O dzogchen com relação aos vários níveis do caminho budista

Texto extraído do livro: “O Cristal y la Via de la Luz”
de Namkhaï Norbu RinpocheTraduzido para o português por Karma Tenpa Dhargye




Abandona todas as ações negativas,
Atua sempre com perfeita virtude,
Obtém o domínio total
De tua própria mente;
Esta é a essência do Budha.
Budha Shakyamuni

Se surge um pensamento
Observa o que está surgindo;
Se não surgem pensamentos
Observa este estado calmo,
Ambos momentos são igualmente vazios.

Garab Dordje

Para alcançar uma compreensão do Dzogchen será útil considerá-lo em relação à vários outros caminhos espirituais existentes dentro do espectro budista. Ainda que cada um deles tenha sido ensinado para benefício dos seres com um nível particular de capacidade, todos são igualmente preciosos.

Todos os caminhos em questão têm um objetivo comum: a superação do problema que surgiu quando o indivíduo entrou no dualismo, desenvolvendo um espúrio “eu objetivo” ou “ego” que experimenta o mundo como algo separado de sí, externo e objetivo, e que em cada momento trata de manipular esse mundo com o objetivo de obter satisfação e segurança. Na verdade, jamais se poderá alcançar satisfação e segurança desta maneira, já que a causa do sofrimento e da insatisfação não é outra que a sensação fundamental de estar incompleto que é conseqüencia inevitável de encontrar-se no estado dual e, ainda mais, todos os fenômenos aparentemente externos em que tentamos basear nossa satisfação e nossa segurança são transitórios ou impermanentes.

Budha shakyamuni foi um indivíduo totalmente realizado que manifestou um nascimento humano na Índia, nos sec. V a.C, com o objetivo de poder ensinar outros seres por meio de suas palavras e de seu exemplo. Como o sofrimento é algo muito concreto, que todo mundo conhece e quer evitar na medida do possível, o Budha falou sobre ele no seu primeiro ensinamento, as “Quatro Nobres Verdades”. A primeira verdade nos exhorta a descobrir o fato de que sofremos, assinalando a existência da insatisfação básica e inelutável que é inerente à nossa condição.

A Segunda Nobre Verdade explica a causa da insatisfação, que é o estado de dualidade e a ansia insasiável que lhe é inerente: o sujeito valoriza seus objetos e tenta agarrá-los por todos os meios e, por sua vez, esta ansia afirma e sustenta a ilusória existência do sujeito como uma entidade separada da totalidade integrada do universo.
A Terceira Nobre Verdade ensina que o sofrimento cessará se superarmos o dualismo e alcançarmos a reintegração, de modo que não nos sintamos separados da plenitude do universo.

Finalmente, a Quarta Nobre Verdade explica que há um caminho que conduz à cessação do sofrimento, que é descrito pelo conjunto dos ensinamentos budistas.

Embora todas as tradições reconheçam a existência do problema básico do sofrimento, seus métodos para enfrentá-lo e conseguir que o indivíduo recupere a vivência da unidade primordial são diferentes.

A tradição hinayana do budismo o “caminho da renúncia”, ensinado pelo Budha sahkyamuni em sua forma humana é expresso mais tarde em forma escrita no que se conhece como os sutras. A tradição em questão considera o ego como uma árvore venenosa, e o método que aplica poderia ser comparado com escavar para arrancar uma a uma as raízes desta árvore. O indivíduo tem que superar todos os hábitos e tendências que se consideram negativas e obstáculos para a liberação. Em conseqüencia, neste nível há muitas regras de conduta, estabelecidas por votos, que regulam todas nossas ações. O ideal é o do monge ou da monja, que toma o máximo número de votos; muito bem, independentemente de que sejamos monges ou praticantes laicos, se considera a nossa forma de ser comum como algo impuro a que devemos renunciar. Trabalhando da maneira descrita, mediante o desenvolvimento de vários estados de meditação devemos recriarnos como indivíduos puros que transcenderam as causas do sofrimento, ou seja, como arhats que não voltam ao ciclo de nascimentos e mortes na existência condicionada.

