamos saber fazer isto. Nós deveríamos ser capazes de saber o modo de libertar nosso amigo de prática que está aprisionado e se afogando no passado. Nós temos que usar nosso amor, nossa consciência, e nossa amizade, para ajudar a tirar aquela pessoa da prisão do passado. Se nós somos monges ou monjas, deveríamos saber como usar nossos irmãos e irmãs de prática para nos ajudar a sair de nossa prisão do passado. Portanto, viver em um Sangha tem estes tipos de benefícios!

(Sino)

O Sanghakaya nos ajuda a cada passo. O Sanghakaya nos tira de nossa prisão do passado. O Sanghakaya nos segura pelas mãos e nos conduz passo a passo ao presente, para que possamos desenvolver a capacidade de viver pacificamente no presente. O momento quando raspamos nossa cabeça, o momento quando nosso mestre derrama a água da compaixão em nossa cabeça, este momento é o momento em que nós estamos renascidos, nascidos uma segunda vez. Todo o Sangha está presente ao redor de nós, com as mãos unidas, enquanto as gotas de água compassiva nos penetram. Com a água que é derramada no topo de nossas cabeças, nos tornamos uma pessoa nova naquele momento. Aquele momento é o momento quando nós morremos. Nós permitimos ao passado morrer, e permitimos ao presente nascer. Nosso mestre e o Sangha estão nos trazendo à vida, nos dando uma alma nova, um corpo novo, um corpo de preceitos, um corpo de Dharma, e este corpo de preceitos, este corpo de Dharma está protegido pelo Buddha, Dharma, Sangha e seus preceitos. Não há nenhuma razão para temermos, e não há nenhuma razão para sentirmo-nos isolados ou sós. Não há nenhuma razão para nós nos preocuparmos sobre qualquer coisa. Não há nenhuma necessidade de nos preocuparmos sobre todas as coisas que aconteceram no passado, toda a amargura do passado. Nós podemos nos ajoelhar, podemos fechar nossos olhos, unir nossas mãos, e visualizar este momento com a água da compaixão caindo em nossas cabeças, e podemos nos ver nascendo novamente. Nosso mestre e o Sangha estão transmitindo-nos o nosso corpo de preceitos, e nós temos o dever de permitir que nosso mestre e o Sangha nos conduzam passo a passo neste novo caminho. Nós percebemos que estamos protegidos, estamos seguros, com a segurança do Buddha, o Dharma e o Sangha e seus preceitos; e nunca antes em nossa vida nós nos sentimos como neste momento. Se permitimos que o Sangha nos desperte, se permitimos que nosso mestre nos desperte, veremos que estamos em um estado de segurança que nunca estivemos antes. Se vivermos assim diariamente, nossos sentimentos de ansiedade, de medo, desaparecerão. Nós poderemos viver felizes no momento presente, e cada passo nos levará para a felicidade do momento presente, para a liberdade. Isso é nossa prática diária. “Não procure o passado” é o que isto significa. Às vezes não queremos voltar ao passado, mas o passado coloca suas garras em nós e nos puxa para trás, portanto temos que organizar as coisas cuidadosamente, e temos que basear nossa organização no apoio do Buddha, Dharma e Sangha. Nós temos que olhar diretamente no passado e sorrir para ele, dizendo, “Você já não pode mais me oprimir. Eu estou livre de você.” Só a energia de consciência, as Três Jóias de Buddha, Dharma, e Sangha, têm bastante poder e força para nos ajudar a ficarmos livres do passado. Nós percebemos que o passado é apenas um fantasma. Sabemos que o passado é um fantasma, mas permitimos que o fantasma nos aprisione. Então um praticante deve saber como ter domínio do presente com a ajuda do Buddha, o Dharma, o Sangha e os preceitos para que possa voltar ao presente, e não permitir que os fantasmas do passado nos puxe de volta.

