Deus e o Vazio

Texto de Ryotan Tokuda Igarashi
Em outubro de 1989 o monge Tokuda proferiu algumas palestras em Porto Alegre, em uma atividade conjunta do Centro de Estudos Budistas, Departamento de Filosofia/UFRGS e Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência/RS. Estas palestras foram transcritas nas revistas Bodisatva 3, 4 e 5, aqui está a última.

Este título “Deus e o Vazio”, pode parecer estranho. O vazio que é a teoria fundamental do budismo, principalmente do zen, é o “nada”. Dentro do cristianismo também podemos encontrar esta ompreensão do vazio, como nas palavras de São João da Cruz, místico espanhol. Ele ganhou o título de “doutor em nada”.

Como nas palestras anteriores, vou continuar falando sobre mestre Eckart, místico alemão, e mestre Dogen, fundador da linhagem Soto Zen no Japão. Em primeiro lugar escolhi este sermão de mestre Eckart: “Paulo levantou-se do chão e com os olhos plenamente abertos nada viu.” Na minha opinião, esse texto tem quatro sentidos: O primeiro é que, ao levantar do chão com os olhos abertos viu o “nada”, e o “nada” era Deus. O segundo: ao se levantar, nada viu além de Deus. Terceiro, em todas as coisas nada mais viu além de Deus. No quarto, quando viu Deus viu todas as coisas como “nada”. Esta frase “quando Paulo se levantou do chão com os olhos plenamente abertos nada viu” corresponde à experiência de São Paulo quando ia para Damasco. Era contra Jesus Cristo – nunca o vira pessoalmente, mas estava em oposição a ele.

Nessa viagem, escutando a voz de Jesus Cristo, quase desmaiou. Caiu, levantou-se, tornou a cair, ficou cego três dias. Depois sua vida mudou totalmente. Em lugar de atacar Cristo, meio que tornou-se discípulo, mesmo nunca o tendo encontrado pessoalmente. Começou a pregar a palavra de Jesus Cristo para os estrangeiros. Chegou até a brigar com São Pedro. Na Bíblia encontramos esse tipo de experiência mística de São Paulo e São João.

Comentada por mestre Eckart, a frase me lembra mestre Dogen no capítulo “vida e morte” do Shobogenzo, onde dois monges discutiam, “Em vida e morte existe Buda, logo, prá que preocupar com vida-e-morte? ‘Vida-e-morte’ é o mesmo que ‘samsara’; mundo ilusório. Na vida ‘samsara’; que vivemos com vida, morte, sofrimentos, existe Buda. Por isso, não se preocupe com essas dores e sofrimentos, dizia um. E o outro, “Não, nada disso, em vida-e-morte não existe Buda, não há que preocupar com vida e morte, pelo contrário.”

Um dizia que dentro da vida existe Buda e o outro afirmava o contrário. Discutiram até que um deles, percebendo que não conseguiam sair do impasse, propôs inquirir o mestre, que respondeu, “Um está muito próximo e o outro longe”, e o monge que perguntou insistiu, “Mas quem está mais perto e quem está mais longe?” e o mestre falou, quem está mais próximo não precisa perguntar. Em suma, quem perguntou, perdeu.

Se existe ou não existe Buda dentro de vida-e-morte é questão ociosa, ambas as posições são verdadeiras, ambas são a mesma. São as duas faces de uma moeda. Uma moeda é composta das duas faces. Com pontos de vista diferentes chega-se a diferentes conclusões, da mesma forma que o desenho de um cubo, visto de um ponto ou outro, também muda.

Mestre Eckart vê na experiência de São Paulo quatro possibilidades. Na primeira, quando ele se levantou do chão com os olhos abertos e viu o “nada”, o “nada” era Deus. Na segunda, ao se levantar ele nada viu além de Deus. Na terceira, em todas coisas ele nada mais viu além de Deus. Isto é igual à discussão anterior sobre o Buda em todas as coisas. Ou seja, em vida-e-morte existe Buda, por isso você não precisa se preocupar. Dentro de todas as coisas você pode encontrar Buda, Deus. Quarta: quando viu Deus, viu todas as coisas como “nada”. Esta é a outra possibilidade. Dentro de vida-e-morte não existe Buda nem Deus, mas “nada”. Por isso não é necessário se preocupar com vida-e-morte.

