Nada fazer, não ir a lugar algum

Comentário 11 

Neste ensinamento, Mestre Linji nos diz que temos de regressar a nós mesmos e confiar em nós mesmos. Não devemos mendigar migalhas de outras fontes, quer sejam Budas, mestres, professores espirituais, sutras ou outras escrituras. As coisas que procuramos não estão nessas fontes. Esta mensagem aparece com freqüência nos ensinamentos de Mestre Linji, mas é especialmente clara aqui. Se procurarmos uma coisa fora de nós mesmos, jamais a encontraremos. Temos todas as sementes da condição de Buda dentro de nós. O Buda e os mestres não pertencem ao passado, nem ao futuro, nem a qualquer outro lugar. Eles estão aqui conosco neste momento.

Mestre Linji perguntou: “Quereis saber quem é nos­so mestre, o Buda? O Buda sois vós mesmos, que estais aqui diante de mim, escutando-me ensinar o Darma”. Essa afirmação é muito revolucionária. Nossa verdadeira pessoa é o Buda e o mestre, e essa verdadeira pessoa está precisamente dentro de nós. Todos os Budas e todos os mundos dos quais se fala nos sutras são produtos de nos­sa mente, produtos da consciência. Não devemos procu­rá-los no espaço e não podemos encontrá-los no tempo. Só podemos encontrá-los em nossa consciência. Quando aprendemos os sutras e os comentários, quando escutamos o Darma, nós temos de manter a nossa liberdade. Quando nos deixamos atrair, provocar e seduzir por imagens que as pessoas nos apresentam, nós nos perdemos.

“Amigos na Senda, todos os virtuosos monges da Antiguidade ofereceram uma senda de libertação aos seres humanos. A obrigação deste monge montanhês é apenas encorajar-vos a não permitir que as pessoas vos iludam. Meu conselho deve ser aplicado de imediato. Não sejais indecisos nem duvideis”.

Ao tratar seu público de “Amigos na Senda”, Mestre Linji queria dizer que eles eram seus colegas praticantes, pessoas que seguiam juntas pela mesma senda, como as águas de um rio. Quando disse “este monge montanhês”, ele referia-se a si mesmo. Professores budistas do passado têm mos­trado as portas do Dharma, meios hábeis para ajudar-nos a encontrar uma saída do sofrimento. Entretanto, se não com­preendermos esses ensinamentos bem-intencionados podere­mos ficar presos a eles, amarrados a palavras e idéias, e en­tão tais ensinamentos podem virar um empecilho.

Há professores que receiam perder seus seguidores e seu templo se falarem a verdade. Eles temem que, se não fizerem e disserem o que os seguidores querem, não conseguirão pagar as contas de telefone e eletricidade e não terão onde viver nem praticar. Isto acontecia na China na época do Mestre Linji e acontece hoje na Europa, nos Estados Unidos e em outros países. Mas Mestre Linji não era como outros professores. Ele tinha a coragem de falar a verdade que tinha no coração; ele só queria ser uma pessoa verdadeira.

O Venerável Manh Giac escreveu um poema sobre a leitura do Sutra do Diamante 

Eis duas linhas desse poema:

 Não mais existe o Sutra do Diamante.

A porta zen desaparece e eu estou sem palavras.

Nós somos expulsos do templo.

Temos a boca presa e não conseguimos dizer nada.

 O que estes poemas estão dizendo é que se deixamos que outros nos desnorteiem, acabamos por perder-nos. Não devemos correr atrás de nada nem de ninguém, nem mesmo de um mestre zen. Tudo o que aprendemos e escutamos deve ser capaz de trazer-nos de volta para nós mesmos e aumentar a nossa capacidade de sermos livres, felizes, estáveis.

Pode ser que ouçamos este ensinamento e o entendamos.  Mas talvez sejamos ainda fracos e indecisos e pensemos “Tudo bem, amanhã ou depois vou arrumar as coisas para poder ter liberdade”. Mas um rio nunca para de fluir; se hesitarmos, nunca teremos liberdade. Se compreendermos o ensinamento, devemos pô-lo em prática de imediato.

Mestre Linji disse que se os praticantes budistas de seu tempo não conseguiam alcançar a iluminação, era porque eles não tinham confiança. Hoje, assim como na China do século IX, precipitamo-nos em busca de coisas externas e depois nos sentimos manipulados e controlados pelas situações em que nos metemos. Se conseguirmos parar com essa ideia de procurar e correr atrás de coisas, veremos que não há diferença entre nós e os mestres, entre nós e o Buda.

Nós realizamos cerimônias tais como tocar a terra, acender incenso ou estar em contato com uma estátua ou um altar, para manter ou renovar nossa confiança em nós mesmos. Devemos prestar homenagem e tocar a terra diante do Buda de modo a percebermos que aquele que se inclina e quem é destinatário da reverência são um só. Prestamos homenagem ao Buda de maneira tal que a fé em nossa capacidade de ser iluminados – de ser felizes ­se fortaleça e cresça a cada dia.