“Não persiga o passado”, pode ouvir o Buddha dizer isto para você? Não imagine coisas e se perca no futuro. O que é o futuro? O futuro é o fantasma número dois? Por que temos tanto medo do futuro? O que é o medo? Seria o medo os nossos planos sobre as coisas que acontecerão amanhã? Ou seria nosso medo as projeções que nós temos do futuro, o amanhã? Talvez isto acontecerá, ou aquilo vai acontecer… nós projetamos as coisas assim. E isso é o que nos faz ter medo. O medo não ocorre naturalmente, o medo surge de nossos pensamentos. Nosso pensamento de que isto acontecerá amanhã, aquilo acontecerá amanhã. Perceba que o futuro é algo que não está ainda lá. Porque o futuro nunca está lá — uma vez que “lá” é o presente. Mas o futuro é um fantasma. Um fantasma gigantesco, que nos suga, e nosso medo surge de nossas projeções de que amanhã isto acontecerá, ou amanhã eu serei assim. “O que será de mim amanhã?” Nosso medo está baseado nisso. E os fantasmas do passado e os fantasmas do futuro são dois fantasmas com a grande responsabilidade de tirar nossa liberdade. Nós somos os escravos destes dois fantasmas. O que é Mara? Quem é Mara? Mara é o passado, Mara é o futuro, esses dois Maras nos seguem e condicionam nossas vidas, nos comandam. Nós não deveríamos permitir que isto aconteça, não deveríamos sucumbir à influência destes dois fantasmas. Nós temos que ter uma maneira de lidar com estes dois fantasmas, e o método é o modo melhor de se viver só, o modo de viver cada momento no momento presente, não perseguir o passado e não ansiar o futuro.

“O passado não mais existe. O futuro ainda não chegou.” Isso é simples lógica. Todos nós sabemos que o passado é apenas um fantasma, por que deveríamos ficar tão apegados a ele? E o futuro é apenas um fantasma, por que temos de ter tanto medo dele? Existe uma coisa, e é o presente, mas nós não sabemos viver o momento presente, e nós permitimos que o passado e o futuro nos afogue, nos subjugue. “O passado não mais existe. O futuro ainda não chegou.” Existem outras palavras no Sutra que sejam mais precisas, mais concisas? Na verdade nenhuma. Vocês deveriam viver seus momentos diários profundamente, à medida em que acontecem: vivam e saibam que estão vivendo. Como uma flor, vocês sabem que ela está viva, podem observá-la profundamente, podem viver profundamente com ela, e podem ver os níveis profundos da flor. Vocês vivem com um sorriso, vocês vivem com os raios de sol. Todas estas coisas se tornam os objetos de seu olhar aprofundado. Elas são seus amigos na prática. O praticante reside na estabilidade e liberdade, e “residir” significa viver pacificamente. O praticante significa alguém que possui sabedoria, não significa alguém que adquiriu um título, ou que tenha estado em uma universidade. Aqui significa alguém que possui sabedoria, quer dizer, alguém que não é carregado pelos fantasmas do passado, que não é agarrado pelos fantasmas do futuro, alguém que é capaz de viver de um modo pacífico e jovial, sempre no momento presente. Esta pessoa pode se sentar quieta, caminhar em paz, e esta pessoa tem a essência da paz e liberdade dentro de si, e é uma pessoa sábia. Outro modo de traduzir esta frase seria: “a pessoa sábia reside na paz com solidez e liberdade.” Todos os ensinamentos do Buddha que tem sido oferecidos, o Dharma, e o Sangha, estão lá para nos ajudar a viver no momento presente. Quando um monge dá um passo, o monge deve praticar vivenciando-o pacificamente. Cada passo que o monge dá deve ser sólido e livre, e o monge está dando passos como o Buddha. Quando uma monja se senta, ela deveria sentar-se solidamente, como uma montanha, sentando-se em consciência . Nós sempre estamos sendo carregados pelo passado e pelo futuro, mas no Sangha, todo o mundo está treinando para praticar o viver no momento presente, assim quando nós vivemos em um Sangha temos a oportunidade para fazer isto, nos sentar solidamente. Quando nós comemos, realmente comemos. Nós temos quarenta e cinco minutos ou uma hora para comer, e estes são quarenta e cinco minutos ou uma hora de felicidade, porque nós realmente estamos lá. Nós estamos lavando nossas roupas, e isso é nossa prática. Varrer o chão é nossa prática, limpar o banheiro é nossa prática. A principal questão sobre a prática é que nós realmente estamos ali fazendo estas coisas, e temos o Sangha a nos apoiar nisso.