Há outras passagens de mestre Eckart: “A luz que Deus é brilha no escuro. Deus é que é a verdadeira luz. Para ver isso a pessoa deve estar cega e deve tirar para fora de Deus tudo o que é algo. Um mestre diz que aquele que falar de Deus através de qualquer semelhança, fala de modo simplório Dele. Mas falar de Deus através do ‘nada’; é falar Dele corretamente. Quando a alma unificada entra na total auto-abnegação, encontra Deus como um Nada.”

Aqui se diz “quando se fala de Deus através do nada, fala-se Dele corretamente”. Uma vez um dos monges, discípulo direto de Buda, cujo nome era Subhuti – aquele que no Sutra do Diamante faz as perguntas porque entende sunya, o vazio, profundamente -, estava sentado em meditação sobre uma pedra. Profunda concentração. De repente, sente algo cair sobre si. Eram pétalas de flores. “o que está acontecendo?!” perguntou surpreso, e Deus Brama apareceu, “o que está fazendo aí?” Subhuti: “Admirando…” Brama: “Admirando o quê, qual nada, estás falando o vazio.” E Subhuti: “Não estou falando nada”. Então Brama concluiu, “É precisamente isso, estás explicando perfeitamente o vazio”, enquanto pétalas caíam.

A história aqui é mitológica, pertence à mitologia budista. Diz em resumo que quando você não fala, fala perfeitamente, com o sermão do corpo, das figuras, dos gestos, que mostram o interesse, atenção, cansaço, etc. O corpo fala também durante a meditação. Estando naquele estado, o vazio fala perfeitamente. A luz de Deus brilha na escuridão, Deus é a verdadeira luz. Para ver isso deve-se estar cego, e tirar fora de Deus tudo o que é algo. Cego como ficou São Paulo durante três dias. Necessariamente.

Há outro discípulo de Buda cujo nome é Anuruda. Em certa ocasião, durante um sermão de Buda, ele, sem querer, caiu no sono. Buda chamou sua atenção. De tão envergonhado, ele tomou a decisão de dali em diante não mais dormir. À noite, não mais deitava, meditava sentado dia e noite. Esse treinamento forte o deixou cego. Ele perdeu uma visão, mas diz-se que isso lhe abriu outra.

Muita gente diz “abriu o terceiro olho”. Os budistas falam no olho do céu. Falam que temos cinco tipos de olho: o olho de carne, ou olho físico; o olho de sabedoria, que permite ver as coisas invisíveis; o olho do céu; o olho de Darma; e, por último, o olho de Buda. Assim, indo além do olho físico, você começa a ver as coisas que anteriormente não via. As pessoas acreditam no que estão vendo, mas será que você está vendo as coisas mesmo, ou a projeção de coisas de sua mente consciente e inconsciente?

Ri-se de uma historia zen muito engraçada. Havia uma padaria em frente a um templo budista. O monge precisou viajar e pediu que o dono da padaria cuidasse do templo, atendesse visitas, etc. Ocorre que chegou um monge viajante à aldeia. Antigamente os monges viajavam, numa espécie de treinamento monástico, visitando outros monges, mestres e mosteiros. Desafiavam os mais fortes no Darma, e mantinham-se treinando. O recém-chegado também praticava assim. Nessas batalhas do Darma, com perguntas e respostas, quem perdia era obrigado a deixar o templo; quem ganhava podia ficar como responsável. Uma batalha do Darma era algo muito sério. Não era uma batalha de luta, mas de conhecimento, de experiências, de linguagem.

O monge visitante estava chegando e o dono da padaria, preocupadíssimo, ouvia a sugestão do chefe da aldeia, “Raspe a cabeça, coloque o manto e apenas sente-se diante da parede como se estivesse meditando. Faça como se estivesse em treinamento de silêncio, nada fale, nem escute e nem responda.” O dono da padaria se animou, “Ah, é fácil, isso eu posso fazer.” Raspou a cabeça, colocou o manto e sentou-se voltado para a parede. Nisso chegou o monge visitante e começou a fazer perguntas sobre o Darma, a doutrina budista. O dono da padaria assumiu um tom grave e fez “Shhh”. O monge entendeu, Ah, ele está fazendo muitos dias de treinamento de silêncio, mas já que estou aqui depois de tão longa caminhada nas montanhas você vou aproveitar e perguntar com gestos, assim ele também pode responder com gestos, sem quebrar seu voto de silêncio.

