Tirando dúvidas



Tirando dúvidas

Texto de Charlotte Joko Beck,
extraído do livro”Sempre Zen

ALUNO: Algumas vezes, quando leio sobre o zen, tenho a impressão de que somos apenas espectadores.

JOKO: Não, não. Espectadores de jeito nenhum. Zen é ação.

ALUNO: É parece que tem que ver com o ponto-limite. Quando se está no ponto-limite, a ação que você executa não parece tão adequada quanto o necessário…

JOKO: Voltemos à imagem do bote a remo. Por exemplo, a maioria de nós, quando está lidando com crianças pequenas, consegue ver que tudo o que elas fazem — mesmo que se aproximem e dêem um chute em nossa canela — é um bote a remo vazio, certo? Você apenas fica ali de frente para o acontecido. Penso que Buda disse: "O mundo todo são meus filhos". A questão está em continuar deslocando o ponto-limite para adiante; devemos praticar quando não pudermos deixar "o mundo todo ser meus filhos". Creio que é o que você está dizendo.

ALUNO: Quero levar essa analogia um pouco mais adiante. Vamos dizer que a criança não vai chutar sua canela, mas vai pôr fogo na casa.

JOKO: Então, detenha-a! Pegue os fósforos! Ainda assim, ela estará fazendo aquilo por seus motivos. Tente encontrar um meio de ajudá-la a aprender algo com o incidente.

ALUNO: Quando você apenas a detém, está agindo diferentemente do que quando achou que a coisa seria um ataque pessoal?

JOKO: Bem, a verdade é que, com nossos filhos, muitas vezes acreditamos mesmo que a coisa é um ataque pessoal, certo? Contudo, se pudemos refletir por dez segundos que seja, costuma ficar claro que só precisamos enfrentar aquele comportamento por meio de providências adequadas à criança. Podemos agir dessa maneira, a menos que nos sintamos ameaçados em nosso ego por causa do modo como a criança é. Isso NÃO é um bote a remo vazio. Todos os pais têm essa mesma reação de vez em quando. Queremos que nossos filhos sejam perfeitos. Eles precisam ser modelados porque de outra forma as pessoas irão nos criticar. No entanto, nossos filhos são apenas nossos filhos. Não somos perfeitos e eles também não.

ALUNO: Você mencionou: "Não fique com raiva". Quero lhe fazer uma pergunta relacionada com a afirmativa. Você disse que, quando a raiva emerge, é preciso deixá-la acontecer. Ficar ali e deixar estar. Porém, se você tem uma resposta habitual de raiva contra alguma coisa durante muito tempo, como deixar estar essa coisa?

JOKO: Vivenciando a raiva de modo não-verbal, físico. Você não pode forçá-la a ir embora, mas não tem de necessariamente investi-la contra outras pessoas.

ALUNO: Desejo ampliar mais um pouco a analogia do bote a remo: se víssemos que o outro bote está vindo em nossa direção com alguém dentro, provavelmente começaríamos a berrar e a gritar: "Pára isso aí e fica afastado!". Ao passo que se fosse só um bote vazio, talvez apenas pegássemos o remo e levássemos nosso bote para outro lado, evitando a colisão.

JOKO: Certo, tomaríamos a ação adequada.

ALUNO: Não sei se é assim mesmo, porque muitas vezes a gente grita de qualquer jeito, mesmo que o bote esteja vazio; a gente xinga o universo, ou outra coisa qualquer!

JOKO: Sim, é meio parecido com o secador de louça. Você pode gritar, mas existe uma diferença entre uma resposta momentânea e pensar no caso pelas próximas horas.

ALUNO: Mas, mesmo que não haja ninguém no outro bote, damos um jeito de pensar que o universo está fazendo aquilo contra nós. Mesmo sendo um bote a remo vazio, nós colocamos uma pessoa lá dentro.

JOKO: É mesmo. Bem, sempre é um bote vazio. Mais uma vez, a questão é: quanto mais praticamos, é menos provável que a raiva venha à tona. Não porque diremos "Não vou sentir raiva", mas porque a reação simplesmente não acontece. Sentimos de um jeito diferente e pode ser que não consigamos entender porquê.

ALUNO: Se você sente de verdade a raiva emergindo, será este um sinal seguro de que você está num ponto-limite?

JOKO: Sim, e por isso eu disse que o título desta palestra é Não fique com raiva. Repetindo, a questão é entender o que significa prática com raiva; não estou me referindo a uma simples proibição, que, aliás, seria de todo inútil.

ALUNO: Bem, é claro que preciso praticar mais ainda. O que acontece comigo quando ocorre algum tipo de tragédia é o seguinte: "Não mereço isso; “Meu amigo não merece aquilo"; "Mas como foi acontecer uma coisa dessas?". Dou tanta importância à injustiça do fato que começo a me revoltar contra essa "sacanagem".

JOKO: Certo. Isso é muito difícil. Muito, muito difícil. Ainda assim, é uma oportunidade para praticar.

ALUNO: Fico confuso quando ouço um relato de uma iluminação repentina. Se é um processo, como pode existir um estado de iluminação?

JOKO: Eu não disse que havia, para início de conversa! Entretanto, uma experiência de iluminação — enxergar de repente a realidade tal como é — significa apenas que, durante um instante, as considerações pessoais a respeito da vida desapareceram. E, por um segundo, a pessoa enxerga o universal: o problema com a maioria das experiências de iluminação é que as pessoas se agarram a elas, apoderam-se do que lhes parece um tesouro, e isso, então, começa a funcionar como um obstáculo. A questão não é a experiência, é ir em frente com a vida. Qualquer valor que a experiência possa ter, existe dentro de nós, não precisamos mais nos preocupar com isso. Para a maioria de nós, o bote a remo está repleto de outras pessoas o tempo todo; é muito raro que esteja vazio. Assim.., nosso ponto-limite está aqui, e apenas trabalhamos onde estamos. Lembremo-nos dos dois versos do Quinto Patriarca: um se refere a lustrar interminavelmente o espelho, e outro a ver, desde o começo, que não há nenhum espelho a ser lustrado. A maioria das pessoas assume que, sendo a segunda resposta a correta compreensão, a primeira é inútil. Mas, pelo contrário, nossa prática é paradoxalmente a primeira resposta. É limpar e lustrar o espelho. O ponto-limite é onde limpamos o espelho. Absolutamente necessário. Porque só fazendo isso é que, depois de algum tempo, enxergamos que a perfeição de tudo está em ser o que somos. Não conseguimos ver isso enquanto não efetuamos uma prática de fato rigorosa e severa.

ALUNO: Então é bom vivenciar a raiva.

JOKO: Você aprende com ela. Eu não falei que é para lançá-la aos outros. Isso é muito diferente. Podemos até fazê-lo de vez em quando. Não estou afirmando que não o faremos. Apesar disso, não é produtivo fazê-lo. O vivenciar da raiva é uma experiência muito silenciosa. Não faz absolutamente barulho algum.

ALUNO: Creio que uma parte do problema está em você dizer: "Não fique com raiva", e depois afirmar: "Fique com raiva

JOKO: Precisamos tomar cuidado com isso… Estou dizendo que se a raiva é o que você é, então a vivencie. Afinal de contas, é a sua realidade do momento. Se ficamos fingindo que ela não está ali e a encobrimos com uma ordem do tipo "Não fique com raiva", ora é imediata a perda da oportunidade de conhecermos de verdade nossa raiva tal e qual ela é. O outro lado da raiva, se vivenciarmos seu vazio e passarmos por ela, é sempre a compaixão. Se realmente, realmente, a atravessamos por inteiro, bem, basta.



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