Flamboyant em chamas



Editora Vozes

Prefácio
Quando conheci Thich Nhat Hanh, foi por acaso. Ou melhor, aceitei ir a um retiro meramente para conversar com alguém do Vietnã, fosse ele monge ou não: Budismo, Zen, eram palavras que pouco significavam para mim. Minha ignorância a respeito do conteúdo dessas palavras era total. Vietnã, pelo contrário, significava muito: a culpa coletiva, a corresponsabilidade pelas várias guerras, pelos horrores passados por um povo sem que o resto do mundo fizesse algo suficiente a fim de parar aquele genocídio. Significava o filho vietnamita que eu quis adotar sem que Saigon deixasse: significava Dien Ben Puh; significava falar francês. Tudo menos meditação. Quando me vi sentada (pela primeira vez em posição de lótus, ai de mim!), a coisa com que me deparei de pronto foram dois tamancos que pareciam mover-se a alguns milímetros do solo. Era o próprio Thay, como seus discípulos o chamam. Dava a impressão de flutuar. Quando posteriormente li seus livros, percebi que ele estava levando às últimas conseqüências o que ensinava: "Ande como se pisasse em flores de lótus, sem amassá-las".

A segunda surpresa com que me defrontei foram duas crianças, de três e quatro anos, que ele segurava pela mão e que, juro, ficaram "meditando, andando" durante vinte minutos, medidos no relógio, em silêncio total, sem nenhuma impaciência, acompanhando em perfeita harmonia seus passes miúdos. Tive a impressão que a calma do Thay, a paz que ele irradia, faria com que pudesse entrar incólume numa jaula de leões. Tive a impressão que ele transcendia a paz. Que ele era a própria paz.

Durante a meditação e as palestras, sentei perto dele e, fitando-o, eu via simultaneamente um menino de doze anos e um ancião de 200. Não consegui adivinhar sua faixa etária: não tinha uma ruga sequer; seu sorriso era o de uma criança; seus olhos também sorriam, mas refletiam uma sabedoria de quem tinha visto tudo. Parecia eterno (Depois soube que tinha 62 anos).

Ouvi então suas palestras. Com minha falta de prática nesse gênero, pareceu-me uma poesia oriental, um canto, um encanto. Ao mesmo tempo que exalava paz, exalava agora poesia.

Fiquei também impressionada com seu delicado senso de humor. Com sua voz, contrastando terrivelmente com a nossa, exuberantemente latina; respondia simples e inesperadamente, de maneira suave e gentilmente irônica, às perguntas, nem sempre brilhantes, que lhe fazíamos: "na meditação andando, é melhor começar com o pé direito ou esquerdo?". Respondia ele: "Que bom não sermos centopéia para só termos uma alternativa". Perguntávamos se era melhor sentar em posição de lótus ou meio-lótus. Respondia: "Lótus, meio-lótus ou crisântemo". E se insistíssemos para saber como era a posição de crisântemo, respondia que era "qualquer outra posição". Como podia uma pessoa que tinha visto tanto horror nos olhos das crianças ser tão alegre, manter um eterno sorriso e brilho nos olhos? Enigmas para mim.
Enigmas, até que li seus livros. Até que traduzisse este. E com que prazer! Nunca nenhum trabalho me deu tanta alegria. Sou-lhe grata por ter-me confiado essa tarefa.

Seria injusto não mencionar aqui, agradecendo-lhe, Irmã Phuong ("Flamboyant" em vietnamita), uma monja-anjo de guarda-cantora, que acompanha e ajuda o Thay e que me mandou muitas informações preciosas sobre detalhes do Vietnã, para melhor entender alguns aspectos da tradução francesa.

Para que faixa etária se destina esse livro? Foi uma pergunta que me fiz ao longo da tradução e que é tão indefinível quanto a idade do Thay. Parece ser ora para adolescentes, ora para adultos. Ou talvez, como diria Saint-Exupéry numa fórmula clássica: "Destina-se à criança que ainda vive dentro de nós". Aos jovens que lerem este livro e que não acompanharam a guerra do Vietnã quero dizer que não se trata de ficção. Quase tudo é verdade neste livro e, assim, vivenciado pelo Autor. Os bombardeios, os rostos dilacerados das crianças, os desfolhantes, a dor das crianças perdidas dos pais e a dos adultos impotentes para mitigar a dor das crianças, infelizmente nada disso foi ficção. O monge que pregava a paz e era aprisionado por isso, as praças de mercado bombardeadas, os fiamboyants em chama, tudo isso foi verdade para maior vergonha da humanidade.

Para quem conhece o budismo, será fácil reconhecer neste livro, apenas sugeridos, muitos traços da sua filosofia. Já no século XIII, Dogen, mestre Zen, dizia:
"A cor das montanhas é o corpo puro de Buda.

O som da água escorrendo é seu grande sermão."

Observação — Como em todos seus livros, os direitos autorais, assim como os do tradutor, são doados a crianças carentes brasileiras. E já que o livro me foi tão precioso, recorri à ilustradora que considero a melhor:

Inês Cabral de Melo, que também doou seu magnífico trabalho.

Giselle Machline de Oliveira e Silva


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