Está certo



Está certo

Texto de Charlotte Joko Beck,
extraído do livro”Sempre Zen

A iluminação está no próprio cerne de todas as religiões. Porém, muitas vezes compomos uma estranha imagem do que isso seja. Equacionamos o estado iluminado ao estado em que tivermos ficado perfeitos, muito calmos e tranqüilos, sossegados e acolhedores. E não é isso.

Farei agora algumas perguntas a respeito de certos estados desagradáveis. Não estou dizendo que não devamos tentar evitá-los ou mudá-los, tampouco que não devamos ter preferência ou aversões bem marcadas a seu respeito. Apesar disso, com esses exemplos, podemos começar a ter algumas pistas e, quando temos pistas, podemos enxergar com mais nitidez o que estamos fazendo em nossa prática. Eis as perguntas:

• Se alguém me diz: "Joko, você vai viver só mais um dia", está certo para mim? Ou se alguém lhe diz isso, está tudo bem?
• Se estou num acidente grave e minhas pernas e meus braços têm de ser amputados, está tudo bem? Se isso lhe acontecesse, estaria tudo bem?
• Se nunca mais eu fosse receber um comentário amistoso ou encorajador de outra pessoa, estaria tudo bem?
• Se, por algum motivo, tenho de ficar acamada e com dores pelo resto da minha vida, estaria tudo bem?
• Se eu me comportar como uma idiota na pior circunstância possível, estaria tudo bem?
• Se o relacionamento íntimo que você espera que aconteça nunca se concretizar, estaria tudo bem?
• Se, por alguma razão, eu tiver de levar minha vida como mendiga, comendo pouco, sem teto, exposta ao frio, estaria tudo bem comigo? E com você?
• Se devo perder alguém ou alguma coisa que me é muito importante, estaria tudo bem?

Bem, não posso responder que para mim estaria tudo bem em qualquer uma dessas situações, e, se vocês forem honestos, não poderão também. Mas responder que sim seria o estado de iluminação, se entendemos o que significa estar tudo bem em termos das coisas. Não quer dizer que eu não vá gritar, chorar, protestar, odiar o que aconteceu. Cantar e dançar são as vozes do dharma, assim como lamentar-se e reclamar. Estar tudo certo não implica que eu fique feliz com a situação. Então o que significa estar tudo certo? O que é o estado iluminado? Quando não houver mais qualquer separação entre eu e as circunstâncias de minha vida, sejam elas quais forem, então esse é o estado de iluminação.

Claro, apresentei um conjunto bastante desagradável de opções. Em vez disso, eu poderia ter perguntado: "Se você tivesse de ganhar um bilhão de dólares, estaria tudo bem?". Talvez vocês respondessem: "Claro!". No entanto, ter um bilhão de dólares representa praticamente tantas dificuldades quanto as existentes na vida de um mendigo. De qualquer modo, a questão é se está tudo bem com vocês levarem a vida que têm, com as circunstâncias que a compõem, com o que lhes acontecer. Não me refiro a uma aceitação cega. Tampouco a não fazer nada em caso de uma doença, por exemplo. Mas as coisas, às vezes, são inevitáveis. Há muito pouco que se possa fazer: nesses casos, está tudo bem?

Vocês podem alegar que a pessoa para quem qualquer situação é aceita sem reservas não é humana. De certo modo, vocês têm razão: ela não é humana. Ou talvez possamos dizer que é verdadeiramente humana. Podemos afirmar as duas coisas. Entretanto, a pessoa que não oferece nenhuma resistência às circunstâncias, sejam elas quais forem, não é um ser humano como nos acostumamos a conhecê-lo. Conheci poucas pessoas que se aproximaram dessa condição. Esse é o estado iluminado: o estado de uma pessoa que, em grande grau, pode incorporar toda e qualquer condição, boa ou má. Não estou falando de um santo. Estou falando daquele estado (em geral precedido por uma luta imensa), em que fica tudo certo. Por exemplo, quantas vezes já nos indagamos quando iremos morrer. A chave não é aprender a morrer com bravura, e sim aprender a não precisar morrer com bravura. Podemos ter essa aceitação em pequenos setores de nossa vida, mas no geral gostaríamos de ser uma coisa bem diferente daquilo que somos. Uma atitude deveras interessante: não aprender a tolerar qualquer circunstância, mas aprender a não precisar de uma atitude em particular para cada circunstância.

A maioria das terapias tem, como propósito, ajustar minhas necessidades e meus desejos aos seus, para propiciar uma paz entre nós. Contudo suponhamos que não faço objeções a qualquer uma de minhas necessidades ou meus desejos, ou a qualquer uma das suas está tudo perfeito só do jeito que está então o que precisa ser ajustado? Pode-se dizer que alguém que conseguisse responder "sim" a qualquer uma das perguntas seria uma pessoa muito estranha. Não acho. Se a encontrassem não notariam nada de diferente. Provavelmente, sentiriam uma paz imensa na companhia dela. Alguém que se dê pouca importância, que pouco se preocupa consigo, que está disposto a ser como é, e a deixar que tudo o mais seja como é, verdadeiramente amorosa. Vocês sentiriam que essa pessoa seria encorajadora nos momentos apropriados ou não, quando isso também fosse adequado. Tal pessoa saberia fazer a distinção, saberia o que fazer, porque ela seria você.

