Zenguetsu Suigan Daiosho, Yogo Roshi


Yogo Roshi foi Abade Superior do mosteiro Saijoji, em Odawara, e Vice-Abade Superior do mosteiro sede de Sojiji, em Yokohama. Sua morte é uma perda para o Budismo Soto Zen e para todos que o contataram. Reconhecendo o impacto de sua vida e ensinamentos, me sinto encorajada a continuar minha prática com toda intensidade.

A UM MESTRE ZEN

           Dia 21 de dezembro, ao amanhecer, silenciosa e tranqüilamente, Zenguetsu Suigan Daiosho, Yogo Roshi, entrou parinirvana, em seus aposentos internos de Abade Superior do Mosteiro Saijo-ji, na montanha Daiyuzan, em Odawara, Kanagawa-ken, Japão. Em 9 de setembro do mesmo ano, 1.996, havia completado 84 anos.
          “O verdadeiro Dharmakaya nem aparece nem desaparece…”
          As palavras da dedicatória dos serviços memoriais para monges é clara: o verdadeiro corpo do Dharma, o verdadeiro corpo da Lei ,dos Ensinamentos Corretos, não aparece nem desaparece. O famoso não-nascido e não-morto dos textos Zen Budistas mais uma vez se revelando.

A NOTÍCIA

          Dia 20, sexta-feira, 22:00 h no Brasil. Recebo uma ligação do Japão, onde já era sábado, dia 21. A voz da monja Kagai-san, minha companheira de treinamento no Convento de Nagoya, irmã de transmissão do Dharma, e nos últimos dez anos, assistente particular de Yogo Roshi, soa trêmula :

          – Nosso mestre morreu esta manhã. Seu corpo será cremado dia 25. Você acha que pode chegar aqui antes da cremação?

          – Vou tentar chegar dia 24.Ele morreu no hospital?

          – Não, não. Morreu aqui no mosteiro, cercado por todos nós. Foi muito lindo, muito tranqüilo. Tente chegar aqui antes da cremação, sim?

          Passei a manhã de sábado tentando contato com o Consulado do Japão, em São Paulo, para pedir novo visto de entrada. Fim-de-semana, seguido do feriado do aniversário do Imperador e a maioria dos diplomatas deslocados para Lima, no Peru, procurando resolver o problema do grupo terrorista que invadira a embaixada. Só chegaria a tempo se tomasse o avião de domingo à noite.

          – Sem visto de entrada? Impossível, me diz a agente de viagens.

O PRIMEIRO ENCONTRO

          Sem dúvida nenhuma devo muito ao meu professor de ordenação, o falecido Koun Taizan Daiosho, Maezumi Roshi, fundador do Zen Center of Los Angeles, hoje sede da grande Comunidade Budista Internacional, conhecida como White Plum Asangha, espalhada pelos Estados Unidos, México, Europa, Austrália, Canadá. Foi ele quem primeiro me indicou o Caminho, que devido à sua infinita compaixão me proporcionou a possibilidade de praticar em Los Angeles, de me tornar monja, de ir para o convento de Nagoya e finalmente me tornar discípula oficial de Yogo Roshi.
          Conheci Yogo Roshi no dia 5 de outubro de 1983 (Showa 58, no Japão). Por coincidência o dia memorial para Bodaidaruma, o famoso monge que atravessou da Índia para a China, por volta do século V, a fim de transmitir os ensinamentos de Zazen. Figura historicamente importante para todos os monges do grupo Zen Budista, figura lendária e inspiradora para todos praticantes do Caminho. Esse foi o dia em que entrei para o Convento de Nagoya, aonde praticaria por oito anos consecutivos. Era o sesshin em homenagem a Bodaidaruma Daiosho. Fui apresentada a Yogo Roshi, que me olhou fixamente e disse:
          – Você fará sesshin comigo.
          Falava no Inglês que aprendera em sua juventude, quando estudara em Londres. Em minha petulância e atrevimento de principiante respondi:
          – E você comigo.

