Práticas para o Século XXI

Thich Nhat Hanh
Retiro em Lower Hamlet
21 de julho, 1996
Traduzido ao Português por Carmem Feijó.


Bom dia, queridos amigos.

Hoje é dia 21 de julho, 1996. Estamos em Lower Hamlet. Hoje falamos em inglês.

Em minha mente, o século XXI é como uma colina, uma bela colina cheia de belas árvores e caminhos e crianças. Faltam apenas quatro anos para começarmos a subir a colina do século XXI. Vocês sabem que um século é um período de cem anos. Eu conto com todos vocês na subida. Devemos planejar nossa subida de tal maneira que a alegria, a felicidade sejam possíveis. Estamos agora no ano de 1996. Temos pela frente 1997, 1998, 1999 e 2000, apenas quatro quilômetros. E temos apenas quatro anos para nos preparar para o próximo século.

O século XXI parece, de alguma forma, com um lindo jardim. Esperamos encontrar flores, frutas, belas árvores, belos rios e riachos – um lindo jardim onde todo ser vivo tenha a oportunidade de viver, tenha o direito de ser. Não apenas a pessoa humana, mas também o esquilo, também o caracol, também a serpente terão seus lugares naquele jardim do século XXI. Devemos ter coqueiros, pés de kiwi, mangueiras e outras árvores. Teremos todos os tipos de animais. Para que possamos ter um jardim tão lindo, uma colina tão bela para subir e para permanecer, temos de nos preparar. Se vocês ainda não se sentem prontos, então devem juntar-se para discutir a estratégia: como começar o século XXI com confiança.

Como vocês sabem, os jardineiros orgânicos são muito sábios. Eles sabem preservar o lixo, e podem transformar o lixo em adubo. Com esse tipo de composto, podem cultivar lindas flores, lindos vegetais e árvores. Na cozinha do Buda, aprendemos que o lixo pode ser útil. Se vocês não sabem como cuidar do lixo, então a situação será caótica. Vocês não poderão viver. Mas se souberem cuidar do lixo, então o lixo se tornará algo muito útil para nós, para tornar nosso jardim mais bonito, para tornar nossa colina mais bela.

Durante o século XX, produzimos muito lixo, demais. O sofrimento da Guerra do Vietnam é um monte de lixo. O lixo ainda está lá, não apenas no Vietnam, mas na América. O lixo produzido pela Guerra do Vietnam ainda está sendo despejado por toda a América como nação. O sofrimento ainda está lá, não apenas nos veteranos, em suas famílias, mas na consciência profunda de todos os americanos. Não apenas os vietnamitas e os americanos sofrem por conta do lixo produzido pela Guerra do Vietnam, mas todos nós na Europa, na Austrália, na África. Todos sofremos por causa do lixo produzido por tantos e tantos anos.

Produzimos muito lixo em todos os lugares. Na antiga Iugoslávia, o lixo ainda está intacto. Ninguém se encarregou de cuidar dele. No Oriente Médio, a Guerra do Golfo também produziu um monte de lixo – um monte de lixo no mundo e também um monte de lixo em nosso coração, em nossa consciência. Cuidar corretamente do lixo é coletá-lo e juntá-lo numa pilha. Talvez seja preciso cavar um buraco, empilhar o lixo dentro dele, produzir algum calor, rega-lo. Os jardineiros orgânicos, especialmente, sabem como cuidar do lixo e transforma-lo em adubo. Assim, nosso sofrimento, o sofrimento que causamos, é tudo lixo. Temos de saber como cuidar corretamente dele a fim de transforma-lo.

Quem são os especialistas? São os países desenvolvidos que pensam em transportar lixo e enterrá-lo nos países do Terceiro Mundo. Não é uma coisa muito responsável. Temos apenas quatro anos, antes de começar a subir a colina do século XXI. Temos de aprender como cuidar de nosso lixo agora, para que no começo do novo século tenhamos adubo suficiente para nutrir nossas flores.

Hoje eu quero falar às crianças sobre a casa na qual elas viverão no século XXI. Tenho algumas idéias sobre o que chamamos de casa do século XXI. Como organizarmos nossa casa no século XXI para que possamos viver melhor? Os arquitetos têm trabalhado bastante nisso, no habitat do século XXI. Queremos dar nossa contribuição. Eu penso que a casa do século XXI deve ter uma sala chamada "espaço de respiração", um espaço onde possamos buscar abrigo da agressão, do barulho, dos discursos agressivos, da raiva, das aflições. Toda casa deve ser equipada com uma sala dessas. É o equivalente a nosso espaço de meditação aqui em Plum Village. É um local sagrado. Não precisa ser grande, mas tem de ser um lugar realmente dedicado à paz. Pode ter três metros por três, ou até menos, mas tem de ser realmente um espaço de paz.

Toda vez que você quiser entrar nessa sala, tem de fazer uma reverência, porque ali é o território do Buda, o território da paz, da compaixão. Diante da paz e da compaixão, devemos demonstrar muito respeito. Assim, antes de entrar na sala, você deve inspirar e expirar e fazer uma reverência para a maçaneta da porta porque, no momento em que você toca a maçaneta da porta, você toca o Buda, toca Deus, toca Jesus, toca o reino dos céus. Nossa casa moderna deve abrigar o reino dos céus dentro de si, deve abrir a Terra Pura em si. Por favor, crianças, meditem sobre isso e digam-nos suas idéias sobre nossa casa do século XXI.

Toda vez que mamãe estive zangada, toda vez que papai gritar com mamãe, com seu irmão ou sua irmã, você sente o inferno em sua casa. Você não quer morar no inferno. Você quer fugir. Para onde você pode ir? A resposta é a Terra Pura, o reino da paz que está em sua casa. Vá para aquela sala, faça uma reverência profunda diante da porta, inspire e expire, suavemente toque a maçaneta, gire-a lentamente, abra-a e entre nela com consciência. Há apenas uma maneira de entrar no reino da paz, e essa maneira é a meditação caminhando, e você aprendeu isso em Plum Village. Inspirando, eu me acalmo e dou um passo, expirando eu sorrio e então posso entrar no reino da paz. Meu pai não tem o direito de me buscar dentro deste território de paz e de gritar comigo. Pois, uma vez dentro do território de paz, você tem uma espécie de imunidade diplomática. Ninguém pode persegui-lo dentro do território do país da paz, do Buda.