Gesticulando, perguntou, Como é seu coração, seu espírito? O dono da padaria respondeu com um grande gesto para as dez direções, ou seja, os quatro pontos cardeais, os quatro pontos médios entre eles, para cima e para baixo, “Meu coração é corno o oceano.” Veio a segunda pergunta “Como viver este mundo?”, e o dono da padaria mostrou os cinco dedos da mão, panca sila, os cinco preceitos: não matar, não roubar, não cometer adultério, não conduzir os outros a erros, não usar intoxicantes. O monge sentiu-se tocado, “Ah, que bonito!” E mostrou três dedos da mão, perguntando, “Onde estão as três jóas, o Buda, o Darma, a Sanga?” Ao que o dono da padaria respondeu com o punho, “Não procure longe, está aqui muito perto, perto do olho, está aqui.” Impressionado, o viajante foi embora.

Vendo isso, o chefe da aldeia correu até o padeiro, “O que aconteceu? Ele foi embora muito impressionado, me conta”, e o dono da padaria explicou, “Aquele monge é muito estúpido, primeiro, fez um gesto com as mãos, perguntando quanto custava o pão, se o pão era muito pequeno, e eu abri bem os braços mostrando que meu o pão é bem grande. Ele perguntou quanto custavam dez pães e eu mostrei-lhe cinco dedos, dizendo cinco moedas, mas ele me mostrou três dedos, pedindo que vendesse por três, e eu pensei, que sem-vergonha, e por pouco não lhe acertei um soco no olho!”

Esta é uma história muito engraçada que mostra cada um vendo o que está pensando em sua própria mente, interpretando à sua maneira. Quando você fica velho, toda a manhã pega o jornal e busca qual página? A necrológica! … As cruzes com preto e dourado… Ah, morreu com oitenta e cinco anos, coitadinho, eu tenho 77 (risos), mas isto não é brincadeira para uma pessoa. Eu, ao abrir o jornal, nem penso na seção necrológica, nem na policial, mas corro logo os olhos para ver o que passa no cinema… “Karatê Kid III, ah, isto é interessante!…” O que você vê depende de seu interesse. Aquilo que não lhe interessa, ainda que esteja lá, você não vê. Muitas vezes ocorre o oposto, você vê o que não existe, você cria. Por isso, não confie muito naquilo que esteja vendo. Como podemos ver as coisas verdadeiramente? Como já disse em palestra anterior, aqui há uma mesa, mas mesa o que é? Madeira, árvore, pregos e o que mais? Afinal de contas, nada, vazio. Tudo é vazio.

Para ver a verdade você tem que ser cego e tem que abrir a outra visão, o olho de Buda, 0 olho da sabedoria, o olho do Darma, e com isso você pode começar a ver as coisas invisíveis, ver até o que o outro está pensando, ou o que irá acontecer daqui a dez anos. Às vezes a gente vê e isto realmente acontece, não é algo sobrenatural. Meditando, aquela onda de consciência, a mente fica completamente tranqüila, como o lago rodeado de montanhas altas. Quando não há ondas, a água reflete com perfeição a lua cheia. Zazen é isto, sentando, refletindo, vêem-se as coisas como elas são.

Mestre Eckart: “Apareceu ante um homem como um sonho. Foi um sonho acordado em que ele ficou grávido com ‘nada’; como uma mulher com um filho no ventre. E daquele ‘nada’ um filho nasceu; este era o fruto do nada.” Deus nasceu do nada e por isso ele diz: “levantou-se do chão com os olhos abertos vendo nada.”

O treinamento zen no Japão se dá atualmente através de duas escolas, a escola Rinzai e a Soto. Eu sou da escola Soto mas fui treinado na Rinzai. Quando você encontra pela primeira vez seu mestre no mosteiro, geralmente o mestre dá um koan, uma pergunta, este é o método na escola Rinzai. A primeira categoria de koans chamamos de “hoshin”, ou “corpo cósmico de Buda”. A primeira experiência do zen é através da meditação onde você encontra o corpo cósmico de Buda. Abandonando o ego, desaparecendo o seu corpo, aí há unidade com o universo. Por isso há um koan inicial como o do cachorro, do mestre Joshu, ou o do som de uma só mão. Se batem-se palmas ouvem-se sons, mas quando há só uma mão, qual é o som? Ou o koan do carvalho do jardim da frente, ou ainda o do rosto original antes do nascimento, antes do nascimento dos próprios pais. Estas perguntas paradoxais se destinam a tirar todos os condicionantes mentais anteriores, limpar a mente. Hoje a escola Rinzai ainda treina assim, mas as perguntas e respostas originais eram um pouco diferentes. Um monge perguntou ao mestre Joshu, “Cachorro tem natureza de Buda?” e mestre Joshu respondeu, “Mu”, uma negação. Mas como Buda havia dito que todos os seres viventes têm a natureza de Buda, “Por que o cachorro não tem?” Então Joshu respondeu “Por que tem consciência cármica”. Aí outro monge repetiu a pergunta, “Cachorro tem a natureza de Buda ou não?” Desta vez mestre Joshu respondeu, “Sim”, e o monge complementou, “Por que então entrou Buda neste corpo coberto de pêlos?”

