Visão Correta e Não-Eu, Sutra Kaccayanagotto

Ensinamentos do Mestre Thich Nhat Hanh
Retiro de 21 dias em Plum Village
de 2 a 21 de junho, 2000

Ensinamentos transmitidos por
Annabel Laity em 4 junho, 2000
Transcrição e tradução de Tenzin Namdrol

Querida Sangha,

Esta manhã, estudaremos o sutra Kaccayanagotta do Samyuta Nikaya.

Não é um sutra fácil, mas poderá contribuir efetivamente para a prática de cada um. Thay tem falado sobre a Visão da Sangha, o que é muito importante, a parte mais importante da prática da Sangha. Quando lemos sutras tais como estes, constatamos que tratam do não-eu. Mesmo que tenhamos alguma compreensão sobre o assunto, só saberemos praticar o não-eu se praticarmos a Visão da Sangha. A prática dos sutras sobre a vacuidade ou do não-eu não é uma noção filosófica, é ampla e de foro íntimo e diz respeito às relações de uns com os outros.

Neste sutra, segundo a versão pali, o Buda está em Sravasti, na região de Kosala. Na versão chinesa, está no distrito de Nala. A distância de Nala a Sravasti é de cerca de duzentos quilômetros. Não são cidades próximas, talvez se deva esta discrepância ao fato dos sutras terem sido gravados na memória viva dos monges durante dois e três séculos. Os inúmeros volumes dos sutras foram transmitidos em lugares diferentes e primeiro memorizados. Não sei qual das versões é a correta, ainda que o lugar não seja importante. A versão chinesa provém de uma corrente que migrou para o norte da Índia e a pali provém do sul , onde o Buda viveu e ensinou.

Depois do parinirvana do Buda formaram-se várias escolas de budismo, uma foi para o Cachemira com todos os sutras memorizados. Outra escola, também com todos os sutras memorizados, instalou-se no leste. É óbvio que até que fosse feito um registro escrito, teriam de grava-los na memória viva da comunidade. No ínterim, muitos pontos podem ter sido alterados o que deve ter originado as diferenças entre os sutras do cânone chinês e os sutras do cânone pali, mas o extraordinário é que, em geral, as diferenças são mínimas. Por vezes é questão de tradução, contudo também acontece serem consideráveis. Quando existem variações na redação dos ensinamentos num sutra e proferidos num mesmo lugar, procuramos saber qual delas se adequa à prática e saberemos o que foi verdadeiramente transmitido. Neste sutra temos sorte porque a versão chinesa e a pali são quase idênticas, o que nos leva a crer terem sido as palavras do Buda. Assim, na versão chinesa, trata-se do Samyuta Ágama No. 301. Fora divergências sobre os lugares onde foi transmitido, o sutra é o mesmo. É interessante observar, contudo, como a ordem do terceiro e quarto parágrafos difere do sutra chinês para o pali, ainda que o conteúdo seja o mesmo.

Naquele tempo o Buda residia em Sravasti e o chefe do clã dos Kaccayana veio visitá-lo, aproximou-se, fez uma reverência e sentou-se de lado, frente ao Buda. Não é costume sentar-se de frente para o Buda, devemos nos sentar de lado. O nome Kaccayana é conhecido devido a Mahakaccayana, um importante discípulo, famoso pela sua capacidade de explicar os ensinamentos com precisão de detalhes, sempre que era solicitado. Creio que o Kaccayana deste sutra não é o Maha, o grande Kaccayana porque aqui aprendemos que Kaccayana se iluminou antes de ser ordenado monge, ao mesmo tempo em que seis outras pessoas. No sutra ele já é ordenado o que leva a crer que são pessoas diferentes. O sufixo "gotta," em Kaccayanagotta, significa clã; pertencia então ao clã dos Kaccayanas. Clã, significa que os antepassados são comuns e, neste caso, que o nome ancestral é Kaccayana. Cada pessoa na Índia pertencia a um clã, ele talvez tenha pertencido ao mesmo clã de Mahakaccayana.