Penso que as crianças vão se beneficiar bastante deste espaço. Como devemos chamá-lo? "Espaço de Respiração" está OK, mas acredito que há muitos outros nomes mais bonitos que vocês podem usar para chamar essa sala em sua casa. Toda família civilizada deve ter uma sala assim, porque em toda casa há lugar para tudo: lugar para comer, para ver TV, para receber visitas, para lavar roupas. Temos todos os tipos de cômodo, a não ser o tipo de cômodo que mais precisamos, um espaço onde podemos restabelecer nossa paz, recuperar nossa dignidade. Um lugar onde podemos tocar o Buda, tocar nossos ancestrais, tocar nossa paz e nossa felicidade.

Devemos dizer a nossos arquitetos, a nossos artistas, para criar essa sala de forma a que, quanto entrarmos, sintamos imediatamente a paz.. Um pouco como, a cada vez que entramos na sala de meditação, sentimos algo sagrado. Não se deve falar alto na sala de meditação, nem correr, porque ali é um local onde as pessoas podem voltar para si mesmas, e tocar o mais profundo em si mesmas. É por isso que eu sempre peço às crianças, após a Palestra de Dharma, para sair da sala de meditação no estilo da meditação caminhando.

Então, podemos abrigar o reino da paz em nossa casa moderna. E a mobília nessa sala? Vocês têm de pensar sobre isso e nos dizer. O que vocês acham que precisam? Eu penso que são necessárias algumas almofadas. Acho que precisamos uma pequena mesa, para que possamos colocar sobre ela um belo vaso de flores, porque uma flor ou um bonito ramo podem representar muito bem a beleza do cosmos. Você pode querer levar uma hora só para arrumar um vaso de flores que tenha apenas uma flor, algumas folhas. Enquanto você arruma o vaso de flor, você pratica a paz, e toca a paz profundamente dentro de si. Assim, nessa bela sala, temos algumas almofadas, uma pequena mesa onde possa colocar um belo vaso. Ao entrar, você pode fazer uma reverência à flor. A flor é fresca, e você quer ser tão fresco quanto a flor. "Inspirando, eu me vejo como a flor. Expirando, eu me sinto fresco". Vocês sabem que todos nós somos originalmente flores. Olhem para as crianças. Elas parecem exatamente com as flores, muito frescas, muito refrescantes, e é por isso que adoro estar cercado de crianças. Elas nos fazem sentir jovens e frescos.

(Sino)

As crianças podem ficar com raiva às vezes, ter ciúmes às vezes, mas sempre podem voltar a ser uma flor muito facilmente. Isso é um milagre. Mas para nós, adultos, não é tão fácil. Nós não podemos retornar, voltar a nosso estado de frescor muito rapidamente. Todos os adultos foram crianças. Nossa felicidade original – não pecado original – é sermos uma criança. Mas porque não fomos capazes de cuidar bem de nossa flor, nossa flor não está muito fresca quando crescemos. Assim, praticar a meditação é proteger nosso estado de flor, não deixarmo-nos ressecar por aquilo que está acontecendo em nossa vida diária. Olhem as crianças: seus olhos são realmente flores, suas bocas são flores, suas mãozinhas são duas lindas flores, seus dentinhos são flores, muito bonitas, muito frescas. Toda vez que você vai para a sala de meditação, olha para a flor, faz uma reverência para ela e recobra seu estado de flor. "Inspirando, eu me vejo como uma flor". Não se trata de um desejo, porque você foi originalmente uma flor. É possível voltar ao estado de flor.

Talvez por você ter chorado demais, seus olhos não estejam tão límpidos e frescos quanto os olhos de uma criança. Mas, se praticar por alguns meses, tocando os elementos refrescantes dentro de você e à sua volta, recuperará o estado da flor em seus olhos. Quando olhamos para você através de seus olhos, podemos tocar o estado de flor em você. Seu sorriso também é uma flor. Se você perdeu seu sorriso, não se desencoraje. O dente-de-leão ainda o está guardando para você. Se você souber como olhar para o dente-de-leão, e respirar e sorrir, a flor lhe será devolvida, a sua flor. Não é difícil. A lua cheia, o céu azul, tudo no cosmos ainda está guardando seu sorriso para você. Eles são muito gentis. Você precisa apenas alcançá-los e pedir seu sorriso de volta. Nós precisamos que você sorria.

O que mais precisamos para mobiliar o espaço de respiração, ou de meditação? Acho que precisamos de algo para queimar, como incenso. Eu prefiro algum tipo bem suave de incenso, nada muito forte. Não é preciso queimar muito incenso. Há pessoas que vão ao templo e queimam um maço todo de incenso, e isso pode ser muito sufocante. Apenas um bastão de incenso, o tipo de incenso feito de ingredientes naturais, como sândalo ou algo parecido. Não precisamos de mais nada. Talvez precisemos de um sino, mesmo um mini-sino. Nos verões, eu costumava ensinar às crianças como convidar o sino a soar. Acho que toda família deve ter um sino, mesmo um pequenino. Todos na casa devem ser capazes de praticar o convite para o sino soar, porque o sino é considerado a voz do Buda chamando-nos para nosso verdadeiro lar, para sorrir e alcançar a paz e o estado da flor em nós. Por favor, todos os professores do Dharma e todos os irmãos e irmãs, ensinem às crianças como convidar o sino a soar.

