Visão kármica


VISÃO KÁRMICA

Sogyal Rinpoche

[…] Os mestres nos dizem que há um aspecto em nossas mentes que é seu terreno fundamental, um estado chamado de “a base da mente ordinária”. Longchenpa, o destacado mestre tibetano do séc.XIV, descreve-o desse modo: “É um estado não iluminado e neutro que pertence à categoria da mente e dos eventos mentais, e que se tornou a base ou fundação de todos os karmas e ‘engramas’ do samsara e do nirvana”. Ele funciona como um armazém em que são estocadas como sementes todas as impressões das ações passadas causadas por nossas emoções negativas. Quando surgem as condições propicias, elas germinam e manifestam-se como circunstâncias e situações da nossa vida.

Imagine essa base da mente ordinária [Alaya vijnana] como um banco no qual o karma é depositado na forma de impressões e tendências habituais. Se tivermos o hábito de pensar seguindo um padrão característico, positivo ou negativo, então essas tendências serão acionadas e provocadas muito facilmente, repetindo-se de maneira continua e recorrente. Com essa repetição constante, nossas inclinações e hábitos entrincheiram-se cada vez mais e persistem, acumulando mais e mais poder, mesmo quando estamos dormindo. É dessa forma que chegam a determinar nossa vida, nossa morte e nosso renascimento.

Sempre nos perguntamos: “Como será quando eu morrer?”

A resposta a isso é que seja qual for o estado da mente que temos agora, seja lá qual for o tipo de pessoas que somos assim seremos no momento da morte, se não mudarmos. Por isso é de importância tão absoluta usar esta vida para purificar nosso fluxo mental e, por decorrência, nosso ser e nosso caráter fundamentais, enquanto podemos.

Como é que chegamos a viver como seres humanos? Todos os seres que têm karma semelhante terão uma visão comum do mundo em torno deles, e esse conjunto de percepções que partilham é chamado de “visão kármica”, Essa estreita correspondência entre o nosso karma e o tipo de reino em que nos encontramos também explica como diferentes formas surgem: você e eu, por exemplo, somos seres humanos devido ao karma básico comum que partilhamos.

Mas mesmo dentro do reino humano todos nós temos o nosso karma individual. Nascemos em países, cidades e famílias diferentes; cada um de nós tem diferente criação, educação influencias e crenças, e todos esses condicionamentos incluem aquele karma. Cada um de nós é um complexo somatório de hábitos e ações passadas, e assim não podemos ver as coisas senão da nossa maneira pessoal, única.

Os seres humanos são muito parecidos, mas percebem as coisas de modo completamente diferente, e cada um de nós vive em seu próprio mundo individual, único e separado […]

Nunca nos esqueçamos: o que vemos é o que nossa visão kármica nos permite ver, e não mais. Exatamente como nós, no impuro e não desenvolvido estado presente da nossa percepção, julgamos a parte do universo que vemos como se fosse o mundo inteiro, assim um inseto pode ver um dos nossos dedos como uma paisagem inteira. Somos tão arrogantes que só acreditamos em ver para crer. Mas os grandes ensinamentos budistas falam de incontáveis mundos em diferentes dimensões – podem haver até muitos mundos extremamente parecidos ou iguais ao nosso -, e diversos astrofísicos modernos desenvolveram teorias sobre a existência de universos paralelos. Como poderíamos fazer afirmações definitivas sobre o que existe ou não para além das fronteiras da nossa limitada visão? […]

AS PORTAS DA PERCEPÇÃO

Como já disse, o modo como percebemos o mundo depende inteiramente de nossa visão kármica.
Essa profusão de percepções nos mostra que todas as visões kármicas são ilusões; já que uma substância (objeto) pode ser percebida de tantas maneiras diferentes, como é que algo pode ter qualquer realidade verdadeira e inerente? Ela também nos mostra como é possível que algumas pessoas sintam esse mundo como o céu, e outras como o inferno.