Assim, sentou-se de lado, frente ao Baghavat (o Buda), aquele que é feliz ou honrado, ou o Honrado pelo Mundo. Então falou, "samaditi, samaditi." (quer dizer visão correta). "Visão correta, visão correta, bante, bante," (Respeitável ou Querido Mestre) "Fala-se sempre de visão correta, será a visão de quem está falando sobre a visão correta? Será o Buda e os discípulos também falam da visão correta? Shariputra falou sobre a visão correta, a visão ampla e deu um ensinamento sobre a visão correta. Mas diga-nos o que quer dizer visão correta?" Quando o Buda dava um ensinamento para uma assembléia, havia muita gente atenta, alguém iniciava com uma pergunta, não para esclarecer uma dúvida pessoal, mas para o esclarecimento de toda a assembléia. Os monges escutavam e memorizavam a estrutura dos ensinamentos que eram longos, já que não seriam capazes de os reter com toda a riqueza de detalhes. Por isso os que chegaram até nós, os que ficaram registrados, são concisos, com a prática adquirem músculos e ossatura, tornam-se ainda mais concisos.

"Visão correta, Respeitável Mestre, sempre se fala sobre isto. Respeitável Mestre, o que vem a ser visão correta?"

Neste mundo, Kaccayana, quase todos tomam refúgio no dualismo do "ser" e "não ser." Cremos em existência e na não existência; pensamos que quando morremos deixamos de existir e que enquanto vivemos, existimos. Chama-se dualidade e é assim que pensam quase todos os que vivem neste mundo.

Atribui-se a Nagarjuna, um renomado mestre budista que viveu nos primórdios da era cristã, o Caminho do Meio e todos os ensinamentos sobre a vacuidade, o Prajanapramita, tal como encontramos no Sutra do Coração que se assemelha e este ensinamento. Nagarjuna aludiu a este sutra no seu comentário sobre o Caminho do Meio dizendo que, nos ensinamentos transmitidos a Kaccayana, "existe" e "não existe" é dualístico, que ambos são negados pelo Senhor Honrado pelo Mundo para quem inexistem "o ser" e "o não ser." Segundo Nagarjuna, o Buda mostra a não existência da existência e da não não-existência.

O sutra alude várias vezes à palavra "loco." Vemos que significa gente, quer dizer você e eu, todos os seres viventes do planeta. Adiante, quando vemos a palavra mundo, trata-se de uma visão de mundo, que no sutra significa a nossa visão de mundo feita de nossa retribuição pessoal e a retribuição do nosso meio ambiente. Falaremos sobre o assunto adiante.

Vou escrever no quadro, em pali, a palavra "ser" e "não ser." Aqui, a palavra em pali, sob a qual está a palavra sânscrita. Ela é composta de duas partes: nesta, se encontram tanto ser quanto não ser. A primeira é meramente uma pessoa do verbo ser, assim sendo, esta palavra quer dizer "é ", e esta quer dizer "não é". Aqui, quer dizer "a qualidade de ser" e aqui quer dizer "a qualidade de não ser". Favorecemos um certo modo de pensar que se revela na linguagem. A gramática da língua que falamos favorece "é" e "não é" e fortalece a propensão que temos de nos enredar cada vez mais no pensamento.

Esta é a palavra para mundo, "loka". Há quem diga, "não tenho medo de morrer porque a morte só quer dizer que nada mais terá existência," a noção de que nada existe. Sob o efeito esmagador de emoções gostaríamos de deixar de existir. Cremos que existe um jeito de fazer com que a emoção deixe de existir, que ela existe verdadeiramente, e que talvez possamos fazer com que ela inexista. Surge-nos a noção de suicídio e podemos passar ao ato, baseados na idéia de que "agora existe verdadeiramente", mas posso fazer com que "deixe de existir verdadeiramente".

O Buda nos ensina que isto é dualismo, e segundo Nagarjuna, o Buda é hábil em constatar e ensinar a ilusão "existe/não existe.". O sutra diz que neste nosso mundo, o ser humano se refugia na dualidade. Diz que precisamos de um ponto de apoio para confirmar o que pensamos e ajudar a manter a convicção de um eu inerente e separado; que nos confirme a premissa, "é". Uma vez que temos a noção, "verdadeiramente é" precisamos, enquanto for possível, da noção contrária, "verdadeiramente não é," enquanto o que nos ensina o Buda é que, agora, é verdadeiramente, mas não será outra vez e antes, verdadeiramente, não era.