Durante um retiro de meditação intensiva, você tem que fazer entrevista “dokusan” com o mestre, cinco vezes por dia. Você pensa, pensa e imagina ter achado uma resposta maravilhosa, “Ah, que bom!”, e mostra a resposta ao mestre que responde, “O quê? Nada disso! Vá embora!” O monge volta a pensar, pensar e pensar. Esforça-se e novamente pensa ter encontrado uma solução, leva ao mestre e, “Não! Você quer dar sermão para mim? Vá embora.” Desânimo, não era novamente… E assim vai, tentando, tentando… A função do mestre e dizer “não, não, não…”, sempre não! Mais nada deve dizer…

O monge fica sem possibilidades. Depois de um ou dois dias elas estão esgotadas. Sem resposta, não pode mais visitar o mestre. Para responder o quê? Aí, não tendo mais o que pensar, ele senta em zazen, mas os monges veteranos vão buscá-lo, “Venha logo, o mestre está esperando para a entrevista”, e ele responde, “Eu sei, mas não tenho mais nenhuma resposta”. Eles arrastam o monge e o jogam à porta do mestre, “Ainda há tempo, vamos logo, o mestre está esperando!” Quando ele entra, e não há outra alternativa senão entrar, o mestre está na posição formal, sentado ereto, e pergunta, “Quem está aí? Ah, você, vá embora, vá embora.”

O monge tem que entrar e responder, mas já não consegue nem mesmo entrar! Que sofrimento! Ter que responder onde não é mais possível; sentar, a única alternativa é sentar…! Não há resposta possível! Uma semana com cinco encontros diários é algo muito longo! Mas não ha como evitar, é preciso ir e ir novamente, novamente, etc. Cada um, no entanto, tem seus próprios koans, adequados ao seu nível de compreensão. No meu caso foi o primeiro koan, o “mu” do cachorro, de Joshu. ..

Quando se chega ao retiro muitos são os monges novatos e o mestre não se lembra de todos, cada um tem que apresentar o que está fazendo, que tipo de koan está aprendendo. É preciso falar em japonês o enunciado todo do koan em uma voz empostada, uniforme e sem pontuação, mas enfática, como uma recitação de sutra:

“UM MONGE PERGUNTOU A MESTRE JOSSHUUUUuuuu
CACHORRO TEM A NATUREZA DE BUDA OU NÃOOOOoooo
E JOSSHU RESPONDEUUUUuuuu
MUUUUUUUUUUUUUUUUUUuuuuuuuuuuuuu”

E o mestre responde “Humm; ainda muito insuficiente.” Quando você expira, tem que ser como uma cunha que corta um tronco, deve durar dez segundos, quinze segundos, até trinta segundos. Neste momento você não pensa em nada. E assim segue, “MUUUUUuuuuuu….”, dia e noite, como uma bola de ferro fervente, vermelha, queimando todos os pensamentos e idéias anteriores. Você não pode vomitá-la, não pude engoli-la e ela está aqui embaixo do umbigo também, no ponto de “kikai”. E não há resposta; chegando à frente do mestre, apresenta este “MU” e quando está muito bem o mestre resmunga “HUum HUum”. Que alívio, que bom! O monge está concentrado com todas as forças físicas do espírito e da vontade. O “mu” vem do topo da cabeça à extremidade do pé. E assim vai indo, vai indo… De repente, fazendo a concentração de “mu”, você encontra aquela parede, aquele paredão, aquela muralha de ferro. Você se concentra e não consegue, cai, tenta novamente e cai, e assim vai. Isto é mais do que um general enfrentando mil inimigos, pegando aquela espada de três quilogramas, onde ela passa corta tudo. Assim corta todos seus pensamentos anteriores e vai indo, indo, indo, às vezes uma semana, às vezes sete anos; durante sete anos apenas “muuuu…” – tem que ter muita paciência. Mas de repente essa parede quebra. Isto é “kenshu”, a primeira experiência zen. Não é fácil, é necessário ter muita força de vontade.