“Nós devemos ser diligentes hoje, esperar até amanhã será muito tarde.” Existe apenas o hoje, vamos fazer o melhor que podemos hoje. Pessoas nos deram todas as condições para praticar a consciência, e todavia nós não a praticamos, dizemos que faremos isto amanhã, que não precisamos fazer hoje. Mas amanhã é muito tarde, devido à impermanência. “A morte vem inesperadamente, como nós poderemos barganhar com ela?” Então você diz para a morte, “Oh, eu não tive tempo para praticar corretamente, me dê alguns dias.” Porém, nós não podemos barganhar assim com a morte, não podemos fazer um acordo com ela. Então a morte se torna algo que nos estimula, nos motiva, nos ajuda a viver em solidez e liberdade. Assim quando o médico diz, ” Você tem mais seis meses,” nós podemos dizer, “Certo, então eu viverei estes seis meses corretamente.” E o médico deveria dizer, “eu farei o mesmo,” porque o médico também não sabe quanto tempo viverá. Assim o fato de ter que morrer ajuda o praticante a saber que os dias que lhe restam tem de ser vividos corretamente, solidamente, em liberdade, com felicidade. Isso é o melhor modo de preparar o futuro para seus descendentes.

Quando o médico diz que você tem seis meses mais para viver, isso é como um sino de consciência para você. Todos nós temos mais seis meses para viver, ou sete meses, ou dez anos, e o Buddha diz, “Seja diligente hoje, esperar até amanhã é muito tarde. A morte vem inesperadamente.” A pessoa que sabe como viver em consciência dia e noite o Buddha denomina “aquele que sabe o modo melhor de viver só.” Aqui eles chamam o Buddha o grande muni. Assim o modo de viver só é viver residindo na consciência noite e dia.

Nós ouvimos falar de histórias de fantasmas e temos medo, mas nós temos uma tendência a gostar de ouvir histórias de fantasmas. As pessoas dizem que de acordo com os cientistas não existem fantasmas, mas claramente existem fantasmas: fantasmas do passado, fantasmas do futuro, esses dois fantasmas que nós encontramos diariamente. Quando éramos crianças, os adultos diziam: “Quando você encontrar um fantasma faça o mudra da paz e diga Om mani padme hum!” e assim aprendemos isso de cor. E uma noite nós tivemos um sonho, e vimos um fantasma, fizemos o mudra de paz e dissemos, “Om mani padme hum!” mas o fantasma não parecia ter ficado com medo. O fantasma apenas ficou lá. Mas aquele tipo de fantasma que nós vimos em um sonho não era um fantasma ruim. Os fantasmas ruins são os fantasmas do passado e do futuro.

Os fantasmas do passado e do futuro, embora sejam fantasmas ruins, se nós sabemos lidar com eles nunca cairemos sob sua influência, só temos que sorrir para eles, só precisamos respirar e retornar para nossa consciência, e a energia de consciência nos ajudará a sorrir e dizer “Oh, eu sei que você é um fantasma”, e eles não podem fazer nada para nos ferir, porque naquele sorriso está o Buddha, o Dharma e o Sangha. A razão de sermos capturados pelos fantasmas do passado e do futuro é porque não sabemos que eles são fantasmas, e o sorriso que dados para eles é o sorriso do esclarecimento. Ele possui a consciência inserida nele, assim nós deveríamos praticar o ato de sorrir para o fantasma do passado, e dizer, “eu sei que você é o fantasma do passado, e isso é tudo que você é “. E então você está livre. O fantasma do futuro é o mesmo. Quando temos medo do futuro, sabemos que o fantasma do futuro está lá. Nós temos de olhar aquele medo, e temos que dizer, “eu sei que você é apenas um fantasma.” Mara aparece muitas vezes em nossa vida diária. Toda vez que Mara aparece, nós temos que dizer, “eu sei que você é Mara.” E o Buddha sorri e diz o mesmo quando vê Mara. Nos sutras, Mara sempre está aparecendo e tudo que o praticante precisa fazer é sorrir e dizer, “eu o reconheço, sei que você é Mara.” Assim quem conhece a prática, sabe que o sorriso de consciência diante do Mara do passado ou do Mara do futuro é o único modo de lidar com eles, e quando nós sorrimos assim, isto mostra que temos amor por nós mesmos, e não fazemos do passado ou do futuro um inimigo. O passado e o futuro não são nossos inimigos.Agora nós vamos ler desde o princípio o Discurso do Conhecimento do Melhor Modo de Viver Sozinho: Eu ouvi estas palavras do Buddha certa vez quando o Senhor estava no monastério no Bosque de Jeta, na cidade de Sravasti. Ele chamou todos os monges e os instruiu, “Bhikkhus!” E os Bhikkhus responderam, “Nós estamos aqui.” O Abençoado ensinou: ” Eu vos ensinarei qual o significado do conhecimento do melhor modo de viver sozinho. Começarei com um esboço do ensinamento, e então darei uma explicação detalhada. Bhikkhus, por favor escutai cuidadosamente.”

