Praticando com a Sangha as Seis Harmonias

Ensinamentos do Mestre Thich Nhat Hanh
Retiro de 21 dias em Plum Village
de 2 a 21 de junho, 2000

Transcrição e tradução de Tenzin Namdrol

A Sangha é um organismo, é mesmo um super organismo, em que os indivíduos são meras células. Dizem os Evangelhos cristãos que, “sempre que dois ou três de vocês se reunirem em meu nome…” e assim aludem aos números dois e três. Na tradição budista uma Sangha é constituída por um mínimo de quatro pessoas, mas cinco é ainda melhor. Para reunirmos uma Sangha, tenhamos em mente este número mínimo de cinco, caso contrário não é ainda uma Sangha. Cinco membros podem tomar decisões que dizem respeito à prática e desenvolvimento da Sangha. Existe na nossa tradição um procedimento denominado Sanghakarman, uma reunião formal da Sangha monástica, uma forma de ir ao encontro da Visão da Sangha, a que conduz a uma deliberação democrática sobre tudo o que lhe diga respeito. A visão profunda e a experiência de cada indivíduo fortalecem as experiências e visões profundas do conjunto. Daí chega-se ao consenso que deverá nortear a atividade da comunidade.

O tema do nosso retiro é a Visão Búdica alcançada através da Visão da Sangha. Na qualidade de corpo da Sangha temos também a Visão da Sangha, muito mais abrangente que a visão pessoal de seus membros e por isso tomamos refúgio na Sangha. Confiamos na Visão da Sangha , fruto da Visão Búdica alcançada através da Visão da Sangha. Quando a comunicação entre os membros não flui não é uma Sangha portanto, para que sejam efetivas a todos os níveis, as reuniões devem ser frequentes e constantes. Precisamos urgentemente construir e aprender a viver como uma Sangha.

Decorem esta simples fórmula. “A comunidade esta reunida?” pergunta um membro respeitado e de longa data. Outro retruca: “Sim, a Sangha esta reunida.” Quando eu era noviço, aos dezasseis anos, este procedimento comoveu-me muito. Depois de recitar uma gatha ou um sutra com um martelo de madeira em cada mão, emite-se um som curto e sonoro, (no ocidente não existe nada parecido) para que todos prestem atenção, e é feita então a pergunta: “A comunidade esta reunida?” Responde-se: “A comunidade esta reunida.” A pergunta seguinte é, “A Sangha esta em harmonia?” A resposta deverá ser: “Sim, ela esta em harmonia.” Se a resposta for negativa a reunião é cancelada imediatamente e será necessário proceder ao ritual, Recomeço, também chamado de Reconciliação antes da próxima reunião.

Repito, a primeira pergunta é: “A comunidade esta reunida?” …. a Sangha…. reunida….. “A Sangha esta em harmonia?” e a resposta, “Sim, a Sangha esta em harmonia.” A terceira pergunta, “Aqueles que não receberam os Treinamentos da Plena Atenção já deixaram o recinto?” A resposta correta será: “Sim, já deixaram o recinto,” isto porque só quem já recebeu todos os Treinamentos da Plena Atenção pode votar. A Sangha Quádrupla consiste de monges e monjas plenamente ordenados, noviços, e leigos e a Sanghakarman é conduzida por monges e monjas plenamente ordenados. Daí a pergunta, “Aqueles que não receberam os Treinamentos da Plena Atenção já deixaram o recinto?” e a resposta precisa ser afirmativa, portanto os que ainda não receberam a plena ordenação, noviços e leigos deixam o recinto. Só então os bikshus e bikshunis podem começar a reunião. A quarta pergunta é, “Qual é o objetivo da reunião de hoje?” e a resposta, “O objetivo da reunião de hoje é….” e pode ser a leitura dos Treinamentos da Plena Atenção, deliberar sobre a admissão de um novo membro na comunidade ou qualquer outro assunto porque assuntos muito diversos são tratados.

Só monges e monjas plenamente ordenados participam do processo decisório. Num comitê de noviços só os que tenham recebido os Treinamentos da Plena Atenção de noviços podem tomar decisões que afetem a comunidade de noviços. Os membros da Ordem da Inter Existência que tenham recebido os Quatorze Treinamentos da Plena Atenção, antes de proceder a Sanghakarman precisam certificar-se de que estão ausentes os que não receberam os Treinamentos para que a decisão seja válida. Os membros que tenham recebido os Cinco Treinamentos da Plena Atenção precisam certificar-se de que estão ausentes os que não os receberam se para que a decisão também seja válida. Este procedimento democrático data do tempo do Buda e perdura há mais de dois mil e seiscentos anos.

