O corpo de fé

Retirado do livro
Jesus e Buda, Irmãos
de Thich Nhat Hanh

No budismo, considera-se a fé como uma fonte de energia. Com fé, com a energia da fé, vocês estão mais vivos, mais bem-dispostos. Mas fé em quê? Esta é a questão. Quando vêem ou ouvem alguma coisa, podem estar convencidos de ser algo verdadeiro, bom e bonito. De repente, têm fé naquilo. Mas estejam atentos porque o objeto desta fé talvez não esteja ali por muito tempo. Podem perder a fé algumas horas8u dias depois, porque o que viram ou ouviram não foi uma percepção correta. Quando vocês põem a crença em prática, descobrem que ela não funciona e assim perdem a fé. Quando põem a crença em prática, descobrem que ela funciona, no entanto, pouco mais tarde, quando tentam fazer novamente a mesma coisa, não surte efeito e, mais uma vez, perdem a fé. Por quê? A resposta é que a fé é uma coisa viva. A precisa crescer e se desenvolver A fé limitada apenas a um conceito será como um objeto inanimado. Quando partimos de um conceito e nos mantemos presos a ele como o objeto da nossa fé, arriscamo-nos, mais tarde, a perder a fé.

Fé tem a ver com compreensão e saber. Suponhamos que você vê alguém fazendo tofu. Você acredita não ter perdido nenhum detalhe, então tem fé que pode fazer tofu sozinho. Junta todos os ingredientes e tenta fazer tofu, mas não dá certo. Você não é capaz de fazê-lo. De modo que retorna à pessoa, pedindo que lhe ensine de novo. Agora você faz o tofu na presença dela, assegurando-se de que tudo foi feito da maneira correta. Depois de bem-sucedido, você adquire a fé que o ajudará a conseguir fazê-lo. Diz a você mesmo que nada nem ninguém podem abalar a sua fé na habilidade para fazer tofu. Talvez acredite que o seu modo de fazê-lo seja o único ou o melhor Um ou dois anos depois, no entanto, você conhece uma pessoa que faz tofu de maneira muito diferente e ainda mais saboroso. Você aprende mais e aperfeiçoa a própria arte. A sua fé é algo vivo. Depende da sua atenção para ver e compreender

Nos meios budistas, as pessoas falam sobre libertar-se do conhecimento. Quando você sabe alguma coisa, atém-se ao seu conhecimento. Não está disposto a libertar-se dele e isso se torna um obstáculo no caminho da prática. No budismo, o conhecimento pode ser considerado um obstáculo. Muitas pessoas tentam acumular conhecimento, e um dia talvez entendam que o que possuem tornou-se um obstáculo à sua compreensão. A palavra em sânscrito para "conhecimento como obstáculo" é jneyavarana.

Saber e compreender são duas coisas totalmente diferentes. Quando subimos uma escada, a não ser que abandonemos o degrau inferior, não conseguiremos subir ao próximo, mais elevado. O mesmo se aplica ao conhecimento. Se você não estiver disposto a se livrar do seu conhecimento presente, não conseguirá obter um nível mais profundo sobre a mesma coisa. A história da ciência o comprova. Você descobre algo novo que o ajuda a obter um melhor entendimento. Está consciente de que algum dia terá que abandonar aquilo para descobrir uma coisa mais profunda e de nível mais elevado. O ensinamento budista de libertação do conhecimento é muito importante.

O processo de aprender e compreender tem a ver com a fé. Quando se abandona um conceito, uma compreensão, a fé aumenta. Precisam livrar-se do tipo de budismo que aprenderam quando tinham vinte anos de idade. A noção de Buda que tinham aos quinze ou vinte anos de idade é bastante diferente do seu conceito atual, quando a compreensão é mais profunda e mais próxima da realidade. Mas vocês sabem que precisam se libertar de todos os conceitos para conseguir aprofundar o seu entendimento sobre Buda.

Em função da compreensão, a fé também sofre mudanças. A fé é algo vivo que se alimenta da compreensão. Este é um fato muito importante que não devemos, de forma alguma, esquecer Se nos prendermos a um conceito ou se acreditarmos que aquilo é a verdade mais elevada, estaremos perdidos. Se acreditarem que o que sabem é o pico mais elevado do conhecimento humano, estarão perdidos. Esta espécie de crença não é considerada correta.

E necessário que estejam dispostos a abandonar os conceitos sobre Deus, a maneira como entendem Jesus e como compreendem o Buda. Sabem que para subir uma escada precisam abandonar o degrau mais baixo para chegar ao próximo. Sabem que, apesar de tê-lo abandonado, ele os serviu. Foi-lhes útil no processo de aprendizado e prática.

Como vocês precisam crescer na vida espiritual, não podem se manter presos a uma idéia. Suponhamos que estejam em perigo ou com problemas e não saibam o que fazer. Ajoelham-se e rezam a Deus, ou a Avalokitesvara, o Bodhisattva da Atenção Compassiva. Subitamente, tudo se resolve e vocês acreditam no poder da oração. Pode acontecer que nada funcione na próxima vez em que estiverem com os mesmos problemas e se ajoelharem para orar. Nesse caso, perderão a fé em Deus ou no Bodhisattva Avalokitesvara. Esta é uma oportunidade para examinarem a própria compreensão e maneira de rezar. Perder a fé não é agradável e motivo de muito sofrimento. Buda nos alertou diversas vezes que precisamos ter cuidado quanto ao nosso conhecimento.

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