” Abençoado, nós estamos escutando.” O Buddha ensinou: Vemos claramente que o Buddha possui um poema aqui, e o Buddha tinha composto este poema, pedindo para os monges que viessem e escutassem-no recitar o poema que compôs, exatamente como o poema que ele deu ao monge, Thera. O Buddha respondeu muito amavelmente a Thera. Ele disse, “Viver só como tu vives, comer só, caminhar só, sentar-se só, estes verdadeiramente são modos de se viver sozinho, mas não são o melhor modo de viver só.” Buddha pensou, “eu tenho que ensinar-vos corretamente.” E então Buddha recitou este poema:

” Bhikkhus, qual é significado de ‘perseguir o passado?’ Quando alguém pensa sobre o modo como seu corpo estava no passado, o modo como seus sentimentos estavam no passado, o modo como suas percepções estavam no passado, o modo como seus fatores mentais estavam no passado, o modo como sua consciência estava no passado; quando ele pensa nestas coisas, e sua mente é arrastada e fica apegada a estas coisas que pertencem ao passado, então esta pessoa está perseguindo o passado.”

Quem é aquela pessoa? Aquela pessoa somos todos nós. Nós todos temos sido vítimas do passado. Nós fomos feridos no passado. Nosso corpo foi maltratado no passado, nossos sentimentos foram destruídos no passado, nossas percepções foram obscurecidas no passado, nossos fatores mentais estiveram envolvidos em tristeza e lamentações no passado, e nossa consciência tem sido coberta em ignorância no passado. Em resumo, no passado, uma pessoa que tem forma, sentimentos, percepções, formações mentais e consciência – nós mesmos no passado -, tem sofrido e estas experiências, estas impressões estão cuidadosamente escondidas nas profundidades de nosso inconsciente. E assim não queremos procurá-las, não queremos relembrá-las, porque toda vez que nos lembramos delas nós sofremos, nos sentimos triste, nos preocupamos. E pensamos que se o passado foi assim, como será o futuro? Assim, quando o fantasma do passado surge — e ele é seguido de perto pelo fantasma do futuro –, temos medo do futuro porque nosso passado foi daquela forma. E porque nossas experiências do passado foram tão tristes, sabemos que se elas forem reavivadas sofreríamos e não poderíamos agüentar, assim nós rangemos os dentes para acabar com isso e fazemos o máximo para enterrar todas as nossas experiências passadas profundamente em nosso inconsciente. Às vezes quando estamos dormindo elas se agitam dentro de nós e ressurgem, e quanto mais tentamos reprimi-las, mais elas tentam ressurgir. Nós temos um mecanismo de defesa que faz o melhor possível para esconder nosso sofrimento de nós mesmos e criar algum tipo de paz e alegria de um modo superficial. Eis como nós conseguimos continuar vivendo. Sabemos que há uma bomba, explosivos, profundamente dentro de nossa consciência, mas que estão encobertos por muitas capas. Nós os enterramos, os empurramos para baixo, e em nossa vida diária, embora não queiramos pensar nestas coisas, elas se movem secretamente na periferia e nos dizem o que deveríamos fazer, nos forçam a fazer coisas. Quando nós falamos, queremos dizer algo suave, mas não dizemos algo suave porque alguma outra coisa está nos ordenando do fundo de nós que digamos algo grosseiro. Queremos abrir nossos corações às pessoas, mas nós não podemos fazer isto, porque estamos sendo comandados pelos sofrimentos que escondemos profundamente em nossa consciência. Assim, no passado nosso corpo era assim, nossos sentimentos eram assim, nossas percepções eram assim, nossas formações mentais eram assim, nossa consciência era assim. Quando pensamos nestas coisas, e nossa mente é arrastada e fica apegada a estas coisas que pertencem ao passado, então estamos perseguindo o passado. Se uma pessoa conscientemente ou inconscientemente regressa ao passado, esta pessoa ainda está perseguindo o passado.