Voltando ao nosso assunto, cachorro tem natureza de Buda? Não, não tem. Por quê? Buda disse, Todos os seres viventes têm natureza de Buda, então por que o cachorro não teria? Se Buda está falando a verdade, o mestre está mentindo, se o mestre está falando a verdade, então Buda está mentindo. Isso é um dilema. Este é o método do zen, o dilema, buscando limpar todos seus esquemas de raciocínio lógico e com isto penetrar dentro do inconsciente. A função é essa. Hoje em dia vejo assim, mas naquela época não sabia nada disso. Apenas nada havia para ser dito, mas o mestre pegava o monge pelo pescoço e dizia, “Fala, fala, fala!”… Falar o quê? Nada havia para falar! “Fala, fala!” Ufa!! Não tenho nada para dizer!… “Fala, fala”.

E brota o grito “KAAAAAAAAAaaaaaatttzzzz……”. O famoso “katz”. Parece uma loucura, mas é algo muito sério entre os que estão vivendo isso. “Chegou o momento de dokusan, anda.” Atravessando o corredor, passo a passo, firme.

E o fato do monge ter consciência cármica que o impede de atravessar o muro. Quem tem consciência cármica não consegue ver além de seus carmas! Outro monge vem e pergunta ao mestre, Cachorro tem natureza de Buda? Resposta: Tem. Então por que entrou dentro deste corpo coberto de pêlos? Ele entrou com um propósito, sabendo que em vez de entrar no paraíso entra no estado animal, ou no estado dos demônios famintos, ou até no inferno. Ele está pronto para isso. Hoje pela manhã foram citadas estas palavras de São Paulo: “Se for para a glória de Deus, posso ser até mesmo separado de Deus, posso entrar em quaisquer tipo de dificuldades.” Esse é o verdadeiro espírito de bodisatva. Mas quando você entra no inferno, a cada passo que é dado, este mundo muda e transforma-se no paraíso, isso é o que acontece. Isso é uma coisa milagrosa. Moisés atravessou o Mar Vermelho que se abriu para ele. Milagre! Mas isso acontece. Muitas vezes encontramos uma dificuldade insuperável; como atravessá-la se até mesmo a visão não é possível e está tudo nebuloso? É possível ver apenas um passo, dois passos, cinco metros, e só após andar um longo trecho a visão é possível novamente e o nevoeiro esta superado. E preciso ir andando. As dificuldades chegam de todos os lados à volta de você. Pensando logicamente é impossível chegar até lá, mas passo a passo vai-se indo, confiando no caminho de Deus ou de Buda, superando as dificuldades uma a uma e termina-se chegando no outro lado. Sabendo isto, com este propósito, entra-se no estado inferior.

E como o exemplo de ontem. A esposa perdeu a vista e o marido perfurou seus próprios ólhos para acompanhá-la. Deus é isso. Deus está lá, por que precisaria vir aqui? Ele é puro, perfeito, por que escolher este mundo doloroso e chegar até mesmo a viver a crucificação como um criminoso, com suas mãos e pés pregados ao lenho? Ele estava lá tão bem com o Pai. Ele escolheu isto. Escolhendo este mundo inferior, doloroso, sofrido, Deus encarnou, tornou-se homem para ajudar a nós. É isso aí.

Quando cachorro é cachorro, é Buda, porque dentro de todas as coisas Deus está. Além disso nada mais há. Dentro de todas as coisas pode-se ver Deus, apenas Deus, então por que não dentro de um cachorro? Então cachorro enquanto cachorro é Buda. Cachorro é Buda, mas não é preciso dizer que cachorro é Buda. Basta dizer “cachorro”. E por isso que se diz que dentro de vida-e-morte não existe Buda.