NAGOYA

          Durante os anos que se seguiram em Nagoya, nas dificuldades de adaptação, sem conhecer o idioma e os costumes, era sempre a ele que me dirigia. Yogo Roshi vinha ao nosso convento cada dois ou três meses, por períodos de três, cinco, sete dias, a fim de liderar nossos retiros principais. Eu sempre dava um jeito de me esgueirar por entre o elo de proteção que a abadessa e as outras monjas faziam à sua volta e ia perturbá-lo nas horas de descanso, com minhas constantes perguntas, dúvidas e ate mesmo reclamações. Ele sempre me atendeu. Falávamos do Shobogenzo de Mestre Doguen, da pratica no convento, tomávamos chá juntos, muitas vezes acompanhados pela própria abadessa. Formou-se uma compreensão, entendimento, sutil e profundo, de grande força e delicadeza.
          A doce e severa Aoyama Shundo Roshi, abadessa de Nagoya, me honrou ao aceitar que eu fosse a primeira Shusso (Chefe de treinamento das monjas em Aoyama Shundo Roshi) de nosso mosteiro. Cabe aqui um parêntesis : embora nossa tradição Soto Zen exista no Japão desde a volta de Doguen da China (princípios de 1.200), as monjas só tiveram um mosteiro especial para mulheres definido no começo deste século. Foram quatro monjas que uniram seus esforços e conseguiram fundar o convento de Nagoya. Outras fundaram em Niigata e em Toyama, mas o de Nagoya foi sempre o mais procurado.
          Durante todos os anos de lutas pela igualdade de direitos das monjas, não apenas no aspecto dos sacramentos, mas de estudos e de ajuda financeira, houve um monge que se destacou : Yogo Roshi. Quando servira de Godo no mosteiro-sede de Sojiji conhecera a monja irlandesa , Jiyu Kennedy. Nessa época, Yogo Roshi ajudou-a fazer importantes traduções de textos budistas para o inglês. Yogo Roshi me confidenciou que ela era uma das pessoas mais inteligentes e brilhantes que ele conhecera. Talvez tenha sido o primeiro elo para considerar a necessidade de melhores condições para as monjas.
          A pedido de Aoyama Shundo Roshi, ele se tornou o diretor superior responsável pelos ensinamentos e treinamento do mosteiro-feminino de Nagoya. Yogo Roshi foi o último monge a ocupar essa posição, pois agora quem acumula esse cargo é a própria Abadessa.

YOGO ROSHI – UM EXEMPLO

          Yogo Roshi viveu uma época de grandes mudanças e soube se transformar com elas. Ele foi eleito professor dos professores da escola Soto Zen, cargo que ocupou por muitos anos. Era respeitado pelos seus estudos, conhecimentos do Dharma, do Shoboguenzo, do Denkoroko, Shoyoroku, etc. Era respeitado por sua prática monástica que o levou de cargos de direção a Abade Superior do Mosteiro Saijo-ji, posição que manteve até sua morte, e Vice-Abade Superior do mosteiro-sede de Soji-ji. Yogo Roshi deixou muitas caligrafias, escritos, tapes, vídeos e livros. Discípulos corretamente transmitidos somam-se vinte (eu sou a décima sexta nessa irmandade) e centenas de milhares de pessoas a quem transmitiu os preceitos budistas para leigos. Incansável, nunca recusou um visitante, nem se escusava das inúmeras celebrações de cerimônias para as quais era constantemente solicitado.
          Certa vez, fui passar oito meses num mosteiro em Obama, chamado Hosshinji. Quando cheguei, o monge cozinheiro, que também era o monge-recepcionista, me questionou:
          – Qual o Dharma de Yogo Roshi?
          – Nyo Ze. Kaku no gotoku. As coisas são como são. O universo é como é.
          Meu interlocutor sorriu satisfeito.