Em primeiro lugar, estamos feridos pelo passado, e secundariamente, sejam do passado experiências muito belas ou feridas, essas coisas nos puxam de volta ao passado. Então, devemos estar atentos de que se não praticarmos sempre seremos uma vítima do Mara do passado. Buddha não quer dizer que devamos esquecer o passado, ou enterrá-lo, ou fingir que o passado nunca aconteceu. Não é isso que Buddha dá a entender. Por que? Porque o passado se tornou o presente, e se nós podemos viver profundamente o presente podemos transformar o passado. No presente temos energias de hábito, energias de hábito muito evidentes no presente, e quando podemos reconhecer esses energias de hábito, e sorrir para essas energias de hábito, poderemos nos livrar dessas energias de hábito e as transformar. Deixem-me recordá-los novamente, podemos voltar ao passado de dois modos. Um modo é conscientemente, expressamente, e o outro é inconscientemente, com um fantasma puxando-nos de volta ao passado. Ao mesmo tempo, o método de prática que nós usamos, chamado “vivendo pacificamente no momento presente,” não é para esconder o fato de que somos influenciados pelo passado, porque todo o sofrimento do passado, toda a ignorância e paixão do passado, estão presentes neste momento. Estão presentes na forma do presente, no modo como nós nos comportamos, no modo como falamos, no modo como caminhamos, essas coisas estão condicionadas pelo que aconteceu no passado. Portanto temos que viver o momento presente para que possamos ver claramente o que está acontecendo no presente, e quando nós vemos claramente, podemos sorrir para isso, e podemos transformá-lo.

O Buddha afirma que a pessoa sábia vive pacificamente no momento presente, olhando a vida profundamente no momento presente. Há dois modos de viver: o primeiro é estar em contato com as coisas maravilhosas da vida, as coisas que têm a capacidade para nos nutrir; assim vivemos no momento presente de modo a estar em contato com os elementos maravilhosos que têm a capacidade de nutrir e curar. E o segundo modo é viver no momento presente de forma a olhar profundamente e poder ver os hábitos, as costumes que estão nos comandando, que estão nos ordenando que digamos coisas que não queremos dizer, que estão ordenando que pensemos coisas que não queremos pensar e ordenando que façamos coisas não queremos fazer, porque eles são destrutivos para nós e para nossa paz. Só quando vivemos pacificamente no momento presente podemos reconhecer e transformar tudo isto. E uma vez que nós o transformamos, então o Mara do passado não pode fazer nada para nos machucar. No passado nós sofremos, e devido ao nosso sofrimento no passado, temos medo. É por isso que no presente temos medo. Não há nada tão importante assim do qual devamos ter medo, contudo nós ainda temos medo. Este medo não está baseado em qualquer coisa – é apenas um hábito. E devido a este hábito temos padrões de comportamento que provoca humores que nos faz sentir mal, perdemos nosso bem estar, nosso sentimento de bem estar. Temos que olhar a vida profundamente como ela é no momento presente e ver a face destas coisas, estas energias de hábito, e dizermos, “Ah ,isto é uma energia de hábito; isso é algo que está me impedindo de abrir meu coração, me impedindo de ser capaz de amar.” E quando estamos em contato e reconhecendo esta energia com um sorriso, esta energia de hábito desaparecerá e o Mara do passado também será transformado. Então, nesta seção, ensina o Buddha que se nós nos permitimos retornar ao passado, permitimos ao Mara do passado nos controlar, e então não temos a oportunidade de viver o presente, e não seremos nutridos e curados pelas coisas maravilhosas do presente.” Bhikkhus, qual é significado de ‘perseguir o passado?’ Quando alguém pensa sobre o modo como seu corpo estava no passado, o modo como seus sentimentos estavam no passado, o modo como suas percepções estavam no passado, o modo como seus fatores mentais estavam no passado, o modo como sua consciência estava no passado… ” isto significa que nós podemos pensar sobre o passado, mas não deveríamos permitir que o passado nos controlasse. O Buddha nunca disse que nós não podemos pensar no passado – nós temos o direito de pensar no passado, pensar que no passado isto me aconteceu, que meu corpo era assim, minha mente era assim, nós podemos pensar nisto, mas não deixem estas coisas os puxarem para todo o lado, ou os aprisionarem.