Os monges e monjas plenamente ordenados são o coração da Sangha Quádrupla e seis princípios denominados as Seis Harmonias regem a vida de uma Sangha autêntica.

A primeira harmonia estipula que os membros da Sangha precisam viver sob um mesmo teto, quer dizer conviver durante as 24 horas do dia. Está claramente estipulado que se trata da presença física, estar fisicamente presentes, convivendo, partilhando o mesmo teto, as mesmas facilidades e tudo o mais para ser uma autêntica Sangha. É a primeira condição, a primeira harmonia. Conviver, num mesmo espaço, estar fisicamente presentes.

A segunda harmonia engloba os Treinamentos da Plena Atenção e as Boas Maneiras, regras que são observadas por toda a comunidade. A Sangha de monges plenamente ordenados precisa observar os mesmos duzentos e cincoenta Treinamentos da Plena Atenção. Você sabia que um monge plenamente ordenado precisa aprender e praticar os duzentos e cinquenta Treinamentos? As monjas plenamente ordenadas têm ainda mais Treinamentos para sustentar e proteger as suas aspirações. O treinamento básico para os membros da Sangha é o conhecimento e a prática destes Treinamentos da Plena Atenção. Na pratica dos ensinamentos do Buda precisamos receber os Cinco Treinos da Plena Atenção e recitá-los e comentá-los em reunião para que se enraízem no nosso dia a dia. Temos uma Sangha raiz e um templo raiz. O Treino da Plena Atenção, sila em sânscrito, é a expressão mais concreta da prática da plena atenção que nos permite viver conscientes do que pensamos, de como agimos, de como nos expressamos, uma prática capaz de transformar o pensamento, a ação e a palavra. É uma forma de proteção tanto para nós como para todos os que nos rodeiam. Assim quando praticamos a Plena Atenção protegemos a Sangha e contribuímos para o bem estar e felicidade de todos os seres.

Esta segunda harmonia define a Sangha, porque se ela não esta presente temos apenas um grupo de pessoas e não uma Sangha. Quando nos reunimos para recitar os Cinco Treinamentos da Plena Atenção começamos por recitar a Sanghakarman, recorrendo sempre às mesmas perguntas e respostas. Constatamos se existe harmonia na comunidade ou se ela esta em sofrimento ou transgressão o que acontece quando a prática não é correta ou adequada. A Sangha conduzirá então o ritual Recomeçar e depois determinará a prática para superar a dificuldade. Se houve transgressões ela poderá sugerir sete dias de pena suspensa, ou um período de reclusão que pode ser de cinqüenta dias, três ou nove meses, conforme estipulado no Vinaya. O Vinaya é o código monástico que sugere a melhor forma de contribuir para a formação e transformação de um indivíduo ou de um grupo para que voltem a ser plenamente reintegrados na Sangha.

Suponhamos que alguém tenha transgredido uma regra mentindo, agindo ou falando de forma a causar divisão ou ressentimento na comunidade e que durante a leitura dos Treinamentos da Plena Atenção quando é feita a pergunta se determinado Treinamento foi cumprido o transgressor silencie o que significa uma resposta afirmativa. A pergunta é feita três vezes. “Queridos Irmãos e Irmãs, este é o (Segundo ou outro) Treinamento da Plena Atenção, você se empenhou em aprender, estudar, praticar durante a quinzena passada?” Se houve transgressão e o responsável se cala, está mentindo, o que é uma nova transgressão. Se a transgressão não for admitida durante seis meses e subseqüentemente descoberta será preciso confessar e submeter-se a um período condicional ou de reclusão também de seis meses durante os quais, de dia e de noite estará fazendo a prática de Recomeçar para reintegração na Sangha. Para purificar uma pequena infração do código monástico basta se ajoelhar e confessar-se a um irmão ou irmã. As mais graves exigem muito empenho nas práticas. Muitos monges e monjas se especializam no estudo do Vinaya. Os detalhes são muitos e sutis e são precisos dez ou vinte anos de dedicação ao estudo do Vinaya que compreende os Treinamentos da Plena Atenção e das regras de Boas Maneiras. Deles depende o bem estar da Sangha.