Portanto, gostaria que vocês considerassem o seguinte: qual é a base que lhes permite responder com um "está tudo certo, não tenho nenhuma reclamação" diante de qualquer condição da vida? Não quer dizer que nunca fiquem aborrecidos, mas há uma base sobre a qual se assenta a vida, de tal sorte que vocês possam responder "está tudo certo" seja lá o que aconteça. O que estamos fazendo com nossa prática (saibam-no ou não, queiram-no ou não) é aprender como usar essa base, esse fato que pode terminar nos ajudando a responder "está certo". Ou, como no Pai-Nosso: "Seja feita a vossa vontade".

Uma forma de avaliar nossa prática é ver se a vida está cada vez mais "tudo bem" para nós. Claro que não há problemas quando não podemos afirmar isso, mas ainda assim será essa a nossa prática. Quando algo está certo para nós, aceitamos tudo aquilo; aceitamos nossos protestos, nossas lutas, nossa confusão, o fato de que não estamos chegando a parte alguma com nossa maneira de enxergar a vida. Desejamos que todas essas coisas continuem: a luta, a dor, a confusão. De certo modo, esse é o treinamento do sesshin. Enquanto ficamos sentados do começo ao fim dessa prática, vai lentamente aumentando um certo entendimento: "É mesmo, estou passando por tudo isso e não gosto; gostaria de sair correndo. Mas também está tudo certo, de algum modo". Isso vai crescendo. Por exemplo, você pode estar desfrutando a vida com seu parceiro e pensar: "Uau, é isso mesmo que eu desejo!". De repente, ele vai embora; o sofrimento agudo e a experiência dele é o que está certo. Quando praticamos o zazen, ficamos em cima desse koan, desse paradoxo que dá base à nossa vida. Cada vez mais sentimos que, seja o que for que nos aconteça, independente de detestarmos ou não o acontecido, de termos ou não de lutar contra essa situação, ela está certa, de alguma maneira. Parece que estou criando uma prática difícil? Contudo, a prática é difícil. O mais estranho, no entanto, é que as pessoas que praticam dessa forma são as que gozam a vida, como Zorba, o grego. Esperar nada da vida abre a possibilidade de desfrutá-la imensamente. Quando acontecem coisas que muitos considerariam desastrosas, aquelas pessoas podem até lutar e espernear, mas ainda assim desfrutam-na: está tudo certo.

A menos que não compreendamos de jeito nenhum o que é a prática em sesshin, cada vez mais seremos capazes de apreciar os esforços, o desgaste, a dor, tudo que detestamos nela. Não nos esqueçamos daqueles momentos maravilhosos do sesshin em que nossa alegria e capacidade de apreciação realmente nos surpreendem. Com essa prática vai se acumulando um resíduo que é o entendimento. Não tenho tanto interesse pelas experiências de iluminação como pela prática que consolida o entendimento, porque, conforme vai aumentando, nossa vida muda de modo radical. Pode não mudar como gostaríamos. Aumenta nossa capacidade de compreender e de apreciar a perfeição de cada momento: nossos joelhos e costas doloridos, o comichão em nosso nariz, o suor. Aumenta nossa capacidade de dizer: "É está tudo certo". O milagre de ficarmos no zazen é o milagre de~rec1ar.

Para mim seria muito difícil se eu nunca mais pudesse receber um comentário amistoso ou gentil. Isso está certo para mim? Claro que não, mas qual seria então a prática? Se eu fosse raptada em algum país não civilizado, trancafiada numa cela, qual seria a prática? Coisas assim tão drásticas não acontecem com a maioria. Entretanto, numa escala menor, os desastres acontecem a te-dos e nossas imagens de como a vida deveria ser são desfeitas como bolhas de sabão. E quando temos uma escolha: encararmos o desastre de frente e torná-lo nossa prática, ou correr mais uma vez, não aprendendo nada, nem crescendo com as dificuldades. Para termos uma vida pacífica e produtiva, o que precisamos? Precisamos da habilidade (que aprendemos de forma lenta e contrariada) de sermos a experiência de nossa vida tal como ela é. A maior parte do tempo eu não a quero e suspeito que vocês também não. Porém, é para aprender isso que estamos aqui. E, apesar de surpreendente, estamos aprendendo. Quase todos ficam mais felizes depois de um sesshin. Talvez porque tenha terminado, mas não só por isso. Depois de um sesshin, o simples caminhar por uma rua é uma coisa fantástica. Não o era antes do sesshin, mas depois é. Pode ser que essa vivência não dure muito. Três dias depois já estaremos procurando a próxima solução. No entanto, teremos aprendido algo a respeito do erro deste tipo de busca. Quanto mais tivermos vivenciado a vida em todas as suas manifestações como alguma coisa que sempre está certa, menos seremos motivados a dar-lhe as costas numa busca ilusória de perfeição.


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