Os ensinamentos nos dizem que há basicamente três tipos de visão: a visão “kármica, impura” dos seres ordinários; a. “visão da experiência”, que se abre aos praticantes da meditação e é o caminho ou o meio de transcendência, e a “visão pura” dos seres realizados. Um ser realizado, ou um Budha, perceberá este mundo como espontaneamente perfeito, um reino de completa e deslumbrante pureza. Uma vez que eles purificam as causas da visão kármica, vêem tudo diretamente na sua sacralidade desnuda e primordial.

Vemos tudo à nossa volta do modo como vemos porque temos estado solidificando uma e outra vez e do mesmo modo, vida após vida, nossa experiência de realidade interna e externa, e isso levou à convicção equivocada de que aquilo que vemos é objetivamente real. De fato, quando vamos mais fundo no caminho espiritual, aprendemos como trabalhar com as nossas percepções fixas. Todos os nossos velhos conceitos do mundo, da matéria ou mesmo de nós próprios são purificados e dissolvidos, e um campo de visão e de percepção inteiramente novo, que se pode chamar de “divino”, abre-se diante dos nossos olhos. Ou como disse Blake:

Se as portas da percepção fossem purificadas,
Tudo apareceria… Tal como é, infinito.

[…] Na maioria de nós, no entanto, o karma e as emoções negativas obscurecem a capacidade de ver a nossa natureza intrínseca, a natureza da realidade. Como resultado, nós nos agarramos à felicidade e ao sofrimento como coisas reais, e em nossas ações desajeitadas e ignorantes continuamos disseminando as sementes do nosso próximo nascimento. Nossas ações nos mantêm atados ao ciclo contínuo da existência mundana, à roda sem fim do nascimento e da morte. Assim, tudo depende de como vivemos agora, neste exato momento: o modo como vivemos agora pode nos custar todo nosso futuro.[…]

Esta vida é o único momento e lugar em que podemos nos preparar, e só podemos faze-lo verdadeiramente pelas práticas espirituais. […]

A SABEDORIA DA AUSÊNCIA DE EGO

[…] Imagine uma pessoa que subitamente acorda num hospital depois de sofrer um acidente de carro na estrada, e percebe que está com amnésia total. Por fora, tudo está intacto: ela tem o mesmo rosto, a mesma forma, os sentidos e a mente estão lá, mas não tem a menor idéia ou o menor vestígio de memória de quem é. Exatamente do mesmo modo, não conseguimos nos lembrar da nossa verdadeira identidade, nossa natureza original. Freneticamente e na realidade apavorados, procuramos e improvisamos outra identidade, uma em que possamos nos agarrar com todo o desespero de alguém que vai cair num abismo. Essa identidade falsa e assumida em ignorância é o ego”.

Desse modo, o ego é a ausência do conhecimento verdadeiro de quem somos, juntamente com o seu resultado: um malfadado apego, mantido a não importa que preço, a uma imagem remendada e improvisada de nós mesmos, um eu inevitavelmente charlatanesco e camaleônico que está sempre mudando e que precisa mudar para manter viva a ficção da sua existência. Em tibetano, o ego é chamado dak dzín, que quer dizer ‘agarrado a um eu’. O ego é assim definido como um movimento incessante de agarrar-se em uma noção ilusória de ‘eu’ e ‘meu’, desse mesmo e do outro, e em todos os conceitos, idéias, desejos e atividades que sustentam essa falsa construção.

Esse agarrar-se é fútil desde o início e condenado à frustração. Uma vez que não tem nenhuma base ou verdade, e aquilo a que nos agarramos é, por sua própria natureza, impossível de reter. O fato de que precisamos nos agarrar a continuar agarrados a alguma coisa mostra que nas profundezas de nosso ser sabemos que o eu não existe inerentemente. Desse conhecimento secreto e assustador nascem todas as nossas inseguranças fundamentais e o nosso medo. […]

E ainda que possamos ver além das mentiras do ego, estamos assustados demais para abandona-lo; porque sem um verdadeiro conhecimento da natureza da nossa mente, ou real identidade, simplesmente não temos outra alternativa.