Quem não tenha praticado, não tenha ouvido falar nos ensinamentos do Desperto, pensa: "existe verdadeiramente," ou "não existe verdadeiramente". Então o Buda explica como um praticante, um Desperto observa o mundo e diz: "quando observamos com a visão correta, o verdadeiro fazer-se do mundo, encontraremos a não existência no tocante ao mundo. Quando observarmos com a visão correta o desfazer-se do mundo, tal como se processa, não haverá não existência no tocante ao mundo. Assim, o praticante primeiro observa o chamado "fazer-se do mundo", loka samudaya. Em budismo não se fala de criação do mundo, mas no fazer-se do mundo. "Sam" quer dizer agregar e "udaya" quer dizer surgir, assim o que surge em simultaneidade faz-se a si mesmo. De que é feito o mundo? O mundo é composto de cinco agregados: corpo, sensações, percepção (a forma de perceber e nomear as coisas), formações mentais (emoções e pensamentos) e consciência. Trata-se do que é feito no mundo aqui onde estou, porque a percepção inclui tudo o que nos rodeia, tudo o que percebemos. Sendo assim o mundo inteiro está circunscrito aos cinco agregados. Corpo, sensações, percepções, formações mentais e consciência. Isto é o mundo.

"Samudaya" quer dizer o fazer-se do mundo. Tomemos, por exemplo, um objeto da nossa percepção, uma flor. Vemos o fazer-se da flor. Não como fruto da criação, mas de que consta o fazer-se da flor? Quando o fazer-se da flor teve lugar? A noção de criação sugere um acontecimento pretérito em um momento dado, então temos o criado diante de nós no presente. Porém, com a noção de samudaya, o fazer-se não acontece num momento dado. Na verdade, a flor se faz no momento presente, não foi feita no passado para então no presente constatarmos, "olha! Está aqui!" Ela está se fazendo….

A flor está porque o sol está, porque a água está, porque o jardineiro está, porque nossos olhos estão, porque a nossa consciência está, então a flor está e a isto chamamos o fazer-se da flor. Todos estes fatores que se encontram na flor são chamados do "fazer-se da flor." (No quadro Sr. Annabel aponta as palavras) Esta palavra quer dizer "correta," esta dizer "insight" (visão profunda). Thay falou muito sobre visão ontem e neste sutra o Buda está falando também de visão, porque usa a palavra ver, quase sempre associada ao ato de ver um objeto com os olhos. Quando observamos qualquer coisa com a visão profunda, sabemos que um dos cinco tipos de visão é a visão da sabedoria, a visão que o Buda se refere.

Sabemos que a sabedoria só é possível quando existe plena atenção, visão profunda e concentração praticados simultaneamente. Assim, quando o Buda usa a palavra "samyak prajna" afirma que este treinamento sem plena atenção, sem concentração não conduz à visão profunda. Pode acontecer, mas apenas por um curto período de tempo e não vai transformar nem revolucionar a consciência na base. Para podermos ver o fazer-se da flor necessitamos concentração e também de plena atenção. Para vermos o fazer-se da flor é preciso por fim à agitação da mente, retornar ao nosso verdadeiro lar, a nós mesmos, plenamente presentes no momento.

Assim vemos que o fazer-se da flor acontece no momento presente. Não acontece no futuro e não acontece no passado, acontece quando a mente se aquieta. Temos a oportunidade durante o retiro de praticar esta quietude, sobretudo durante o nobre silêncio, durante a meditação da refeição, na meditação sentada ou na caminhada meditativa; todos são bons momentos para aquietar a mente. Quando digo aquietar, trata-se de aquietar a formação mental, acelerar. Não que vamos deixar de nos mover, mas porque a mente tem a propensão de acelerar, então precisa desacelerar para depois parar. É só quando ela para que é possível a visão profunda. Podemos fazer a respiração consciente, sem idéias preconcebidas, apenas nos abrirmos para o que está acontecendo no momento, "O praticante tem a visão profunda, o fazer-se do mundo que se fez precisamente como veio a ser. Com esta visão profunda vemos a flor como ela veio a ser".