Você se sentirá muito melhor logo depois de inspirar e expirar com o som do sino. Quando você convida o sino a soar, você o ouve como se ouvisse a pessoa que mais ama. E você pratica a respiração profunda, acalmando-se e sorrindo. Tenho certeza de que, depois de três inspirações e expirações como essa, você se sentirá muito melhor. Toda vez que sente raiva, você sabe que, de acordo com a prática, não deve dizer nada. Não deve fazer nada, porque tudo que você diz, tudo o que você faz quando está com raiva pode ser prejudicial. A melhor maneira é pensar no espaço da paz e começar a se voltar na direção do espaço da paz, enquanto pratica a meditação caminhando, lentamente, para aquele espaço. Sua mãe olha pra você e sabe o que você está fazendo. Você está praticando o cuidar bem da sua raiva. Ela o admira por fazer isso. Você ainda é jovem, mas sabe como lidar com sua raiva.

Na escola, ensina-se tudo, menos como cuidar de sua raiva. Quando você vai para um retiro, tem que aprender esse tipo de coisas. Você as torna um hábito toda vez que sentir raiva, mesmo consigo mesmo. Aí, você deve se voltar para a direção do espaço da paz, do espaço da respiração, e ir calmamente naquela direção como na meditação caminhando. "Inspirando, eu me acalmo, expirando eu sorrio para mim mesmo". É muito gentil de sua parte sorrir para você mesmo, porque você está sofrendo. Quando você sofre você precisa de amor, e você é aquele que primeiro pode oferecer amor a si mesmo. Não espere por outra pessoa. Quando chegar à porta do espaço de respiração, faça uma reverência, porque aquele é o reino da paz. Você penetra no seu próprio coração. É um espaço, mas também um domínio de seu coração. Vire a maçaneta lentamente, abra a porta, entre nele com a meditação caminhando. Quando vir sua almofada, reverencie-a e sente-se.

Depois de sentar-se, você pode querer acender um bastão de incenso, mas se não estiver com vontade, então você pode fazer uma reverência para o pequeno sino, pegá-lo e segura-lo em sua mão desta maneira. Vejam só. Isso é um bebê Buda, um bebê Bodhisattva que pode ajudar-me a voltar a mim mesmo. E você inspira e expira três vezes. Se você se lembrar do gatha, maravilha. Mas se não se lembrar do gatha, está tudo bem apenas em inspirar e expirar. "Corpo, discurso e mente em perfeita unidade, eu envio meu coração junto com o som deste sino, para que aqueles que o ouçam acordem do esquecimento, e transcendam o coração da ansiedade e da tristeza."

Você tem de praticar em sua própria língua. Deve ter uma tradução italiana, se é um menino ou menina italiano. Se for holandês, deve ter um gatha em holandês. É ótimo praticar. Você pode até musicá-la. A você pode meditar na música. Por que não? No Vietnam, nós o celebramos em música. Quando terminamos de entoa-lo, seja em silêncio ou em voz alta, nos já nos sentimentos muito melhor.

Agora, nós tocamos o sino com o "convidador", com aquele que convida. Nós não o chamamos de bastão, e sim de convidador do sino. Não dizemos "toque o sino". Dizemos "convide o sino a soar". Queremos ser gentis. Este é o ato de acordar o sino. Você não quer praticar nenhuma violência com o sino. Você anuncia ao sino que vai convidá-lo com força, de maneira que todos possam ouvir – isto é acordar o sino. O som de acordar se faz tocando o convidador do sino no próprio sino. Mas, em vez de removê-lo, mantenha-o lá, para que o som seja apenas um meio som. Todos na comunidade e todos na casa sabem que um som realmente alto será ouvido, então não haverá surpresa. Todos têm a oportunidade de se preparar para o chamado do Buda. O Buda vai chamá-lo. Então você ainda pratica a inspiração, enquanto espera pelo som real, e o então o verdadeiro som chega.

[Sino]

Esta é a voz do Buda dentro de você chamando-o de volta para seu verdadeiro lar, o lar da paz, da tolerância, do amor. Ao ouvir o som, pratique inspirar e expirar de acordo com outro gatha. Claro que você sabe de cor: “Inspirando eu me acalmo, expirando eu sorrio”. Mas o outro gatha é: “Ouça, ouça; este som maravilhoso me leva de volta a meu verdadeiro lar.” Você diz: “Ouça, ouça;” isso significa eu ouço, eu ouço, quando inspiro. E quando expirar, sorria e diga: “este som maravilhoso me leva de volta a meu verdadeiro lar”. É a voz do Buda interior. Se você o fizer três vezes, se sentirá muito melhor. A paz se tornou algo real. Você não sofre como alguns minutos atrás. E sabe de uma coisa? Sua mãe escuta o sino. Ela não está na sala, mas ela o ouve. E está muito orgulhosa de sua criança que se esforça para cuidar de sua raiva. Da próxima vez, quando ela sentir raiva, estou certo de que ela fará o mesmo que você. Em vez de gritar, irá para o espaço de respiração e praticará como você.Apenas uma pessoa pratica, mas a prática beneficia todas as outras pessoas. Seu pai pode estar com raiva, mas ao soar do sino ele pode se aliviar de sua raiva. Todos os seus filhos estão praticando a paz, praticando cuidar de sua raiva. Assim, quando a atmosfera da família se tornar difícil para você respirar, você não deve permanecer ali e agüentar. Porque quando mamãe e papai estão com raiva um do outro, há algo como uma tempestade suspensa no ar, e isso não é saudável para a criança, porque a atmosfera pesada penetra nela. Não é saudável para a criança, e a criança não tem saída. Antigamente, as casas eram cercadas por um grande jardim, e toda vez que acontecia de uma criança se encontrar numa atmosfera de tensão, ela sempre podia sair para brincar no lago, na fonte, com a borboleta, ou podia procurar um tio, ou uma tia, ou um primo. Mas hoje vivemos em apartamentos muito pequenos, não há tios, nem tias, nem primos, nem fontes de lótus, nem coqueiros, nada, apenas carros lá embaixo, um monte de barulho, um monte de poeira. A criança não tem saída. Algumas vezes, ela se refugia no banheiro. Ela sofre tanto que se tranca no banheiro, e os pais não sabem que seu filho ou filha está sofrendo tão terrivelmente no banheiro. Mas você não está seguro, totalmente seguro no banheiro, porque o som e o clima de tensão entra pelas frestas da porta e continua a afligi-lo. Portanto, o espaço de respiração, o espaço de paz, é uma solução para o século XXI. Por favor, vocês que são arquitetos, que estejam aí sentados, ouçam-nos. Projetem-nos uma casa onde tenhamos um território de paz, onde possamos ter uma ilha de paz no meio do oceano da turbulência. Projetem o reino dos céus, o reino de Deus, a Terra Pura em nossa casa moderna, por favor. Vocês que são artistas, ajudem-nos a decorar este espaço, a arrumá-lo para que tenhamos uma oportunidade, uma saída.