Do ponto de vista do mahayana, perseguir desta maneira somente a própria salvação e tentar transcender o sofrimento enquanto os outros continuam sofrendo, não é precisamente ideal. No mahayana considera-se que se deve trabalhar por um bem maior que o próprio, antepondo ao desejo de alcançar para sí mesmo a realização, o desejo de que todos os demais seres se realizem, e inclusive voltando constantemente ao ciclo de sofrimento para ajudar a outros a trancende-lo. Quem pratica desta maneira é chamado de bodhisatva.

Embora o hinayana ou “veículo menor” e o mahayana ou “veículo maior” pertençam ambos ao caminho da renúncia, seus enfoques característicos são diferentes. Posto que para cortar uma a uma as raízes da árvore se investe muito tempo, no mahayana a pessoa se concentra basicamente em cortar a raiz principal, de modo que as outras raízes sequem por si mesmas. A forma de cortar a raiz principal é trabalhar para descobrir a vacuidade essencial, tanto do sujeito como de todos os objetos, e desenvlver a compaixão suprema. Cabe assinalar que enquanto no mahayana se postula e se deve descobrir a vacuidade tanto do sujeito como de seus objetos, no hinayana somente se postula e deve se descobrir a vacuidade do ego.

Enquanto que no hinayana é imprescindível governar cada um de nossos atos mediante votos. No mahayana o tipo de intenção por trás de nossos atos é considerada mais importante que a natureza dos atos mesmos. Há uma história que ilustra muito bem esta diferença de enfoque. “Um rico mercador que era discípulo de Budha foi com um grande número de mercadores e servos a uma ilha buscar algumas das gemas pelas quais a ilha era famosa. A bordo do barco, durante a viagem de regresso, o mercador se inteirou de que um dos mercadores planejava matar o resto dos passajeiros, que eram centenas, com o objetivo de roubar o carregamento de jóias. O mercador, que conhecia o homem e sabia que, com efeito, este era capaz de matar toda aquela gente, se perguntou que fazer a respeito e, finalmente, apesar de que ele havia recebido de Budha um voto que lhe proibia de tirar a vida de qualquer outro ser, não teve outra alternativa que matar ao assassino-ladrão-em-potencial.

Apesar de que não havia tido outra alternativa para salvar seus companheiros, o mercador tinha uma terrível sensação de culpa pelo que havia feito e, em conseqüencia, tão logo regressou a seu país foi ver Shakyamuni para confessar-lhe sua má ação. No entanto, este lhe disse que não havia feito mal, já que a intenção não havia sido matar senão salvar e proteger aos outros e, mais ainda, posto que de fato havia salvo a vida de centenas de pessoas e também havia salvo ao ladrão do terrível carma da matar aquele grande número de pessoas, assim como das conseqüencias inevitáveis de tão má ação, o mercador havia levado a cabo uma boa ação”. Ao dar tanta importância às intenções que há atrás de nossas ações, o mahayana considera que toda prática deve realizar-se em benefício dos demais.
O budismo zen é um caminho do mahayana. Muito bem, posto que freqüentemente de diz que o zen é um caminho não-gradual, muita gente pensa que deve ser o mesmo que o dzogchen, que também não pode ser considerado gradual. No entanto, tantos os métodos dos sistemas em questão como os resultados obtidos mediante a aplicação dos mesmos são fundamentalmente diferentes.
Podemos dizer que os dois níveis do caminho da renúncia – o hinayana e o mahayana – trabalham, sobretudo ao nível do corpo. O tantrismo, ao contrário, trabalha sobre o nível da energia ou “fala”.

É evidente que a energia é menos concreta que o corpo e menos fácil de perceber. Como é mais difícil entender a energia e seu funcionamento que compreender o simples fato do sofrimento, a capacidade que se requer para praticar o tantrismo é superior a necessária para praticar o caminho da renúncia. Embora o termo sânscrito tantra e seu equivalente tibetano guiü, chegaram a denotar os textos principais que contêm os ensinamentos tântricos, o verdadeiro sentido da palavra é “continuidade”2: todos os fenômenos são vazios, porém seguem manifestando-se. Todos os métodos tântricos trabalham com esta continuidade, tomando como fundamento e ponto de partida a vacuidade de todos os fenômenos que os sutras nos levam a descobrir. (Como veremos mais adiante, também no ensinamento dzogchen há uma continuidade entre a Base, o Caminho e o Fruto do ensinamento: o Fruto é a plena presença da Base, e o Caminho não é mais que continuar nessa presença.