Nos Quatro Estabelecimentos da Plena Atenção vemos que o Buda sugere um exercício no fim de cada secção, e no da Plena Atenção sobre o corpo, diz o seguinte: "o praticante tem consciência do corpo no corpo, tem consciência do vir-a-ser do corpo, ele tem consciência da dissolução do corpo e ele tem consciência tanto do vir-a-ser quanto da dissolução do corpo." Quando praticamos os Quatro Estabelecimentos da Plena Atenção praticamos para ter a mesma visão profunda que temos quando praticamos o sutra do Caminho do Meio.

É exatamente disto de que o praticante tem consciência no momento presente, não é uma teoria porque ao tomarmos consciência do fazer-se do mundo estamos sempre diante de algo de novo, algo de que tomamos consciência no momento presente, não se trata de algo de que estava consciente ontem e que tenha sido mantido até o momento presente.

Primeiro, temos consciência de "samudaya" e depois de "niroda". "Niroda" é uma palavra que não tem tradução mas é inadequadamente traduzida por "cessação." Se o sol fosse retirado da flor ela não se desagregaria, mas seria o "niroda" da flor e não corresponde exatamente à cessação da flor. Significaria apenas que o sol contido na flor foi devolvido ao sol e que o fazer-se da flor não pode acontecer. Se, por exemplo, nos fossem retirados os antepassados, de certo modo, cessamos; este é o nosso "niroda." Se retirarmos de nós os descendentes, também é o nosso "niroda," a nossa cessação. Se quando estamos com raiva retirarmos a adrenalina da nossa raiva, a raiva cessa; é o "niroda" da raiva. Não quer dizer a não existência da raiva, quer dizer apenas que um elemento foi retirado da raiva. É como se cortando o fio de um colar e caíssem as contas, seria o "niroda" do colar. Não quer dizer que o colar não exista, estão o fio e as contas, os elementos de que é feito o colar, mas já não estão associados. Este é o significado da palavra "niroda."

Claro que "niroda" está sempre acontecendo. Um sutra tal como este pode ser mal interpretado se não tivermos uma boa compreensão da palavra "samudaya" e da palavra "niroda." A palavra "samudaya" é em geral traduzida por original e a palavra "niroda" por fim ou cessação, o que nos leva a crer que a origem está num passado longínquo e que o fim vai acontecer no futuro porque, como bons budistas, sabemos que o mundo é impermanente e que terá um fim. Podemos pensar que neste sutra o Buda esteja aludindo ao big bang, a explosão primordial que dizem ter criado o mundo que um dia acabará. Mas não é o que diz o Buda que trata do fazer-se, tal como acontece agora, sem o passado e sem a cessação do que quer que seja, apenas como se manifesta agora. Tão logo sejam retiradas ou devolvidas às suas fontes as diferentes causas e condições que deram existência ao que quer que seja, isto mesmo ao que deram existência, não é mais manifesto.

Se ao meditarmos na flor devolvermos a água à água, a água devolvida às nuvens, o sol devolvido ao sol, então a flor deixa de ter um eu separado. Deixa de estar separada. O mesmo acontece quando meditamos no fazer-se da flor. Vemos que a flor não tem um eu separado, mas que, isto é assim, porque aquilo é assim; na verdade, ver a cessação e ver o fazer-se são formas de ver. Não existe um eu separado e uma pessoa com a visão profunda correta, medita nestes dois aspetos. Quando Mahamaudgalyana e Sariputra morreram o Buda disse: hoje, contemplando a assembléia vejo o vazio enorme que se fez com a ausência de Mahamaudgalyana e Sariputra. O Buda nos surpreende com tais ditos porque também é um ser humano. O Buda é, ele mesmo, os seus discípulos que sentem a falta de Sariputra e que sentem a falta de Mahamaudgalyana e assim, quando olha para a assembléia ele vê que "falta alguma coisa," considerando o falecimento destes dois veneráveis monges. Depois conduz seus discípulos mais adiante dizendo, "é natural que Mahamaudgalyana e Sariputra tenham morrido, tudo aquilo que se agrega devido a causas e condições, quando estas causas e condições deixam de estar presentes, o agregado não poderá mais manter a mesma forma, portanto, não há lugar para lamentações. Monges, não lamentem, não estejam angustiados com os desaparecimentos destes dois veneráveis porque não é que Sariputra e Mahamaudgalyana deixaram de existir, mas que as causas e efeitos já não permitem a estes conceitos de se agregarem em nossas mentes. Assim, o Buda nos anima a meditar no fazer-se e no desfazer-se, ou no "niroda." Traduz-se "niroda" como cessação e lembrem-se que no "Anapannasattisutra" ao inspirar pela 14a vez o praticante contempla a cessação da expiração, contempla a cessação e Thay traduz da seguinte forma, "inspirando o praticante contempla o nascimento e a morte, expirando o praticante contempla o não nascimento e a não morte, assim, a palavra "niroda," também pode significar "não nascimento e não morte." Podemos fazer esta meditação acerca da nossa própria pessoa. Retirando um dos elementos que nos aglutinam veremos que o colar de contas se desfaz, que não existe um eu separado.