A sua visão profunda, a sua compreensão e sabedoria estão presentes na visão profunda, compreensão e sabedoria (da Sangha) porque a prática de cada indivíduo consta em refletir, estar atento e concentrado na busca de compreensão cada vez mais profunda, quer seja sobre a existência de uma flor ou de uma formação mental. A visão profunda sobre a natureza de todas as coisas é resultado da meditação e nos conduz à compreensão. A felicidade, a tristeza, o medo, a esperança, a raiva, uma pedra, a nuvem, tudo o que existe passa a ser objeto da nossa pesquisa, da nossa meditação. Assim, a plena atenção e a concentração estão presentes em cada indivíduo na comunidade o que aprofunda a visão conjunta e faculta conhecimentos cada vez mais profundos que enriquecerão as trocas nas reuniões.

Assim, a troca é a terceira harmonia. Tudo o que adquirimos, o que recebemos é para ser oferecido livremente nos encontros de Dharma, quando é feita a troca. Sentados em círculo trocamos impressões com os demais membros da Sangha sobre a nossa prática, as dificuldades que encontramos, as realizações e os frutos da nossa reflexão. Temos por missão partilhar tudo na Sangha e beneficiar-nos da sua visão profunda, da sua compreensão e experiências. É preciso que a troca seja permanente para a felicidade, estabilidade e libertação dos seus membros. Quando nos reunimos para conversar sobre práticas e noções de Dharma recorremos à linguagem oral que nos permite transmitir experiências e visão profundas ainda que a Sangha se comunique perfeitamente em muitos níveis e de diversas formas.

O desenvolvimento da ciência no ocidente desde o início do Séc.XVII deve-se a uma troca intensa de conhecimentos que continua até os nossos dias. Publicações freqüentes especializadas atualizam os cientistas nas suas áreas de interesse facilitando pesquisas subsequentes. À rápida disseminação da informação se deve também o progresso da ciência no ocidente.

Sino

Precisamos envidar todos os nossos esforços na elaboração de sistemas de coleta e de transmissão destes fragmentos do conhecimento científico. A troca é vital para o desenvolvimento e assim também uma Sangha autêntica se constrói sobre uma comunicação intensa e incessante.

Aprendemos que quando nos sentimos agredidos, magoados, feridos, devemos voltar à nossa essência, à respiração consciente para não sermos tomados pela raiva. A respiração consciente, aliada à visão profunda, é o melhor antídoto contra a manifestação da raiva e permite mesmo superá-la uma vez manifestada, uma técnica que aprendemos uns com os outros. Os ensinamentos também podem nos levar a esta compreensão e são transmitidos de muitas maneiras. Por exemplo, quando nos mantemos calmos e sorridentes apesar de nos sentirmos agredidos e estarmos a ponto de explodir—estamos nos comunicando. Esta é uma forma enfática de comunicação e os membros da Sangha estão conscientes disto, observam a nossa firmeza, vêm que sabemos nos proteger, que a nossa prática é frutífera, admiram a nossa capacidade de permanecer tranquilos em situações difíceis e pensam, “se outros conseguem, porque não eu?” Estamos outra vez comunicando!

Não é só quando ensino que eu me comunico com a minha Sangha porque me comunico também quando caminho, observo, ajo ou reajo, sentado ou lidando com as dificuldades que surgem na Sangha. Isso faz com que numa Sangha autêntica a comunicação seja constante e que a realidade da visão profunda possa ser comunicada. Temos muitos jovens na nossa Sangha que transmitem paz, alegria e felicidade. Expressam-se e agem de forma extraordinária. Eles não transmitem o Dharma através de palavras mas pela suavidade dos seus gestos, pela forma de caminhar, sentar, sorrir e tudo isso é a terceira harmonia, indispensável a uma Sangha autêntica.

Temos acesso a muitas formas de comunicação e dedicamo-nos todo o tempo à acumulação, ao processamento e à recuperação de informação. Temos a internet e podemos trocar, armazenar, transferir… podemos fazer qualquer coisa para acrescentar ao manancial de informações de que dispomos. Mas a transmissão de palavras e conceitos não nos basta, necessitamos também de outros tipos de informação, como por exemplo, como ser felizes, livres, compassivos. É muito mais difícil transmitir idéias e conceitos.

Sabemos que as abelhas, as formigas e o cupim se comunicam sem cessar e de muitas formas. Nós os humanos nem sempre temos facilidade de nos comunicar, chegamos a ter sérios bloqueios. Para que a comunicação possa fluir aprendemos a lidar com os nossos obstáculos que são o preconceito, a inveja, a raiva, a arrogância, etc. Na Sangha estamos empenhados em afastá-los e transformá-los para facilitar a comunicação.