A escritura budista diz que o Buda tem três corpos. Então, nós ficamos perdidos nas palavras “três corpos” e procuramos este ou aquele corpo, sem alcançar a paz, a libertação e a grandeza que é o Buda vivo em nós. Os três corpos de Buda são o corpo do Dharma, o corpo de retribuição e o corpo de transformação. O Buda tem milhares de corpos de transformação e, se não tomarmos cuidado, nós buscaremos esses corpos em todo canto menos em nós próprios. Nós procuramos essas coisas sem perceber que são apenas produtos da imaginação da mente. Alguns chamam o criador de Todo-poderoso, como se fosse alguém fora de nós e que tem todo o poder. Se acreditarmos nessa imagem, acreditaremos que depois de morrer iremos para o Reino de Deus e sentaremos aos pés do To­do-poderoso. Pensamos que ele está num lugar superior e que tem o poder de conseguir o que quiser, enquanto nós estamos aqui embaixo num lugar muito inferior.

O mesmo acontece no budismo. Imaginamos o Re­verenciado pelo Mundo rodeado de luz ilimitada e de inúmeros bodisatvas. Este Buda tem os trinta e dois si­nais auspiciosos e as oitenta características especiais, além de milhares de corpos de retribuição, corpos de transformação e corpos do Dharma. Aonde iremos para encontrar um Buda? E para encontrar a Deus? Não po­demos achá-los em belas imagens e obras literárias. As pessoas que escreveram a Bíblia e os sutras Mahayana eram artistas que se valiam de imagens para exprimir suas visões interiores.

Disse o Mestre Linji: “Se neste exato momento vós não sois capazes de encontrar o Buda em pessoa, por inúme­ras vidas vindouras tereis de renascer nos três reinos do samsara, sempre buscando alguma coisa da qual vos apossar que vos faça sentir satisfeitos, nascendo continuamente no útero de um bovino ou asinino”.

Neste exato momento estamos escutando o Dharma, e o Buda está conosco, está dentro de nós. Neste momento, se não conseguimos tocar o Buda, não deveríamos falar sobre o futuro. Só o momento presente é real. Se perdermos o momento presente, não poderemos entrar em contato com o Buda e por milhares de vidas seguiremos no ciclo de samsara, sendo concebidos, nascendo e morrendo como os humanos e outros seres.

Todos os mundos do Buda estão contidos neste mo­mento, nós podemos chegar a eles com facilidade e esse é o poder milagroso. Para termos acesso a esse poder, tudo o que precisamos é escutar o sino da consciência e dei­xar que ele nos introduza plenamente no momento atual. Ao ouvirmos o sino, abandonamos todo pensamen­to, retornamos à respiração e fazemos contato com tempo e espaço ilimitados, com o passado, o presente e todos os mundos. Não há Budas com os quais não possamos fazer contato neste momento.

Mestre Linji perguntou: “Hoje, em toda atividade co­mum que vós realizais, sentis falta de alguma coisa? Há algum momento em que os seis raios de luz milagrosa não resplandeçam?”

As seis luzes milagrosas são nossas consciências sensoriais: visão, audição, olfato, paladar, tato­ e pensamento. Em nossa consciência, a mente luminosa manifesta-se. Se usamos estas seis luzes milagro­sas com habilidade, nós somos os Budas. Isto é, em cada instante do nosso dia a dia temos de fazer brilhar a luz da plena atenção. Vemos alguma coisa e sabemos o que estamos vendo, ouvimos alguma coisa e sabemos o que estamos ouvindo. Quando olhamos, olhamos como o Buda. Quando cheiramos, cheiramos como o Buda. Quando tocamos, tocamos como o Buda. Quando pen­samos, pensamos como o Buda. Se em todo momento nossos seis poderes milagrosos estiverem irradiando, nós não teremos nada a fazer. Tornaremo-nos o que Mestre Linji chamava de “pessoa sem objetivo”. Este é o espíri­to do ensinamento de Buda sobre a falta de propósitos, apranihita, uma das três portas da libertação.

O Mestre Linji ensinou que “nenhum dos três domínios é seguro. Estes domínios são como uma casa em chamas. Eles não são o lugar para vós terdes vossa morada da vida inteira. A impermanência está constantemente lá, como um demônio, para estender sua mão e tirar-vos a vida, sem distinguir entre jovens e velhos, nobres e humildes”.

Os três mundos de desejo, forma e não-forma carecem de paz. Eles são como uma casa em chamas, um lugar onde não devemos ficar muito à vontade ou por muito tempo. A casa em chamas é uma imagem do Sutra do Lótus. O demônio da impermanência é a morte. A mão dele segura uma gadanha, com a qual ele destrói inces­santemente, sem distinguir entre jovens e velhos. Como escapamos da casa em chamas?

Mestre Linji ensinou: “Se não quereis ser diferentes do Buda, nosso mestre, não corrais atrás de coisas que estão fora de vós. Todo instante em que vossa mente consegue refletir a luz da pureza é o corpo do Dharma do Buda que está bem aqui em vosso lar”.

[…]

Do livro: NADA FAZER, NÃO IR A LUGAR ALGUM

Thich Nhat Hanh

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