“Se alguém pensa no modo que estas coisas estavam no passado, mas sua mente não fica escravizada nem apegada a estas coisas que pertencem ao passado, então esta pessoa não está perseguindo o passado.” Algumas pessoas pensam que viver pacificamente no momento presente significa de que elas só podem pensar no presente, que não podem pensar no passado, mas isso não é verdade. Se nós podemos nos estabelecer solidamente no presente, podemos olhar o passado profundamente e podemos ficar livres do passado. Por exemplo, nós contamos uma estória de algo que nos aconteceu no passado. Há dois modos de contar a estória: um, contamos a estória de tal modo que somos completamente apanhados, ficamos presos por aquela história do passado, choramos como uma chuva torrencial e então não podemos mais encontrar meios de escapar disso. O outro modo é quando nos estabelecemos solidamente no momento presente com um irmão ou uma irmã [um amigo ou uma amiga] ao lado de nós, e contamos a estória de nosso passado para eles ouvirem, contamos o que aconteceu exatamente, mas falamos disto de um modo muito equilibrado, e o passado não nos puxa para fazer-nos chorar, lágrimas caindo.

Nós vivemos solidamente no presente de modo a olhar profundamente para o passado. Não deveríamos dizer que a prática de consciência em Plum Village não lhes permitem olhar o passado. Uma vez que estamos vivendo solidamente no presente, podemos olhar o passado. Se somos fracos na prática, precisamos saber como produzir mais consciência , e temos os irmãos e irmãs que nos apóiam para que possamos olhar o passado sem sermos arrastados por ele. E é por isso que o Sangha é importante. Se você quer olhar profundamente no passado, deveria saber quem é mais forte, você ou o fantasma do passado. Se você sente que o fantasma do passado ainda é mais forte que você, deveria praticar mais a meditação andante e a meditação sentada para se fazer mais forte, e então tenha seus irmãos e irmãs sentados perto de você quando olhar profundamente o passado. Assim, este é o programa, poder encarar o passado. Se você vive em um Sangha, com pessoas praticando com você, você tem uma condição muito favorável para poder olhar profundamente no passado.

“Bhikkhus, qual é o significado ‘se perder no futuro? ‘ Quando alguém pensa no modo que seu corpo será no futuro, o modo que seus sentimentos serão no futuro, o modo que suas percepções serão no futuro, o modo que seus fatores mentais serão no futuro, o modo que sua consciência será no futuro; quando se pensa nisto e a mente é arrastada e fica devaneando sobre as coisas que pertencem ao futuro, então esta pessoa está se perdendo no futuro.” E assim temos um tipo de medo. Todas estas coisas são Mara, e se o Mara do passado ou o Mara do futuro lhes controla, vocês não mais serão realmente capazes de viver o momento presente. Vocês deveriam saber que a Terra Pura, o Sukhavati, o Paraíso, só está no momento presente, e perdemos a Terra Pura ou Paraíso porque os fantasmas do passado e do futuro nos puxam para longe do presente. Um Arhat é alguém que pode destruir o Mara do passado e do futuro. Tristeza e medo são os nomes de Mara, de dois fantasmas, dois imensos fantasmas.

(Sino)

Nós deveríamos voltar à história da pessoa que é avisada pelo médico que só lhe resta seis meses para viver. Ele diz, “Certo, sei que morrerei em seis meses.” Mas ele não deveria estar tão seguro que o médico tem razão, porque os médicos freqüentemente erram em suas previsões. Algumas pessoas são avisadas que têm só seis meses para viver mas vivem por muitos anos. Isto depende do modo que nós vivemos. Como sempre, nós dizemos, “Muito bem, de agora até minha morte vou viver corretamente, com paz, liberdade e solidez, e vou fazer da minha qualidade de vida o melhor possível.” E uma vez que esta pessoa fique livre, não é presa pelo passado ou pelo futuro, não tem medo do futuro e pode viver solidamente, livre no momento presente, e vê profundamente que o que a vida significa, então esta pessoa perceberá que seu tempo de vida é ilimitado.