Do ponto de vista do ensinamento dos sutras, a dimensão relativa é um obstáculo que temos que renunciar com o objetivo de descobrir o nível absoluto, que corresponde a vacuidade. Ao contrário, o tantrismo utiliza o relativo para acelerar o progresso no caminho que nos leva além da dimensão em questão, e sua atitude com relação às paixões as quais num nível sútrico se deve renunciar, é a expressa por um ditado tântrico: “enquanto mais madeira-paixões tenhamos, mais fogo-realizações obteremos”.

Existem tantras externos e internos, que também se chamam tantras inferiores e superiores. Ambos empregam a visualização como método principal, porém os tantras externos ou inferiores começam trabalhando ao nível da conduta externa do praticante a fim de conseguir uma purificação de seus pensamento e ação que o prepare para receber a Sabedoria. Assim pois, os tantras externos começam com o que se chama caminho de purificação, que constitui o nível inferior do vajrayana ou “Veículo Indestrutível”.

O nível superior do vajrayana é o caminho de transformação que começa com o terceiro e supremo dos tantras externos, e inclui os três tantras internos. Igualmente aos externos, os tantras internos tomam como fundamento e ponto de partida a vacuidade de todos os fenômenos, porém usam principalmente o yoga interno que trabalha sobre o sistema de energia sutil do organismo a fim de provocar uma transformação da dimensão total do praticante, que se converte na dimensão pura do individuo realizado {Yidam} que se visualizou. Estes métodos foram ensinados por Budha em um “corpo de manifestação” pertencente ao Sambhogakaya e não no corpo físico, e também por meio de outras manifestações da dimensão em questão.

A transmissão do tantra se recebe originalmente através de uma manifestação da dimensão Sambhogakaya que se apresenta a um mestre que tem claridade visionária necessária para percebe-la, e o método de prática a ser aplicado utiliza a manifestação correspondente. Uma vez que a pessoa é iniciada na prática por um mestre, mediante a visualização e a reintegração da própria energia sutil, o indivíduo segue o exemplo da transmissão original e se manifesta como deidade, entrando na dimensão pura do mandala. Então a pessoa descobre por si mesma o sambhogakaya, transcendendo a dimensão mundana dos elementos pesados, que são transformados em suas essências. Quando a pessoa morre, entra na dimensão da luz e da cor que constituem a essência dos elementos e, nesse estado purificado, ainda que a pessoa não esteja ativa no sentido individual, segue sendo capaz de beneficiar continuamente outros seres. Diz-se que o praticante tântrico desenvolvido é como um filhote de águia, que pode voar tão pronto rompe a casca do ovo: no mesmo momento em que a pessoa morre, sem entrar no bardo ou estado intermediário, se manifesta como a divindade de cuja prática conseguiu resultados durante sua vida. Esta realização é claramente diferente da simples cessação do ciclo de nascimento e morte que se persegue na prática do nível sútrico.

Muito bem, apesar de que o veículo tântrico de transformação é mais rápido que os veículos do caminho da renúncia, os quais produzem seus resultados depois de muitas existências, na vida diária é muito difícil desenvolver o controle sobre a energia interna e o poder de concentração necessários para levar a sua culminação o processo de transformação próprio do tantrismo: para desenvolver as mencionadas faculdades se precisam muitos anos de retiro solitário. Ao contrário, o dzogchen não é nem sutra nem tantra; a base para sua comunicação é a Introdução ao Estado Primordial e não em transformar-se em uma manifestação, como se faz no tantrismo. As práticas principais do dzogchen trabalham diretamente no nível da Mente para permitir ao indivíduo descobrir o Estado Primordial, ao que é introduzido diretamente pelo mestre, e continuar nele até a obtenção da Grande Transferência ou o Corpo de Luz. Cabe mencionar que, tal como na realização a que conduz o tantrismo difere das que se obtém como resultado de aplicar as práticas dos veículos do sutra, a Grande Transferência e o Corpo de Luz são próprios dos ensinamentos dzogchen e não correspondem as realizações das práticas dos veículos do sutra e do tantra. Estes níveis não serão discutidos aqui, porém no capítulo sobre o Fruto do ensinamento dzogchen.