Enquanto estiver praticando a respiração, e atingindo a paz, restaurando a paz, sua mãe pode se interessar em fazer o mesmo. Meu filho está praticando sozinho. Eu devia ir lá e apóia-lo. Muito gentil da parte dela. Então, em vez de cortar cenouras, ela diz, “Bem, posso cortá-las mais tarde. Devo ficar junto de meu filho agora.” Então ela larga a faca, se dirige lentamente para o espaço de paz e pratica a meditação caminhando, e de repente você ouve o som da porta. Você adivinha que sua mãe está vindo juntar-se a você. E sente-se feliz. É muito bom estar praticando com uma irmã de Dharma que seja a sua mãe. Aí, você sente que ela chegou, e ela se senta logo atrás de você e pratica a inspiração e a expiração. Agora, você se sente apoiado. Acho que está é uma das mais belas coisas que se pode ver na vida, mãe e filho, ou filha, sentados em silêncio na posição de lótus e praticando inspiração e expiração para recuperar a paz. Se você for um pintor, por favor, desenhe-nos esta imagem. Se for um músico, componha uma música sobre isto.

E o papai, o que está pensando, sentado sozinho do lado de fora? Acho que seu amor por você e por sua mãe está sempre lá. Às vezes ele está oculto por alguma irritação, mas o amor ainda está lá, intacto. Sua prática de respirar e de cuidar de sua irritação, raiva, vai comove-lo. Não seria uma surpresa se ele se juntasse a vocês mais tarde. A felicidade é uma coisa possível. Você não precisa ir ao supermercado e comprar coisa nenhuma. De repente, a felicidade chega à sua família. Essa é uma idéia que diz respeito a seu lar para o século XXI. E as crianças, por favor, tenham uma discussão de Dharma hoje. Descubram do que gostam sobre o espaço de respiração, o espaço de paz em sua casa – a embaixada do Buda em sua própria casa.

Outra idéia sobre o lar do século XXI é um jardim onde haja um caminho para meditar caminhando – porque a meditação caminhando pode aliviar muita tensão, pode ajuda-lo a sentir a beleza da vida, da natureza. Esse jardim pode ser coletivo, para um grupo de casas. Deve ser projetado de tal maneira que expresse amor, compaixão e harmonia. O jardim deve apresentar a natureza, a natureza verdadeira, não a artificial. Nada de produtos químicos, inseticidas, deve ser usado nesse jardim. Não se deve usar nenhum tipo de destruidor de ervas daninhas que destrua o solo, mas apenas meios orgânicos para construir esse lindo jardim. Devem respeitar o direito dos seres vivos de coabitar conosco no jardim. Devemos poder encontrar o caracol no jardim.

Se a flor de lótus do jardim estiver coberta por vários seres vivos minúsculos e não puder florescer, então vocês não devem usar inseticidas violentos. Talvez possam tentar alho ou cebola. E esses pequenos seres vivos irão para outro lugar e deixar sua flor de lótus desabrochar. Como fazemos em Upper Hamlet? Eu vi duas flores minúsculas, flores de lótus cobertas por um monte de minúsculos seres vivos. Eu sei que vocês não pensam em mata-los, mas podemos tentar meios como esses. Aprendi que, se você cultiva vegetais junto com alho e cebola, pode-se manter esses insetos à distância. Há muitas maneiras não violentas de cultivar um jardim. Vocês que são especialistas em jardinagem orgânica devem contar às crianças e adultos como construir um jardim assim. Um jardim desses é o jardim do Éden. É um lugar real para crianças e adultos ao mesmo tempo. Se você não tem condições de ter um jardim exclusivo em casa, pode arranjar uma forma para que um conjunto de casas usufruam de um jardim coletivo, onde as pessoas coletivamente cuidem bem dele e pratiquem amor e gentileza, harmonia e convivência com outros seres vivos.

[Sino]

Jovens, tão logo vocês tenham construído seu lar para o século XXI, por favor, não se esqueçam de me convidar. Ficarei muito contente de estar em seu jardim, e de sentar em seu espaço de paz, e inspirar e expirar com você, e prometo que levarei comigo meu bule e prepararei o chá para vocês. Quando ouvirem o pequeno sino, levantem-se e façam uma reverência para a Sangha.

[Sino]

Ontem, na hora das perguntas e respostas, eu pude falar com vocês sobre como cuidar de nossa tristeza, nossa doença. Vocês precisam organizar discussões sobre o Dharma em pequenos grupos para aprofundar nossa compreensão sobre como praticá-lo. Em vez de lutar com a nossa dor, a nossa raiva, a nossa depressão, tentamos cuidar bem disso – da mesma forma que uma mãe cuidaria de seu filho.

Hoje, gostaria de oferecer-lhes uma outra maneira de cuidar de sua dor. De como suportar sua dor mais facilmente. De como viver com sua dor. De como aceita-la com todo o sofrimento. É ótimo se você puder transforma-la, mas enquanto ela ainda está ali, há maneiras pelas quais você pode viver em paz com ela. O ensinamento budista sobre isso é bastante claro, bastante concreto. Tem a ver com o ensinamento do amor. Temos de praticar o amor direcionado a nosso próprio eu, corpo e mente. Devemos aprender como amar, e primeiro amar a nós mesmos. Amor não é apenas a vontade de amar. Amor é a capacidade de reduzir a dor e oferecer a paz e a felicidade. Tudo isso é prática. E vocês podem praticar.