Nós lemos outros sutras. Sabemos que sutras como o Sutra do Lótus e o Vajracchedika Sutra falam sobre o tempo de vida do Buddha como sendo ilimitado. A idéia de um tempo de vida – de que nascemos num momento em particular, e que morreremos em outro momento em particular, e que a vida entre esses dois momentos vem a ser nosso tempo de vida — existe porque não sabemos viver solidamente e livremente no momento presente. Se nós vivemos solidamente e livremente no momento presente e olhamos a vida profundamente, descobriremos que nosso tempo de vida é ilimitado, como o tempo de vida do Buddha. E a coisa que é chamada “nascimento” não pode tocar nossas vidas, e a morte não pode tocar nosso tempo de vida. Percebemos que não há nenhuma vida, nascimento e morte — há manifestação e latência. Podemos estar em contato com o não-nascimento e a não-morte, e depois de seis meses ou sessenta anos, não faz nenhuma diferença. Quando podemos estar em contato com a natureza inata e imortal, nascimento e morte não nos pode oprimir mais. É isso que Tue Trung Thuong Si disse: “A idéia de nascimento e morte nos oprimia, mas agora ela não nos pode tocar mais.” E quando o médico nos diz que temos apenas seis meses para viver, ou se ele diz que temos um mês ou trinta anos, não faz nenhuma diferença, porque nós vamos viver nosso tempo com paz, solidez e liberdade. E se podemos fazer isso, podemos viver muito mais tempo que o médico. O médico pode até morrer antes de nós, porque o médico vive sem consciência , sem paz, sem alegria, sem um Sangha, mas nós fomos despertados pelo som deste sino, e decidimos viver nossa vida com paz, com alegria e esta vida de paz e alegria pode nos ajudar a viver muito mais tempo que o médico. “Bhikkhus, qual o significado de ‘não se perder no futuro?’ Quando alguém pensa no modo que seu corpo será no futuro, no modo que seus sentimentos serão no futuro, no modo que suas percepções serão no futuro, no modo que seus fatores mentais serão no futuro, no modo que sua consciência será no futuro; quando se pensa desta forma mas a mente não é arrastada ou fica devaneando sobre as coisas que pertencem ao futuro, então esta pessoa não está se perdendo no futuro.” Vivendo pacificamente no futuro, não temos medo. Pensamos que tudo o que nos acontecerá no futuro não nos causará medo. Não temos medo da morte, porque vivemos profundamente, olhamos profundamente, e estamos em contato com o mundo do não-nascimento e não-morte, e assim naquele momento sabemos que este cadáver não é nós, não nos identificamos com o corpo, assim não temos nenhum medo. Existem pessoas que pensam no momento em que morrerão, e elas sofrem, elas sofrem pensando em deixar seus entes queridos. E há outras que pensam sobre a morte, e eles podem até sorrir. Por que isso? Qual é a diferença? A diferença é que esta pessoa pode viver o momento presente profundamente, e então vê a natureza de não-nascimento e não-morte da vida, enquanto que aquela outra pessoa não faz assim. Assim, é por deliberadamente não querermos pensar na morte que a tememos. Nós [aqui] realmente pensamos na morte, e fazemos isto para olhá-la profundamente. É dito aos praticantes que diariamente eles devem repetir as Cinco Lembranças:

“Eu pertenço à natureza do envelhecimento; não há nenhum modo de escapar do envelhecimento.

“Eu pertenço à natureza das doenças; não há nenhum modo de escapar de sofrer alguma doença.

“Eu pertenço à natureza da morte; não há nenhum modo de escapar da morte.

“Tudo aquilo que me é querido e todos que amo pertencem à natureza da mudança. Não há nenhum modo de evitar me separar deles.”

O Buddha nos disse para praticar assim diariamente. Buddha é nosso médico. Buddha nos faz lembrar isto para nos ajudar a retornar ao momento presente e viver profundamente o momento presente. E se nós podemos viver profundamente o momento presente, iremos além das idéias de envelhecimento, morte e doenças. Nós podemos sorrir, e se quaisquer destas coisas acontecer conosco estaremos felizes, porque esta será uma oportunidade para um recomeço.

A Quinta Lembrança é “Minhas ações são meus únicos verdadeiros pertences. Eu não posso escapar às conseqüências de minhas ações. Minhas ações são o solo sobre o qual eu piso.” No Sutra vemos claramente que viver no momento presente não impede nosso pensamento sobre o passado ou o futuro, mas nós temos que viver no momento presente de forma a toda vez que olharmos profundamente o passado ou o futuro, nos libertamos e podemos superar nossos medos e nossa tristeza no que concerne a estas coisas. Porque nos ensinamentos da integração do ser, interpenetração, o passado faz o futuro, e o futuro é feito do passado. Portanto, estando em contato com o presente já estamos em contato com o passado e o futuro, mas não estamos sendo arrastados pelos Maras do passado e do futuro.