A dificuldade surge com a noção de passado e futuro. Pensamos que algo se fez no passado e que será desfeito no futuro e que agora existe como um produto acabado. Contudo, segundo os ensinamentos do Buda, devido ao fazer-se e ao desfazer-se, o produto acabado não existe, está acontecendo continuadamente, o que pode ser de difícil apreensão.

Resumindo:

Apoiamo-nos na noção de, "é" ou "não é." Por exemplo, tomando uma flor dizemos, "ah sim, foi colhida agora no jardim." Passado uma semana a jogamos no lixo dizendo, "a flor deixou de existir, rigorosamente deixou de existir" mas o Buda diz que todo o tempo a flor está se fazendo assim como, todo o tempo também está se desfazendo. A flor faz-se e desfaz-se, nos ensina o Buda e com a visão profunda correta também veremos assim.

A seguir o Buda discorre sobre a natureza de quem vive no mundo e o parágrafo seguinte é dedicado à psicologia. Ainda que o Buda não tenha formalmente discorrido sobre psicologia trata da forma como percebemos o mundo, concreta na tradução chinesa que associa o sofrimento causado pelo apego e cobiça ao consciente. A versão pali é mais complicada e versa sobre apego e cobiça associados à mente inconsciente. Assim, a noção de que algo exista verdadeiramente ou não exista verdadeiramente são propensões profundamente enraizadas na mente inconsciente e o labor de transforma-las é levado a cabo a níveis muito profundos. Podemos transformar a propensão consciente mas não teremos transformado a mente inconsciente. Segundo os ensinamentos de uma subseqüente psicologia budista é preciso uma transformação na base, o suporte da mente consciente precisa ser transformado, não apenas a mente consciente; e o suporte da mente consciente é a mente inconsciente.

Assim, voltamos a falar sobre o mundo, quer dizer nós os seres humanos do planeta, na sua maioria—e o Buda fala na maioria porque sabemos que uns poucos por toda a parte são seres despertos que compreendem a verdadeira natureza do que observam. "O mundo, na sua generalidade, Kaccayana, está limitado por propensões associadas à cobiça e preconceitos."

Propensão também quer dizer apego. Preconceitos também querem dizer propensões. Propensões são parceiros de adormecimento, a palavra "anushayo" significa o que está sempre conosco, em repouso, adormecido. "Anu" quer dizer acompanhando e "shayo" quer dizer em repouso, adormecido, e refere-se à mente inconsciente. Adormecido sugere estar inconsciente, ainda que a mente inconsciente abarque a mente consciente. O material consciente de que nossos antepassados e da sociedade pode vir a adormecer em nossas mentes. Quando acontece aludimos à mente inconsciente. Assim, aquilo que num momento dado é consciente pode passar a ser inconsciente. Não é que haja uma barreira entre a mente consciente e a mente inconsciente, apenas na mente inconsciente o material está adormecido, até que um dia ouçamos uma palavra, ou estejamos diante de um fato em nossas vidas e tomamos consciência da propensão. Por isso é benéfico estar com a Sangha, não buscar a vida de eremita na montanha por que só em comunidade estamos expostos suficientemente para constatar as possíveis transformações na base. Vejamos por exemplo, "anushayo:" quando estamos profundamente adormecidos, acordamos com um barulho ensurdecedor, ocorre-nos, "Perigo!" e corremos para nos proteger. Esta propensão de que temos um eu separado surge tão logo ouvimos um forte barulho enquanto dormimos. Anteriormente, a tendência de acreditar num eu separado estava completamente adormecida. Podíamos estar sonhando com a não existência de um eu separado ou estarmos profundamente adormecidos sem qualquer noção de um eu separado e com um barulho forte surge noção, adormecida até então, de um eu separado.