No ensinamento do Buddha, falamos em chegar à outra margem, paramita. Paramita significa que desta margem você vai para a outra margem. Da margem do sofrimento você atravessa o rio para a margem da emancipação, do não-sofrimento. Quanto tempo se leva para ir desta margem à outra? Às vezes, pode-se fazer isso bem rapidamente. Se você tiver uma irritação, você está nesta margem. Se você souber cuidar bem de sua irritação, ela será transformada em alguns minutos, e de repente você está na outra margem. Por favor, não pensem que só os Bodhisattvas ou Buddhas podem ir para a outra margem. Você também pode faze-lo, várias vezes ao dia. Toda vez que estiver sofrendo de uma aflição, como raiva, ódio, medo, irritação, você sempre pode praticar a travessia do rio para chegar à outra margem. O Buddha disse que, se você quer chegar à outra margem, não fique simplesmente parado aqui rezando. “Por favor, outra margem, venha até aqui para que eu possa pisa-la”. O Buddha disse que você não deve fazer assim. Só se pode chegar à outra margem cruzando o rio, seja num barco ou nadando. Não se pode rezar para que a margem venha até você. E o bote é o Dharma. O Buddha sempre disse: “Meu ensinamento é uma jangada para vocês cruzarem o rio do sofrimento. Usem-nos como uma jangada, e não como algo que vocês carreguem sobre suas cabeças”. Então, como um bom praticante, você deve pegar a jangada, o bote, a fim de poder cruzar o rio do sofrimento por si próprio. Devemos aprender o meio de faze-lo, o Dharma.

O método que vou apresentar-lhes é chamado da prática da mente incomensurável. Uma mente que pode ser medida não é uma mente muito grande. Um coração que pode ser medido não é um grande coração. É por isso que se deve praticar o coração incomensurável, que é um ensinamento muito importante do Buddha. Há quatro elementos que formam o amor verdadeiro. Eles são maitri, traduzido por generosidade amorosa; karuna, traduzido por compaixão; mudita, traduzido como alegria; e upeksha, traduzido como equanimidade, não-discriminação. Praticamos para que estes elementos do amor verdadeiro transformem nosso coração em algo incomensurável. Isto é algo que se pratica na vida diária. À medida que nosso coração começa a aumentar, somos capazes de conter, de suportar, qualquer tipo de sofrimento. Pode ser que nem mesmo soframos, mesmo que abracemos o sofrimento dentro de nós.

Nas seis paramitas, os seis botes que cruzam o oceano do sofrimento, temos o bote da caridade, que significa autocontrole. Autocontrole é a capacidade de abraçar as dificuldades, de abraçar o medo, e não sofrer. Se seu coração é grande, você pode abraçar qualquer quantidade de dor e mesmo assim você não sofre. Este é um dos seis botes que nos leva à outra margem. Autocontrole não significa que você suprima o medo. A maneira chinesa de escrever é esta: este é o coração e este é um tipo de faca que pode causar a dor. O coração é tão grande que, mesmo que a faca esteja lá, ela não o afetará, e finalmente a faca se transformará numa não-faca. O Buddha usou uma imagem maravilhosa, e usou-a várias vezes em sua vida de ensinamentos. Ele dizia: suponha que você tem algo sujo. Se você derrama isto em sua vasilha de água, você não poderá bebê-la. Ninguém bebe tal água. Se você derramar urina, algum excremento, ou algo que você cuspa de seu estômago, então você não poderá usar toda a vasilha de água, você tem de joga-la fora. Mesmo um pouquinho de sujeira que caia sobre seu copo, você não poderá bebê-la. Mas e se você joga essa vasilha de sujeira num grande rio? Se você joga a sujeira, talvez um quilo, talvez dez, num rio imenso, as pessoas de toda a área ainda poderão beber a água do rio. Isto porque o rio é grande, e não leva tempo algum para o rio transformar a sujeira. Da noite para o dia a sujeira não estará lá, porque uma imensa quantidade de água está circulando. A quantidade total de lama submersa será capaz de transformar o rio no qual ontem você jogou a sujeira, e o rio se torna cristalino, totalmente pronto para que você beba dele.

A diferença não está em você jogar ou não a sujeira. Você joga a sujeira, ela é real, ela existe. Mas se sua vasilha é pequena, então todo o conteúdo tem de ser descartado. Mas se a vasilha é grande, é um grande rio, daí você pode abraçar a sujeira facilmente e isto transformará a sujeira rapidamente, da noite para o dia. Seu coração também. Se seu coração é pequeno, então você não poderá suportar a quantidade de dor e sofrimento infligida em você pela sociedade, por outra pessoa. Mas se seu coração é grande, você pode viver com isso perfeitamente bem. Você pode abraça-los, e não tem de sofrer. Portanto, a prática das quatro mentes incomensuráveis é fazer com que seu coração aumente até se tornar um grande rio. E a maneira de faze-lo é usar os instrumentos de maitri, karuna, mudita e upeksha. Sua essência é a prática da meditação, do olhar em profundidade. Ontem falamos sobre a salvação pelo insight. Você só pode ser salvo, ser libertado, pelo seu insight. E como o insight aparece? É preciso praticar a concentração. Você tem de praticar o olhar profundamente, e à medida que você continua a praticar o olhar profundamente, o insight vai surgir e libera-lo de seu sofrimento.