Vamos ler mais: “Bhikkhus, qual o significado de ‘ser afastado do presente’? Quando alguém não estuda, ou não aprende qualquer coisa sobre o Desperto, ou sobre os ensinamentos de amor e compreensão, ou sobre a comunidade que vive em harmonia e consciência; quando esta pessoa não sabe nada sobre os nobres mestres e seus ensinamentos, e pensa, ‘Este corpo sou eu mesmo; eu sou este corpo. Estes sentimentos são eu mesmo; eu sou estes sentimentos. Esta percepção sou eu mesmo; eu sou esta percepção. Este fator mental sou eu mesmo; eu sou este fator mental. Esta consciência sou eu mesmo; eu sou esta consciência.’ Então esta pessoa está sendo afastada do presente “. Esta seção é muito clara, seu significado pode ser explicado muito claramente pelas duas linhas: “Olhando a vida profundamente como ela é exatamente no aqui e agora.” Quando olhamos a vida profundamente como ela é, nós não pensamos “este corpo é meu”, ou dizemos “este corpo sou eu”. Nós não dizemos “quando este corpo não existir mais, eu não existirei mais”, porque pensando assim teremos medo. E pensar desta forma é o que permite ao Mara do passado e do futuro controlar-nos. Viver então profundamente o momento presente é descobrir a natureza do ser integrado, a natureza de interpenetração de todas as coisas, de forma que não somos conduzidos à toa pela idéia ignorante do ego. Nós não pensamos, “eu sou este corpo, eu sou apenas este corpo; eu sou este sentimento, eu sou apenas este sentimento; eu sou este fator mental, este fator mental sou eu.” Quando não nos identificamos com o corpo, os sentimentos, etc., então não ficamos presos à idéia de um ego, e neste momento não há nenhum fantasma que possa nos influenciar, seja do passado ou do futuro, porque quando podemos viver assim já estamos no mundo do não-nascimento e da não-morte. Quando estamos em contato com este mundo do não-nascimento e não-morte, não podemos ser aprisionados pelo passado, e o futuro não pode produzir nenhum medo em nós. Esta é a essência, a nata dos ensinamentos de Buddha.

“Bhikkhus, qual o significado de “não ser afastado do presente’ Quando alguém estuda, ou aprende qualquer coisa sobre o Desperto, ou sobre os ensinamentos de amor e compreensão, ou sobre a comunidade que vive em harmonia e consciência; quando esta pessoa sabe sobre os nobres mestres e seus ensinamentos e os pratica, e não pensa, ‘Este corpo sou eu mesmo; eu sou este corpo. Estes sentimentos são eu mesmo; eu sou estes sentimentos. Esta percepção sou eu mesmo; eu sou esta percepção. Este fator mental sou eu mesmo; eu sou este fator mental. Esta consciência sou eu mesmo; eu sou esta consciência.’ Então esta pessoa não está sendo afastada do presente.” Poucas palavras, mas nós podemos usá-las toda nossa vida – a quê pertence nossos corpos, a quê pertence nossos sentimentos, nossas formações mentais? — nós as vivenciamos diariamente, e percebemos as causas e condições que provocaram estas coisas. Percebemos que o corpo é só um corpo, originado e condicionado, os sentimentos são sentimentos, originados e condicionados, e nós já não estamos presos a estas coisas, e assim o passado, o futuro e o presente não podem nos oprimir, não podem nos conduzir a esmo.

“Bhikkhus, eu vos apresentei o esboço e uma explicação detalhada do conhecimento sobre o modo melhor de viver sozinho.” Assim o Buddha ensinou, e os Bhikkhus ficaram encantados de pôr seus ensinamentos em prática.”

(Sons de Thay escrevendo) eka significa um, vihari significa viver, e viver sozinho… quando vivemos com um fantasma nós não estamos vivendo sozinhos, estamos vivendo com outro. Você está sentado lá, está comendo sua comida, mas possui o fantasma sentado junto a você, e portanto não está vivendo só. Quando vemos um irmão ou uma irmã sentados com um fantasma, temos que dizer, “Quem está sentado com você?” e então nosso irmão ou a irmã despertará. Assim, não permitam que aquele fantasma os oprima. Nós temos que destruir os fantasmas, destruam Mara. No presente temos paixões, apegos, tristezas, projetos, e quando vivemos com estas coisas não estamos vivendo a sós, estamos vivendo com os fantasmas, e um praticante não deveria morar com fantasmas, nós deveríamos viver sozinhos.

[Fim da Palestra do Dharma]

(Três sinos)


Nota 1:
Para livre distribuição, como exercício de Dharma. Aqueles que desejarem oferecer uma doação ao Templo orientado por Thich Nhat Hanh, podem envia-la para o seguinte endereço:
Transcription Project
Plum Village – Lower Hamlet
Meyrac, Loubes-Bernac, 47120 FRANCE
Site do Templo: http://plumvillage.org/


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