Temos propensões que nos vêm da linguagem, dos antepassados e ainda de muitos outros fatores, adormecidos no inconsciente que nos fazem crer num eu separado. Ouvimos muitos ensinamentos do Buda, mas como não se trata de uma filosofia, a propensão permanece. A transformação é feita através da vivência e por isso optamos pela vida em comunidade e a visão da Sangha.

Na meditação podemos ter uma visão profunda do não eu que pode, contudo, não romper a casca rija que contém protegendo esta noção. Ainda que a meditação possa ser uma das causas e condições que contribui para este rompimento, nem sempre é suficiente. Há quem tenha acesso a estados profundos de meditação mas quando volta ao convívio de sempre se depara com os velhos parceiros de adormecimento.

"Quando o praticante não adere a uma posição a que a mente tenha aderido, não se apega às coisas às quais a mente se tenha apegado, nem aos parceiros de preconceito no adormecimento, deixa de existir um si mesmo separado do eu. (there is no separate self of me.) Não tenho a sensação de que no meu interior ou no que me rodeia eu exista num eu separado."

Assim, este sutra afirma que a idéia de um si mesmo vem da propensão associada ao aferro, porque por mais que procure não encontro o que quer que possa ser designado si mesmo. Não está dentro do meu corpo, nem tampouco fora, flutuando. O si mesmo é uma noção que tenho que não está baseada em nada que possa ser apreendido pelos sentidos assim, tenho a propensão de apreender o mundo fenomenal como eu mesmo. Associo a minha prática religiosa ao eu mesmo, identifico-me com ela, ou com o país onde vivo, ou com a consciência, apreendendo tudo como eu mesmo.

É assim que se manifesta parte da minha consciência, se aferrando e rotulando o mundo fenomenal de "eu mesmo." Quando não existe nada a que me possa aferrar e rotular, "eu mesmo," compreendemos o significado do "não eu." A palavra para "eu" em pali é "atta." Em sânscrito é "atman," uma espécie de realidade a respeito de mim, traduzida pela palavra alma. Quando não compreendemos o budismo pensamos que exista algo chamado de reencarnação, que quando morrermos a alma se transporta para outro corpo e assim não morremos; é a idéia de "atman," "atta." Mas o Buda ensinou que esta propensão da mente de inventar um fenômeno chamado atman não corresponde à realidade e se compreendermos o fazer-se do mundo então compreendemos o niroda do mundo. Não se pode admitir uma teoria do "atman" senão promulgada por um eu separado.

Recentemente, no Centro de Dharma Montanha Verde tivemos que cortar uma árvore porque o topo estava morto e poderia cair no telhado. Na Índia antes de se cortar uma árvore queima-se junto a ela incenso, oferecem-se flores e acende-se uma vela. Se perguntarmos o motivo, dirão que é devido ao espírito da árvore, que para que não se inquiete causando prejuízo à comunidade, deve ser convidado a sair antes que seja derrubada. Em certas comunidades no tempo do Buda uma regra proibia os monges de cortar árvores, mesmo para construir as suas cabanas, porque os aldeões temiam a vingança dos espíritos desalojados sem aviso prévio.

É lógico que não queremos destruir árvores. Não porque podem se vingar de nós mas porque a árvore nos deu sombra, é nela que os passarinhos vêm cantar e aonde descansamos quando faz calor. Também é uma esplêndida manifestação da vida e não queremos destruí-la. Assim, pela manhã, acendi o incenso e a vela ao pé da árvore, ofereci-lhe flores e abraçando-a perguntei: "vai ser preciso derrubar você, como se sente ao ouvir esta notícia?" E a árvore respondeu: "estou feliz porque a árvore faz parte de todo o universo, a árvore foi o sol e a chuva e a terra e todas as outras árvores ao redor e todos os anos no outono caíram folhas que alimentaram os brotos na primavera e derrubada ainda serei alimento para as árvores que me rodeiam porque suas folhas caíram ao longo de muitos anos transformaram-se em terra e alimento para tantas outras árvores." A árvore aceitou perfeitamente, não parecia partilhar a minha preocupação.