Mencius era um filósofo chinês muito conhecido. Ele perdeu seu pai quando era muito jovem, e sua mãe teve de se mudar para um bairro pobre da cidade para sobreviver. Ela ficava acordada até tarde da noite para trabalhar com bordados. Um dia, o garotinho chegou em casa muito sujo, com as roupas todas rasgadas. Ele tinha brigado com crianças da vizinhança. Tinha se tornado uma espécie de delinqüente infantil. Ela ficou com raiva, porque tinha grandes expectativas para seu menininho. Ela estava bordando. Parou e estava para castiga-lo, gritar com ele. De repente, ela parou, porque teve um insight. Ela foi capaz de ver que no bairro não havia escola. Havia apenas um matadouro. As crianças não iam à escola, e passavam o tempo brincando na rua ou em jogos do tipo sacrificar um porco ou um bezerro. Se o adulto faz uma coisa, as crianças o imitam. Elas usariam uma batata doce crua para representar uma vaca, quatro varetas de incenso para fazer as pernas da vaca, e se reuniram para representar a matança. Elas imitavam os adultos. E, claro, brigavam e se xingavam uns aos outros. Aquele era o ambiente no qual a mãe do garoto o tinha colocado. No momento em que ia gritar com ele, a mãe compreendeu que a falha não era dele. Qualquer criança colocada naquele ambiente se tornaria a mesma coisa. Assim, ela não fez nada e não ficou mais com raiva. Esta é a salvação pelo insight.

Em vez disso, ela ficava acordada até mais tarde da noite, trabalhava duro e economizava o dinheiro. Três meses depois, pôde se mudar para um bairro melhor, onde havia escola, onde as crianças eram limpas e educadas. Ela não precisou castigar a criança, gritar com ela, sofrer. O garoto mais tarde se tornou um estudante dedicado e inteligente, e finalmente virou um filósofo muito famoso.Você não tem de sofrer se tiver insight – se compreender e se esta compreensão for fruto do olhar profundamente. Se sofremos tanto, é porque somos ignorantes. Se ficarmos com raiva de nosso pai, de nossa mãe, nosso filho ou filha, ou nosso parceiro, é porque ainda somos ignorantes. A prática de olhar profundamente vai permitir-lhes ver como a outra pessoa ficou daquela maneira. Ele não era assim quando você se casou com ele, mas agora ele é assim, assim, muito difícil de conviver. E quem é responsável por isso? Coloque a questão diante de você e medite. Assim que me casei, ele não era assim. Quando me casei com ela, ela não era assim. Por que ela ficou tão insuportável agora? Quem é o responsável? Devo culpa-la, ou devo culpar a mim mesmo, ou culpar a sociedade? Todas essas questões ajudam sua meditação. Meditar significa confrontar a realidade e não fugir. Se você está fugindo de seus problemas reais, não está meditando corretamente. Você precisa sentar-se num pequeno monte de calma, de concentração. Você precisa se sentar num montinho de consciência de modo a confrontar estas dificuldades e olhar dentro da natureza desse sofrimento.

[Sino]

Se seu pai o considera como sua propriedade, como uma casa ou uma soma de dinheiro ou um carro, se ele o considera algo como um de seus pertences, ele acha que pode fazer qualquer coisa com você porque você é seu filho ou filha. Ele não sabe que você é uma pessoa, um ser humano, com o direito de pensar e agir e seguir aquilo que acredita ser bonito, bom e verdadeiro. Ele apenas quer que você siga o caminho que traçou para você.

Você tem de perguntar: por quê? Por que seu pai é daquela maneira, por que em torno de nós existem pais que são diferentes? Há pais que são capazes de tratar seus filhos e suas filhas como seres vivos livres, com grande respeito. Tenho praticado o insight e trato meus alunos com respeito, mesmo que sejam bem pequenos, porque tenho o insight de que só quando os tratamos desta forma o melhor deles poderá surgir. E isso não é para o benefício deles, mas para o meu, e para o de muitas pessoas, muitos seres vivos. Por saber tratar meus alunos desta maneira, tenho conseguido fazer desabrochar muitos talentos que estão enterrados em cada um deles. Tenho tido irmãos de e irmãs de Dharma. Tenho aprendido o Dharma, portanto o Buddha abriu meus olhos. Estou liberto da minha estreiteza, meus preconceitos.

Se seu pai não tem sido capaz de ser assim apenas por não ter sorte, se você o acusa, se quer puni-lo, ele vai sofrer mais, e isso é tudo. Você não pode ajuda-lo. Somente quando você diz “Pai, eu o entendo, entendo porque você é assim. Seu ambiente era assim. Você não esteve em contato com o tipo de ensinamento ou insight que tenha uma natureza libertadora.” Você não diz isso, mas fala isso a si mesmo. De repente, seu ódio, sua raiva em relação a seu pai simplesmente desaparece. Seu pai se torna alguém que precisa de sua ajuda, de seu amor, em vez da sua punição. Afastar-se de seu pai é uma forma de puni-lo. Você quer que ele sofra. Por isso você se afasta dele. Mesmo se você se mata, é com a intenção de faze-lo sofrer. Você diz, “Veja, eu me matei por sua causa. Quero sofrer porque você me tratou como um animal, como uma posse sua.”. Assim, mesmo que você se mate, se fugir de casa, isso não é infligir o sofrimento a si mesmo, mas a vontade de ferir, de fazer com que a pessoa que você considera como sendo a causa de seu sofrimento sofra.

Entre pais e filhos existe uma luta. Se você não praticar, se não for sábio, se os elementos de maitri, karuna, mudita e upeksha não estão lá em seu amor, então criamos o inferno um para o outro. Sempre, na luta entre pais e filhos, são as crianças que perdem, porque não se espera que elas respondam nos mesmos termos usados pelos pais. Os pais podem bater em seus filhos, mas as crianças não podem bater em seus pais. Os pais podem abusar de seus filhos com palavras, mas os filhos não. Por não poderem exprimir a violência que receberam, eles ficam doentes. A violência que eles recebem permanece dentro deles e procura um caminho para sair, para ser expressa. Se o jovem se enforca ou dá um tiro em si mesmo, ou seja, quer expressar sua raiva, sua frustração, sua violência, não há saída. Então, se você inflige alguma coisa sobre si mesmo, é porque você não tem outras formas de expressar a violência que existe em você, o ódio e a raiva em você. Você é a vítima da violência que recebeu de seus pais e da sociedade.