O EGO NO CAMINHO ESPIRITUAL

É para acabar com a grotesca tirania do ego que nós seguimos o caminho espiritual, mas os recursos do ego são quase infinitos e a cada estágio ele pode sabotar e perverter nosso desejo de nos libertarmos dele. A verdade é simples, e os ensinamentos são extremamente claros; mas vi muitas vezes, com grande tristeza, que tão logo eles começam a nos mobilizar, o ego tenta complicá-los porque sabe que está sendo ameaçado de maneira direta. Quando estamos no início e ficamos fascinados com o caminho espiritual e suas possibilidades, o ego pode até nos encorajar, dizendo: ‘isso é realmente maravilhoso. É disso que você precisa! Esses ensinamentos fazem um grande sentido!’ E aí, quando dizemos que queremos experimentar a prática da meditação, ou fazer um retiro, o ego cantarolará: “Belíssima idéia vou com você. Podemos ambos aprender alguma coisa”. […]

Mas logo que entramos no que eu chamo de “pia da cozinha”, fase do caminho espiritual em que os ensinamentos começam a tocar-nos profundamente, confrontamo-nos inevitavelmente com a verdade do nosso ser. À medida que o ego é revelado, seus pontos sensíveis tocados, todos os tipos de problema começam a surgir.[…]

Nesse momento começamos a sentir raiva e a nos queixar amargamente; e onde está nosso ego? Fielmente postado a nosso lado, ele nos encoraja: Não vê que esse não é um ensinamento certo para você? Já lhe disse isso há muito tempo! Não vê que ele não é seu mestre? Afinal você é um homem ocidental, bastante inteligente, moderno e sofisticado, e essas coisas exóticas tipo zen, sufismo, meditação, budismo tibetano, pertencem a culturas estrangeiras, orientais. Que interesse pode ter para você uma filosofia que surgiu no Himalaia há mil anos atrás?” Mas seja qual for a força com que o ego tenta sabotar seu caminho espiritual, se você prossegue nele e trabalha profundamente com a prática da meditação, começará a perceber como tem sido enganado pelas promessas do ego: falsas esperanças e falsos medos.[…]

Você começa a ver também como foi poderosa a influência do ego sobre sua mente, e no espaço de liberdade aberto pela meditação – em que você está momentaneamente livre da avidez – você vislumbra a estimulante amplitude de sua verdadeira natureza. Entende que o seu ego, como um artista louco e trapaceiro, enganou você durante anos com esquemas, planos e promessas que nunca foram reais e só o levaram à falência interior. Quando você percebe isso na equanimidade da meditação, sem qualquer consolação ou desejo de esconder o que descobriu, todos os planos e esquemas se revelam vazios e começam a desmoronar. Esse não é um processo puramente destrutivo, porque junto com uma compreensão extremamente precisa e às vezes dolorosa da fraudulência e virtual criminalidade do seu ego, e de todos os demais, cresce uma sensação de expansão interna, um conhecimento direto daquela “ausência de ego” e interdependência de todas as coisas, dessa viva e generosa disposição de espírito que é a marca que autentica a liberdade. […]

O GUIA SÁBIO

Duas pessoas conviveram dentro de você durante toda sua vida.
Uma é o ego, tagarela, exigente, histérico, calculista; a outra é o ser espiritual oculto, cuja voz sábia e serena você raramente ouviu e, se o fez, não a atendeu. À medida que ouve mais e mais os ensinamentos, que os contempla e os integra em sua vida, essa voz interior, sua sabedoria inata do discernimento, chamada no budismo de “sabedoria discriminafiva”, é despertada e fortalecida, e você começa a distinguir sua orientação das diferentes vozes clamorosas e sedutoras do ego. A lembrança da sua real natureza, com todo seu esplendor e confiança, começa a retomar a você.