Assim este espírito, a idéia que fazemos da árvore, como um eu e este eu é convidado a sair para que não sofra quando a árvore for derrubada. Na verdade a árvore disse-me que já se tinha mudado, que o convite era desnecessário, que ela já estava na terra, já estava no sol, já estava na chuva, não era preciso deslocar-se para onde quer que fosse. Depois de derrubada perdurará no sol, na chuva, na terra e nas demais árvores.

Há um outro sutra do cânone chinês chamado sutra da Grande Vacuidade, número 297 no Samyura Ágama. "A velhice e a morte surgem a partir de condições. Se perguntarmos, "quem envelhece?" e "quem morre?" "a velhice e a morte pertencem a quem?" e se responderem, "eu envelhecerei, eu morrerei, a velhice e a morte me pertencem." não terão realizado a prática do Bramacharya. Devido às formas gramaticais da nossa língua e às nossas propensões, por termos o sentido de um eu, o que nos ocorre é, "estou velho, sou aquele que vai morrer…" O Buda diz que quando não realizamos a prática temos esta idéia, temos medo, o que nos impede de realizar a prática. A prática do Bramacharya é de monges e monjas que dedicam suas vidas à prática, mas se aplica igualmente aos leigos: upasaka e upasika. Como Annatapindika disse pouco antes de morrer, quando estava sendo instruído por Sariputra, "há leigos que podem entender estes ensinamentos, rogo-lhe, transmita isto ao Buda!" Tenho certeza de que o Buda estava ciente do fato e o que Annatapindika queria dizer era, "peça ao Buda que dê mais ensinamentos como estes para os leigos!"

Este sutra da Grande Vacuidade trata de causas e condições e afirma que quando nos ordenamos monges ou monjas ou quando optamos por dedicar o resto de nossas vidas à prática, recebemos os Cinco ou os Catorze Treinamentos da Plena Atenção. Nosso objetivo, nosso verdadeiro empreendimento, o ponto alto da nossa vocação, será realizar a verdade do não nascimento e da não morte, a verdade da não existência e da não não existência. Com esta prática não mais existe a idéia de que "sou o velho que envelhece, sou o velho que morre." Claro que existe velhice e morte mas não estamos apegados à idéia de que, "sou eu o velho."

Em parte é culpa da gramática da língua em que nos expressamos porque precisamos de um verbo e o verbo tem um sujeito, ainda que nem sempre haja um objeto. Por exemplo, conjugando o verbo morrer , "eu morro, ou tu morres, ou ele morre." Se for o verbo ficar velho conjugamos, "eu fico velho, ou tu ficas velho ou ele fica velho." Mas com a visão profunda será que precisamos mesmo as palavras eu, ou tu ou ele? Segundo o Buda não precisamos de sujeitos. Podemos observar o mundo de forma que o sujeito passe a ser supérfluo. Assim, o Buda diz, "a velhice é assim porque isto é assim." Quando nasce um bebê ele é cuidado, vestido, alimentado, mais tarde vai para a escola, depois sai pelo mundo, se casa, é pai e depois avô, etc. Então surge a morte. Assim como tem nascimento, tem morte, mas não é preciso dizer, "sou eu quem morre." Thay conta uma linda história de um mestre que era avô e que, já idoso, trabalhava no jardim. Um dia preparando a terra sentiu-se cansado e disse, "mas quem é aquele não vai se cansar, quem é aquele vai morrer?" E o Buda diz que não é preciso dizer, "eu não vou sentir cansaço," ou "eu vou morrer." Basta dizer, "o cansaço existe devido a causas e condições e a morte existe devido a causas e condições. Isto existe devido a isso, isto não existe devido ao fato de que isso não existe. Assim é possível através da prática com a Sangha transformar as propensões profundamente enrustidas na nossa consciência que estimam que sou eu quem envelhece e sou eu quem morre."