Pobre criança. Ela não tem qualquer meio de se proteger. Os pais não são sábios o suficiente para não despejar sua violência em seus filhos, mesmo que sua intenção seja a de amá-los e faze-los feliz. Eu conheço um jovem que reagiu a seu pai, um médico. O médico foi meu aluno quando estudava Medicina. Ele era o típico jovem da nova geração. Prometeu a si mesmo que seria o tipo de pai diferente do seu. Mas quando se tornou pai, fez exatamente as mesmas coisas que seu pai havia feito a ele. Você odeia seu pai, e promete que quando crescer não será como ele, que fará o oposto. No entanto, quando você cresce, se casa, tem filhos, faz exatamente como ele. Isto é a roda do samsara. Praticar é interromper o roda do samsara. Você não permite que ela continue, consigo mesmo e com seus filhos.

Assim, à luz desta prática, ambas as gerações devem se esforçar. Devemos reconhecer a violência em nós. O tipo de violência que está nos destruindo, e destruindo a pessoa que amamos. Todas as intenções, mesmo as intenções de amar e de fazer aquela pessoa feliz, fazem-no sofrer.

Então, como ajudar os pais a lidar com a violência, seu sofrimento, para que eles não os despejem sobre seus filhos? Como ajudar as crianças, como cuidar de sua violência, como transformá-la, para não odiarem seus pais? As duas partes têm de buscar o caminho do olhar profundamente, porque as duas gerações são apenas vítimas. Os filhos acham que são vítimas de seus pais, e os pais acham que são vítimas dos filhos. Filhos de outras famílias descobrem que não são como os meus filhos, e assim continuamos a nos acusarmos mutuamente. Não aceitamos o fato de que a violência está dentro de nós dois. Em vez de lutar um contra o outro, deveríamos nos unir e encontrar uma saída, entre pais e filhos, entre parceiro e parceira. Não é porque sofremos que temos de fazer com que os outros continuem a sofrer. Sofremos muito pela mesma razão. Portanto, deveríamos ser aliados um do outro, em vez de inimigos. A quantidade de sofrimento em nós é suficiente para nos instruir sobre como não cometer o mesmo erro. O Buddha disse: “O que vier a ser, você deve praticar olhando profundamente em sua natureza.” Uma vez que você comece a compreender sua natureza, como ela veio a ser, então você já está na trilha da libertação.

Portanto, os parceiros devem chegar um ao outro e concordar sobre o fato de que ambos sofreram. Ambos experimentaram a violência, o ódio, as aflições. Em vez de nos opormos um ao outro, acusarmos um ao outro, devemos ajudar um ao outro, praticando juntos, e isso se faz no contexto de uma Sangha, com a ajuda de um professor, ou vários professores, vários irmãos, irmãs no Dharma. Como todos têm prática, cada um pode tentar e ajudar a trazer luz a seu sofrimento e ajuda-lo a praticar. No começo, a caminhada é difícil, mas caminhar com alguns amigos no Dharma a torna mais fácil. No começo, respirar não é natural, é como forçá-lo a fazer coisas que não são naturais. Mas finalmente, com a ajuda dos irmãos e irmãs no Dharma, você descobre que respirar é maravilhoso, natural, calmante, refrescante, transformador.

Sentimos que somos vítimas da injustiça. A maioria de nós, pra não dizer todos nós, sentimos de alguma forma que somos vítimas de várias formas de injustiça, vinda dos pais, dos antepassados, da sociedade. Sentimos que ninguém nos entende. É muito difícil para nós aceitar o que nos acontece. O sofrimento está lá, real. O Buddha disse que a primeira verdade, a primeira das quatro nobres verdades, é a presença do sofrimento, a existência do sofrimento, dukkha.

Ver uma criança de dois anos atingida pelo ódio, uma criança que nasce com alguma deficiência, é insuportável, e você acusa Deus. Se Deus existe, como poderia Deus permitir que tal coisa acontecesse? Você é muito jovem, e de repente descobre que tem câncer. Você não pode acreditar. Você fez alguma coisa para merecer isso? Se não pode acusar seus pais, então você acusa a sociedade, e se você não encontra alguém para acusar, você olha pra cima e acusa Deus. O sentimento de ser vítima da injustiça existe sempre em cada um de nós. Somos maltratados, e quanto mais sentimos essa injustiça em nós, mais sofremos. O único caminho é meditar, compreender.

Ontem, eu falei sobre o jovem que estava com tanta raiva de seu pai e fez aquela declaração. O jovem disse: “Eu não quero ter nada a ver com meu pai.” Nós compreendemos. O jovem estava com tanta raiva, ele sentia que todo o seu sofrimento vinha de seu pai. Ele quer ser alguém totalmente diferente de seu pai. Não quer ouvir nada a respeito de seu pai. Quer ser totalmente isolado desta parte da existência. Mas se ele praticar o olhar profundamente, verá que ele é apenas seu pai. Ele é apenas a continuação de seu pai, mesmo que o odeie com todas as suas forças. Odiar seu pai é odiar a si mesmo. Isso é algo que alcançamos quando praticamos olhar profundamente. Não há alternativa, a não ser aceitar seu pai, abraçar seu pai. Se seu coração for pequeno, você não poderá abraça-lo, é preciso ter um coração grande. Como tornar seu coração grande, para que haja espaço suficiente para abraçar seu pai?

A prática de olhar profundamente é a única que pode ajudar seu coração a se expandir, e chegar à mente incomensurável, ao coração incomensurável. Ao olhar profundamente, você começa a compreender o porquê de seu pai ser daquela maneira, o porquê de você ser daquela maneira. Vê que tanto você quanto seu pai são vítimas. Se você se colocasse na situação de seu pai, faria exatamente a mesma coisa que ele. Basta olhar em volta e você vê isso. Muitos jovens odeiam seus pais, prometem que farão exatamente o oposto, mas fazem exatamente as coisas que seus pais fizeram: samsara. Então, com aquele tipo de insight, você não mais terá raiva. O insight ajuda nosso coração a se expandir, e subitamente você tem espaço de sobra, e seu pai pode ser abraçado em você mesmo. O amor se torna possível – ódio, raiva, simplesmente se transformam em amor. Que milagre! É vipassana, a prática de olhar profundamente, que pode operar esse milagre. A salvação pelo insight, pela compreensão.