Uma monja da Aldeia Nova fala pouco, não dá palestras de Dharma, não tem idéias inusitadas. Vive simplesmente, como uma monja mas esta muito empenhada na sua prática monástica: é feliz, firme, dedicada e transmite tudo isto fazendo com que todos se beneficiem com a sua presença. Apesar de falar pouco transmite muito, tanto ao nível da ação, quanto ao nível da não ação, ao nível do simples “ser.” Seríamos todos mais felizes se tivéssemos este mesmo dom de comunicar a um nível tão profundo esta terceira harmonia. As seis harmonias são vitais para reunir e manter uma Sangha.

A quarta harmonia diz respeito à palavra. Com a palavra amorosa harmonizamos a comunidade. Tomados por fortes emoções usamos palavras ásperas causando sofrimento ou divisão na Sangha. Por isso uma das quatro harmonias é a prática da palavra amorosa sem a qual, não pode haver felicidade mesmo quando as demais harmonias são bem praticadas. A palavra carinhosa fomenta a concórdia e preserva a paz.

Agitados, não transmitimos com clareza o que sentimos e se quisermos ser ouvidos precisamos escolher o momento adequado. Sempre haverá tempo para voltarmos ao assunto. Temos o direito de transmitir o que sentimos quando não afeta a harmonia e a paz da comunidade. Espere até ser capaz de anotar numa folha de papel o que sente e espere estar calmo bastante para expressar-se com tranqüilidade e amor.

A quinta harmonia diz respeito aos recursos materiais que devem ser partilhados igualmente porque pertencem à comunidade que provê comida, teto, assistência médica, etc para os seus membros. Desde o tempo do Buda um monge só pode possuir três vestes, uma cuia de esmolar e um filtro para a água. Para receber os votos monásticos são precisas três vestes ainda que uma única seja suficiente. As demais servem de agasalho nos dias de frio. O monge que não possua estes itens não pode ser ordenado.

Quando era noviço, a prática de beber um copo de água parecia-me extraordinária. Inspiramos e expiramos visualizando um número infinito de pequenas criaturas na água. A prática profunda da meditação permite ver o que os demais não vêm e o Buddha via num copo de água via 84,000 criaturas sem microscópio nem qualquer outro instrumento científico. Recomendou aos discípulos que usassem um filtro para a água, que inspirassem e expirassem e recitassem um mantra para desenvolver a compaixão ao bebê-la. Convém lembrar que o guia do noviço foi elaborado há 400 anos, séculos antes do nascimento de Louis Pasteur.

A palavra vietnamita para a sexta harmonia significa feliz, alegre e diz respeito às nossas idéias e conceitos porque cada um de nós percebe o manifesto de forma pessoal. Esta harmonia diz respeito à arte de combinar as sugestões que a Sangha recebe antes de agir para poder satisfazer o conjunto. Quando surge uma idéia, é freqüente que surja logo outra até contraditória. A prática consta de observar profundamente para conhecer a natureza das sugestões. Observadas profundamente não são mais contraditórias, podem mesmo ser complementares. Partindo da tese, chegamos à antítese e sabendo agir desta forma encontramos a verdade na síntese. Somos livres para expressar o que pensamos mesmo se contradiz a afirmação do outro. Para a felicidade de todos, a Sangha encontrará a forma de reunir a sabedoria de muitas propostas. A arte de combinar as sugestões é a sexta harmonia, uma prática sugerida pelo próprio Buda e que conduz à felicidade da comunidade. Estas são as práticas das seis harmonias.

Praticando as seis harmonias reunimos uma Sangha. Isto não pode ser feito por correspondência, telefone, correio eletrônico nem tampouco através da transmissão de votos monásticos. É preciso conviver, participar das práticas, trocar idéias para que a Sangha seja um refúgio. Podemos fazer parte da grande Sangha, mas ainda existe a Sangha raiz. Os membros da grande Sangha se beneficiam da existência da Sangha nuclear e precisam ir ao seu encontro com frequência nos retiros de Plena Atenção. Os que tenham recebido os Quatorze Treinamentos da Plena Atenção constituem uma Sangha autêntica sempre que se reúnam, seja duas ou quatro vezes por semana, mas perdem esta qualidade ao regressarem ao seu cotidiano. Surge então a necessidade dos membros da grande Sangha se reunirem com a Sangha nuclear tanto quanto possível.


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