Quando se diz “cachorro é Buda”, está se comparando, cachorro está sendo colocado como algo absoluto, como Deus, ou como Buda. Quando cachorro é realmente cachorro, nem é preciso dizer que é Deus, basta chamá-lo de cachorro, pronto. Então, nesse momento, Deus desaparece e com isto surge a perfeição, porque todas as coisas estão no seu lugar, no seu estado perfeito, absoluto, cada um de nós também. Neste momento você tem que realizar, não amanhã, ou depois de amanhã, mas nesta vida. Por isso se diz, aqui e agora você tem todas as condições. As jóias do tesouro já estão dentro de sua casa, apenas é necessário abrir a porta e usar livremente.

RESPOSTAS A AUDIÊNCIA

Não sei por que no Oriente a ciência não se desenvolveu. Creio que é pelo fato de a ciência, de certo modo, ser muito analítica e no Oriente trabalhar-se mais com a intuição.

O que me preocupa como médico de medicina oriental é que o pensamento da ciência, buscando encontrar a verdade – e isso é muito bom -, se lança em analisar mais e mais, perdendo a visão global. A medicina oriental já se preocupa com isto, descobrir os meridianos. Dentro das orelhas com a auricultura, encontra- se todas as partes do corpo. Dentro das palmas das mãos também encontra-se todas as partes do corpo, da mesma forma nas palmas dos pés e no intestino grosso. Dentro dessas pequenas partes, o conhecimento da medicina oriental permite encontrar fígado, estômago, baço, pâncreas, etc. Não sei como foi isso descoberto.

Hoje em dia a medicina tradicional está muito preocupada em analisar e encontrar a verdade “no fundo”, e com isso perde a visão global. O que acontece? Cada especialista de fígado, estômago, pulmão, vista, orelha, etc., perdeu a visão global da relação de cada órgão com os demais. Não sei como os orientais descobriram isto pela própria experiência. Hoje em dia a ciência está começando por baixo, aceita que existam os meridianos, que existam essas teorias – e realmente existem e funcionam.

Então estamos vivendo o momento em que a experiência está à frente mas carece de explicações lógicas. O médico que incorpora práticas orientais milenares não tem explicações para o que observa e pratica, apenas vem praticar a arte da cura através da experiência. Desta forma, neste momento a ciência está começando a provar o que já se praticava há muito tempo na medicina oriental. De certo modo, podemos dizer que a ciência está atrasada e que agora é que começa a incorporar essas experiências.

Nos Estados Unidos fizeram uma experiência muito interessante: primeiro uma câmara focava um parque em pleno centro da cidade, Nova Iorque ou Boston. No parque havia um casal de namorados sentados e abraçados. A partir desse ponto, a câmara começa a afastar-se cada vez mais, mostrando inicialmente o banco, depois o parque inteiro, a cidade inteira, a região metropolitana, o estado, o país inteiro, o continente americano, e afastando-se mais e mais, o globo terrestre e ainda a Terra como uma estrela entre outras. Depois voltando novamente até o parque, com o casal conversando no banco, e continua aproximando mais e mais, a pele, o interior do corpo, o átomo, o elétron, o próton e o que mais. Conseguindo isso, até onde é possível ir? Essa é a questão.

Primeiro a busca das causas; a questão dos físicos e da ciência é, ao mesmo tempo, uma questão religiosa: “de onde veio a vida?” Os cientistas podem criar uma coisa com alguns materiais. Se não tiverem os materiais como ponto de partida, nada podem fazer e criar. Aí vem a pergunta “Deus nasceu de nada, como pode acontecer isso?” Ainda não temos resposta para isso, tanto na ciência como na religião.

Fazendo como a câmara que se afasta, indo até os confins do universo, será que o universo tem fim ou não? Todos querem essa resposta mas ela não é conhecida, então como é o final do mundo? O universo é como um prédio grande? Mas então, ultrapassando a parede desse prédio, o que há além?

O infinito não pode ser imaginado. E o vazio, o que é isso? Não entendo. Essa é a busca dos cientistas e da mesma forma é também a busca dos religiosos e dos budistas.

Mergulhando-se mais e mais encontra-se o que? Encontra-se aquela experiência direta, o vazio, e vazio é tudo. Esse vazio não significa haver ou não-haver, ou o niilismo. Quando há o nada, há o tudo ao mesmo tempo. Encontra-se essa resposta. Aqui não há lógica. Encontra-se o tudo, mas com intuição direta, com experiência própria é que se encontra e com certeza absoluta. Sente-se isso, e isso é o encontro com Deus como o “nada”.

FONTE: https://www.sotozencuritiba.org/deus_e_o_vazio.php



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