O ÚLTIMO ENCONTRO

          Em outubro de 1996 pude encontrá-lo pela última vez. Eu fora ao Japão representando a Comunidade Budista Soto Zenshu da América do Sul, Templo Busshinji de São Paulo, para a cerimônia de posse do novo abade superior do mosteiro-sede de Soji-ji, em Tsurumi, Yokohama. Yogo Roshi fora nomeado vice-abade deste mesmo mosteiro de Soji-ji em princípios de 1996. Ele também deveria estar presente nesta cerimônia, mas muito enfraquecido pela doença não poderia comparecer. Fui visitá-lo assim que pude. Estava em seus aposentos mais internos do Mosteiro Saijoji, que fica nas montanhas de Daiyuzan, perto da cidade de Odawara, em Kanagawa-ken. O caminho para se chegar lá é belíssimo. Montanha de cedros enormes, antigos, subida em curvas silenciosas, nos fazendo lembrar das antigas histórias da fundação do mosteiro há mais de 600 anos.
          Yogo Roshi me esperava. A monja Kogai-san, sua assistente e minha irmã no Dharma, me acompanhou até seu quarto. Ele repousava enquanto uma senhora massageava suas costas. Ao me ver sentou-se rapidamente na cama , olhos grandes, claros, brilhantes, vivos, abertos. Contei sobre o Brasil, o templo aqui de São Paulo que tenho dirigido desde outubro de 1995, os nossos progressos com um número crescente de membros, tanto para serviços memoriais como para o zazen. Da satisfação de muitos membros da Colônia Japonesa por terem alguém que fale Português e possa transmitir às novas gerações os ensinamentos de Buda e do primeiro grupo de pessoas que participaram por dez meses de um curso intensivo, e que receberiam em breve os Preceitos Budistas para leigos. Os primeiros netos brasileiros de Yogo Roshi. Ao falar com ele sentia o coração em grande paz. Aquela serenidade que a presença de meu mestre sempre me transmitiu. A transitoriedade presente de seu corpo, agora tão magro, debilitado e simultaneamente o intenso brilho de seus olhos , eternamente gravados em todos que o conheceram.
          Durante nosso último encontro Yogo Roshi sentia muitas dores, foi o que me disseram. Seu rosto não o aparentava e ele não reclamou nem uma só vez. Várias pessoas o cercavam, entre elas, sua filha. Notei que a monja Kogai-san estava tensa. Uma senhora massageava as costas dele e Kogai-san sugeriu que eu lhe massageasse os pés, sempre tão frios. Eram pés muito brancos, dedos bem formados, sem nenhuma calosidade. Yogo Roshi disse:
          – Suas mãos são quentes, Coen-osho. (Osho é título para monge/monja)
          E segurando minhas mãos, deitou-se de lado e adormeceu. Todos saíram da sala e nos deixaram a sós. Eu o olhei fixamente e poderia dizer que brilhava. Segurei sua mão com tranqüilidade, sem sentir pena, nem mesmo tristeza. Havia algo maior do que tudo isso. Dentro de mim fui me comprometendo mais do que nunca , com grande determinação, a transmitir no Brasil e aonde fosse necessário e apropriado, o Dharma-Budista, fazendo juz a ser uma de suas discípulas, continuando a transmissão inquebrantável de Buda a Buda.
          Depois de algum tempo as pessoas voltaram ao quarto. Ele ainda estava adormecido segurando minha mão. Kogai-san me puxou para que eu fosse almoçar. Ele acordou com nossas mãos se separando. Sentou-se na cama e almoçou conversando conosco e dizendo que o tofu com o agariquitsu, que eu levara do Brasil, estava muito bom.
          Beijei sua mão antes de sair. Da porta nos fizemos gasho mutuamente. O Verdadeiro Dharmacaya não aparece nem desaparece…

A GRANDE LIÇÃO

          Quando expliquei a Kogai-san ao telefone, que não chegaria a tempo para a primeira cerimonia do enterro, anterior à cremação, ela me disse :
          ” Nosso Mestre estará sempre com você, se você assim o quiser. Se tiver fé”. Zenguetsu Suigan Daiosho assim tenho fé. Assim é, foi e será. Em profunda gratidão por sua vida de prática do Verdadeiro Caminho, velho Buda Suigan, descanse em paz.

Shinguetsu Coen


  1. Extraído do site www.nextis.com


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