Você acusa sua doença, reclama que está doente, está mal. Acha muito difícil suportar sua doença. Isso o faz sofrer tanto! Mesmo se a dor for física, você sabe como praticar fazendo seu coração crescer, até que seja capaz de aceitar a dor física muito facilmente. Você imagina que se rezar para Deus, se rezar para Avalokiteshvara, se encontrar um médico de talento, aí você terá uma saúde perfeita. E normalmente nós desfrutamos de saúde perfeita. Mas a idéia da saúde perfeita é apenas o resultado da ignorância. Não existe algo como saúde perfeita. Se você ainda está vivo, é porque durante a sua infância você ficou doente várias vezes, e dessa forma desenvolveu seu sistema imunológico, porque os fungos, bactérias, os vírus sempre estiveram lá, prontos para atacar. É fácil morrer por causa deles. Você sobreviveu, porque na infância volta e meia se adoentava, e durante o período da doença teve a oportunidade de aprender como liberar anticorpos em você que se desenvolveram. Então, graças aos períodos de doença que teve durante a infância, você ainda está vivo hoje. E se você tiver algum tipo de doença hoje, tem de praticar o olhar profundamente para aceita-la e viver em paz com ela.

Existem quatro doenças básicas que atingem a todos nós, quer queiramos ou não. A primeira é a morte. Eu carrego esta doença em mim, você também. Você também tem de morrer um dia. O Buddha nos lembra de praticar as cinco faculdades, ou cinco poderes. Faz parte da minha natureza morrer. Não posso fugir da morte. A morte é uma doença que atinge a todos, e você a carrega com você. Você pode dizer: “Tenho câncer, vou morrer em três meses. Você não tem câncer, não tem de morrer.” Não está correto. Podemos morrer um pouco depois de você, mas teremos de morrer. E não é garantido que vamos morrer depois de você. Você tem câncer, mas pode viver mais. Impermanência, quem sabe. Então, cada um de nós é atingido por essa doença básica, a morte.

A segunda doença é o envelhecimento. Todos nós hospedamos a doença, trazemo-la dentro de nós. O Buddha disse: “Faz parte da minha natureza envelhecer, não posso fugir do envelhecimento.” A terceira doença é a doença propriamente dita. Faz parte da minha natureza ficar doente, não posso ficar livre da doença. Então, é melhor aprender a aceitar a doença do que lutar. Quanto mais você luta, mais sofre.

Finalmente, faz parte da minha natureza nascer de novo. É uma coisa horrível renascer de novo para muitas pessoas, porque ao longo de suas vidas elas sofreram tanto que desejariam nunca renascer. Às vezes comemoramos nosso aniversário, mas há aqueles que têm muito medo de nascer novamente. Você quer viver para sempre? Você pode suportar a idéia de ter de viver para sempre? É muito assustador não poder morrer. Às vezes estamos tão cansados, sofremos tanto, que achamos que morrer é o único jeito de nos libertarmos. Às vezes sofremos por causa de alguma doença. Não podemos comer por conta própria, não podemos andar, e várias pessoas precisam nos ajudar. Ficamos completamente inúteis nessa vida e ainda assim estamos condenados a viver para sempre. Se alguém chega e diz “Se você quer viver, viver para sempre, venha cá, assine aqui”, acho que você vai ficar assustado. É um tipo de sentença, a mais assustadora. Você é atingido pela doença de ter nascido. Porque nascer significa ter que passar por muita coisa de novo. Você terá de passar de novo por aquilo que já passou. Depois que morrer, você renascerá para fazer a mesma coisa. Muito assustador.

Mas essas quatro doenças – nascimento, envelhecimento, doença e morte – podem ser superados, apenas pela prática do olhar profundamente. A escritura chamada Sutra do Coração é um instrumento para você praticar. Se você praticar, se tiver o privilégio de praticar o Sutra do Coração, chegará o dia em que você será capaz de atingir o mundo do não-renascimento e da não-morte. “Ouça, Shariputra, as coisas são em si mesmas vazias, nada é criado, nada morre. Não há vinda, não há ida, não há ser, não há não-ser.” Isto é o dedo apontando para o mundo, para o mundo do não-nascimento e da não-morte. Se você souber praticar e alcançar o mundo do não-nascimento e da não-morte, então você supera o medo dessas quatro doenças – nascimento, doença, envelhecimento e morte. Seu coração, sua compreensão, se torna tão imensa, que, ao olhar para o que se chama nascimento, morte, doença, envelhecimento, você apenas sorri. Não tem medo algum.

Suponha que exista uma onda, que vive sua vida como uma onda. Há um momento em que a onda nasce, um momento em que a onda atinge seu ponto máximo, um momento em que começa a descer, e um momento em que ela desaparece na superfície do oceano. A onda está tão ocupada, prestando atenção às aparências exteriores, que nunca foi capaz de perceber sua verdadeira essência, que é a água. Sim, em se tratando de uma onda existe nascimento, morte, alto, baixo, mais belo, menos belo. Mas em se tratando da água, não há nascimento, não há morte, nem alto, nem baixo, nem ser, nem não-ser. Se a onda for capaz de perceber sua natureza como água, ela superará todo medo, todo sofrimento causado pela idéia de nascimento, morte, alto, baixo, feio, bonito.

O único meio é praticar o olhar profundamente, ter o insight. Daí, o sofrimento, mesmo que esteja lá, venha ele da sociedade, de seus pais, de seus filhos, de alguns amigos, da guerra, da doença, se você obtiver o conhecimento, se obtiver o insight, se seu coração se tornar incomensurável, você pode alcançar a verdadeira natureza do não-nascimento e não-morte, pode facilmente abraçar todas essas formas de sofrimento. E você não tem de sofrer. Este é o ensinamento de shanti paramita.

[fim da palestra de dharma]


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