Você descobrirá, de fato, que revelou em si mesmo o seu guia sábio. Já que ele ou ela o conhece por dentro e por fora, uma vez que é você mesmo, seu guia pode ajudá-lo, com clareza e disposição de espírito cada vez maior, a vencer todas as dificuldades dos seus pensamentos e emoções. Seu guia pode também ser uma presença contínua, jovial, terna, às vezes provocante e brincalhona, que sabe sempre o que é melhor para você e o auxiliará a encontrar mais e mais caminhos para sair de sua obsessão com as reações habituais e emoções confusas[…]

Quando sua amnésia sobre sua identidade começar a ser curada, entenderá afinal que o dak dzin – apego ao eu – é a causa-raiz de todo seu sofrimento. Você entenderá finalmente, quanto mal ele fez a você e aos outros e perceberá que a coisa mais nobre e mais sábia a fazer é proteger e acarinhar os demais, em vez de a si próprio. Isso trará cura a seu coração, cura para sua mente.

É importante lembrar sempre que o princípio da ausência de ego não quer dizer que havia um ego no começo e os budistas o afugentaram. Ao contrário, isso de fato significa que não havia ego algum desde o começo. Compreender isso é o que se chama ausência de ego’.

AS TRÊS FERRAMENTAS DA SABEDORIA

O caminho para descobrir a liberdade da sabedoria da ausência de ego, segundo os mestres passa pelo processo de ouvir e escutar, contemplar e refletir, e meditar. Eles nos aconselham a começar pelo ouvir repetidamente os ensinamentos espirituais. Ouvindo, eles nos recordarão uma e outra vez da nossa oculta natureza de sabedoria. É como se fossemos aquela pessoa que pedi que imaginassem sofrendo de amnésia numa cama de hospital, e alguém que nos amasse e se importasse conosco estivesse sussurrando no ouvido o nosso verdadeiro nome, mostrando-nos fotografias de família e de velhos amigos, tentando trazer de volta o conhecimento da nossa identidade perdida.

Gradualmente, ao ouvir os ensinamentos, certas passagens e visões interiores neles contidos farão vibrar um estranho acorde em nós, lembranças de nossa verdadeira natureza começarão a voltar pouco a pouco, despertando um profundo sentimento de alguma coisa despretensiosa e misteriosamente familiar.

Ouvir é um processo muito mais difícil do que a maioria das pessoas imagina; ouvir realmente, da maneira que os mestres se referem, é abrir mão de si mesmo, de todas as informações, conceitos, idéias e preconceitos que enchem nossas cabeças. Se você de fato ouvir os ensinamentos, aqueles conceitos que são o verdadeiro obstáculo, a única coisa que se interpõe entre nós e nossa natureza real, podem lenta mas firmemente ser eliminados.

Quando tento ouvir verdadeiramente, sempre me inspiro no mestre Zen Suzuki-roshi, que disse: “Se sua mente está vazia, está sempre pronta para qualquer coisa; está pronta para tudo. Na mente do principiante há muitas possibilidades, na do homem experiente há poucas”. A mente de um principiante é uma mente aberta, uma mente vazia, uma mente pronta, e se ouvimos com ela, podemos de fato começar a ouvir. Porque se ouvimos com uma mente silenciosa, tão livre quanto possível do clamor das idéias preconcebidas, dar-se-á uma possibilidade para que a verdade dos ensinamentos nos penetre, e para que o significado da vida e da morte se torne progressivo e surpreendentemente mais claro. Meu mestre Dilgo Khyentse Rinpoche disse: “Quanto mais você ouve, mais você escuta; quanto mais você escuta, mais e mais profundo se torna o entendimento”, O aprofundamento da compreensão, assim, dá-se através da contemplação e da reflexão, a segunda ferramenta da sabedoria.

À medida que contemplamos o que ouvimos, os ensinamentos começam a penetrar nosso fluxo mental e a entrar na experiência interna da nossa vida. À medida que a contemplação revela e enriquece aquilo que começamos a entender de maneira intelectual, e leva esse entendimento da cabeça ao nosso coração, os eventos do cotidiano começam a refletir e a confirmar, direta e sutilmente, as verdades dos ensinamentos.

A terceira ferramenta da sabedoria é a meditação. Depois de ouvir os ensinamentos e de refletir sobre eles, pomos em ação os “ínsíghts” que adquirimos e os aplicamos diretamente, através do processo de meditação, às necessidades da vida cotidiana.