Assim à pergunta seguinte, "então, não existe mais sofrimento?" podemos crer que é o Buda que responde. "Quando o sofrimento está se fazendo, ele se faz, quando o sofrimento está se desfazendo ele se desfaz, o praticante não tem a menor dúvida." Podemos nos perguntar, mas que conversa é esta do Buda? Claro, todos temos consciência de que quando o sofrimento existe, ele existe e quando ele inexiste, ele inexiste, não é preciso ser um praticante, nem ter visão profunda e concentração para estar consciente disto. Mas o Buda disse claramente no texto que não há dúvida que o sofrimento existe, que ele vai se fazendo e que se desfaz quando se desfaz. Parece ser o que o Buda diz no Sutra do Coração, "não existe sofrimento, nem fim do sofrimento, nem causa do sofrimento, nem caminho."

Quando o Buda morreu converteram os seus ensinamentos, tais como as Quatro Nobres Verdades, em teorias. O que passa por ser um praticante de budismo é aquele que conhece as teorias e é capaz de repeti-las. Contudo, ao tempo do Buda os ensinamentos não eram um ideário, nem eram teóricos. Assim, quando recitamos formalmente o Coração do Prajnaparamita, "não existe sofrimento, nem fim do sofrimento, nem causa do sofrimento, nem caminho," significa que os ensinamentos do Buda não são teóricos. Como não são teóricos não nos enredam; são as práticas do nosso cotidiano. Como o Buda afirma: "quando surge o sofrimento, quando todas as causas e condições para o sofrimento estão reunidas, o sofrimento se faz." O praticante está plenamente consciente, não tem dúvida. Mas também pode pensar, talvez o sofrimento não exista, talvez fugindo se livrará do sofrimento, talvez exista um lugar por onde não passe o sofrimento…. mas logo reconhece, "sim, o sofrimento existe." E o sofrimento existe porque aquilo existe; cortamos o fio do colar que denominamos sofrimento, conscientes de que o sofrimento não se fez e se desfez no momento. Quando o sofrimento se faz o praticante sabe que o sofrimento está se fazendo de causas e condições. Quando uma das causas e condições é retirada e o sofrimento não está se fazendo o praticante tem consciência de que o sofrimento não está se fazendo. É o que nos ensina o Buda que não afirma se o Tathagata existe ou não depois da sua morte, mas que afirmou claramente: "monges, apenas ensino dois pontos: o fazer-se do sofrimento (dukkha samudaya) e o desfazer-se do sofrimento (dukkha niroda) que não acontece no passado para continuar no presente, mas é somente o que acontece no presente. Se no momento presente o sofrimento se faz, o praticante reconhece e pratica com o sofrimento do momento. Se no momento presente o sofrimento se desfaz, o praticante reconhece que o sofrimento se desfaz. Se aludir ao meu sofrimento digo, "estou cansada e quando morrer deixarei de estar cansada," é que tenho a noção de um eu separado. Na verdade, o cansaço não me pertence, o cansaço está presente devido a causas e condições para o cansaço. No sutra da Grande Vacuidade o Buda afirma, "Se digo que sou velho e estou envelhecendo e que a velhice me pertence, não aprofundei e não compreendi a prática."

O Buda diz que esta compreensão não advém dos outros, mas surge da compreensão do praticante. Ele quer dizer que este ensinamento não é teórico, não é um ensinamento que possa ser transmitido por Sariputra e que quando acreditamos somos transformados. Temos uma relação com o sofrimento, com o fazer-se e o desfazer-se do sofrimento no contínuo mental, no momento presente. A compreensão só pode ser fruto da prática, não pode ser transmitida por outrem. Naquele tempo, na Índia, a teoria foi muito bem recebida e diferentes mestres tinham diferentes teorias, pensava-se que era possível encontrar a libertação através de teorias, mas a colocação do Buda foi de que só podemos ser libertados através da prática. O Buda deu sugestões e formas de estimular os discípulos: "porque não olham para esta direção em vez de estarem sempre olhando para aquela?" Compete aos discípulos olhar na direção que o Buda indica para que a experiência seja pessoal.


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