Embora, como vimos, o dzogchen trabalha principalmente sobre o nível da Mente, os ensinamentos do veículo em questão também comunicam práticas que funcionam no nível da Fala e no nível do Corpo. No entanto, estas são utilizadas para levar o praticante ao Estado de não-dualidade da Contemplação e são secundárias em relação à prática da contemplação não dual. Ainda que somente esta última prática possa ser propriamente chamada dzogchen, um praticante deste veículo pode empregar práticas de qualquer dos níveis do sutra e do tantra se achar necessário a fim de superar os obstáculos que possam bloquear o Estado de Contemplação.
Devido às características comuns de seus métodos, o dzogchen é conhecido como o caminho da autoliberação. Para aplica-lo não temos que renunciar a nada, nem purificar ou transformar nada; o que surja por si mesmo como parte de nossa visão cármica é utilizado como caminho. O grande mestre Pa Dampa Sanguie disse uma vez: “O que condiciona uma pessoa, mantendo-a no estado dualista, não são as circunstâncias que surgem como parte de sua visão cármica. É o apego dessa pessoa para com o que surge o que faz que isso a condicione”. Para cortar o apego da maneira mais rápida e efetiva temos que por em ação a capacidade espontânea de autoliberação inerente ao Estado Primordial.
Muito bem, o termo “autoliberação” não deve nos fazer conceber um “si mesmo” ou ego existente de modo intrínseco que deva liberar-se. Como vimos, o fundamento e ponto de partida do nível dzogchen é o conhecimento de que todos os fenômenos são “vazios de natureza própria” (ou seja, o conhecimento de que nenhum deles existe de maneira intrínseca). A autoliberação do dzogchen implica permitir que qualquer manifestação no campo da experiência do praticante surja tal como é, sem julga-la como boa ou má, bonita ou feia. Se não entram em jogo o apego e a fixação, aquilo que surge – independentemente de que se trate de um pensamento discursivo ou da conceitualização intuitiva de um fenômeno aparentemente externo – se liberará automaticamente por si mesmo no preciso momento de sua manifestação, sem que faça falta realizar esforço algum e sem que intervenham a volição ou a intenção. Se praticarmos dessa maneira, as sementes da planta venenosa da visão dualista nunca terão a oportunidade de germinar e, portanto, a indesejável planta jamais poderá lançar raízes e crescer.

Assim pois, o praticante de dzogchen vive sua vida de uma maneira comum, sem ter que sujeitar-se a um código de regras religiosas, porém sem que jamais se interrompa sua vivência do Estado de inseparabilidade primordial, pois tudo o que surge como parte de sua experiência se integra com dito Estado sem que ele manifeste sinal externo algum de estar praticando. Isto é o que indicam os termos “autoliberação”, “dzogchen” ou “Grande Perfeição”, e “contemplação não-dual” ou simplesmente contemplação. Ainda que durante minha educação na universidade monástica estudei e pratiquei todos os caminhos, meu mestre Changchub Dordje me ajudou a compreender o valor particular dos ensinamentos dzogchen, que são os que estou principalmente interessado em ensinar.

A fim de apresentar com claridade uma grande parte da terminologia que se usa geralmente na discussão dos ensinamentos, em continuação se inclui um quadro esquemático no qual se compara e relaciona o dzogchen com os vários níveis de tantra e os dois veículos do sutra. É necessário advertir, não obstante, que o mesmo não implica uma hierarquia de ensinamentos com o dzogchen na cúpula. Com efeito, todo o esquema pode ser invertido de modo que o dzogchen fique na base, ou também poderia deixar-se como está, porém lido desde a base até acima, que é a seqüência de apresentação dos diferentes níveis no caminho gradual, no qual cada estágio tem que ser completado antes de entrar no seguinte. O dzogchen é diferente do caminho gradual porque nele o mestre introduz o discípulo diretamente na “Grande Perfeição”, que constitui o coração de todos os caminhos.

Há muitos caminhos porisso a cada indivíduo temos que oferecer um ensinamento apropriado para sua capacidade. E se para alguém o ensinamento do sutra é o mais apropriado, na medida em que para essa pessoa seja o mais efetivo poderá dizer-se que para ele ou ela é o “mais alto”. Qualquer uso das palavras “alto” ou “mais alto” em relação com os ensinamentos dzogchen, deveria entender-se sempre tendo em conta esta importante advertência.


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