As ‘bengalas’

“NA PRÁTICA DA MEDITAÇÃO, ENQUANTO O CORAÇÃO ESTIVER APEGADO EM PERMANECER NO VAZIO, AINDA ESTARÁ APOIADO NA EXISTÊNCIA. PORTANTO, ISSO NÃO PODE SER CONSIDERADO COMO A AUSÊNCIA DO APOIO” – Zhuang Zi

Ausência do Apoio é o estado a que se chega dentro da meditação, quando deixam de existir apegos, até mesmo ao Vazio.
O ser humano está sempre se apoiando em ‘bengalas’. Pode ser um trabalho, um costume, um estudo, a família, um alimento saboroso, qualquer manifestação concreta ou abstrata que preencha sua ansiedade. Mas na meditação, ele exercita o desapego de corpo e mente para entrar diretamente no ar que está respirando. O processo evolui, ele abandona todas as ‘bengalas’ que conhece e entra em fixação (concentração). Passa, então, a se apoiar apenas numa ‘bengala única’, o Vazio.
No início da prática, as ‘bengalas’ são mais densas, como o ar que a pessoa respira e onde se concentra para meditar. Com a continuidade, as ‘bengalas’ tor¬nam-se mais sutis, como o sopro de nível mais elevado. Finalmente, chega-se à fixação (concentração), uma dimensão onde não existe mais corpo, respiração ou sopro sutil, onde se apoiar. Nesse estado de êxtase, o praticante estará flutuando e apoian¬do-se no Vazio, como uma nave que viaja pelo espaço e se apóia no nada, mas em ‘nada’ a nave está se apoiando. Ela não se apóia na Terra, na Lua ou em Marte porque flutua no espaço; então, o espaço é seu apoio. O estágio seguinte, para um taoísta, é deixar de se apoiar nesse ‘nada’ e se integrar ao Vazio.
Algumas escolas orientais de meditação entendem que chegar ao Vazio é alcançar o Sagrado. Mas, para o Taoísmo, o Vazio ainda é uma ‘bengala’ que precisa ser abandonada, por mais sutil que ela seja, a ponto de ser confundi¬da com a ausência de apoio. Apoiar-se significa apegar-se, mesmo que esse apoio seja no Vazio. Quem se apóia em alguma existência não caminha com naturalidade, não flui no destino cósmico porque permanece preso ao mundo da vida e da morte. Quem troca todas as bengalas pelo apoio no Vazio alcan¬ça um estágio extremamente avançado, comparado ao grau que a maioria dos praticantes, incluindo os mestres, alcança. Mas, para completar sua caminhada, ainda precisará desapegar-se do Vazio, unir-se ao Vazio e transformar-se, ele mesmo, no Vazio.
O risco de apegar-se ao Vazio ocorre devido à profunda paz, equilíbrio e desapego que se experimentam nesse estado. Na meditação, durante a fixação, é possível surgir, diante do praticante, algum tipo de manifestação, como pensamentos, imagens, mandalas, mensagens ou símbolos. Nesse momento, o apego ao Vazio se expressa pela reação do praticante, quando diz mentalmente para as sensações: “Não quero vocês, que são manifestações do mundo, formas de pensamentos e arquétipos. Eu quero permanecer no Vazio”. Não deixar as manifestações irem embora é apegar-se a elas, mas não deixar as manifestações chegarem é apego ao Vazio. Nas duas situações, a pessoa procura apoiar-se em alguma existência, ainda que isso seja a sensação de paz produzida pelo Vazio. Dessa maneira, ela não conseguirá passar para o estágio seguinte, na meditação.
Este é o sentido da frase: o praticante, mesmo desapegado de todas as manifestações mundanas, enquanto permanecer apegado ao Vazio dentro da meditação, não terá alcançado a ausência de apoio. Todo apoio limita, seja ele concreto como um corpo físico, ou abstrato, como a imagem simbólica do Vazio. Os apoios limitam porque se revelam através de manifestações, limitadas pelo tempo e espaço em que atuam. Diante da característica de impermanência, que obriga a pessoa a mudar constantemente de apoio, o objetivo do trabalho espiritual de um taoísta é diminuir paulatinamente esta necessidade sem fim de estar sempre buscando novos apoios.
Entretanto, ao contrário do que possa transparecer, o Taoísmo não• critica a existência de ‘bengalas’ porque os apoios ajudam as pessoas a caminharem.

Até chegar à ausência do apoio, é inevitável o uso de ‘bengalas’. Por isso, de nada adianta idealizar planos ou estabelecer metas para se libertar das ‘bengalas’ porque, independentemente da sua vontade, o praticante continuará procurando algo em que se apoiar. O melhor, então, é iniciar a tarefa trocando, primeiro, as ‘bengalas’ mais nocivas, como os vícios de maneira geral, por ‘bengalas’ menos nocivas, como pequenos hábitos que não gerem malefícios. E passar depois para ‘bengalas’ cada vez mais saudáveis, como as das práticas religiosas, até chegar à ausência do apoio.
As ‘bengalas’ encontram-se nos níveis físico, energético e mental. A própria meditação, recitação de mantras e orações, entoação de cantos sagrados e outras devoções podem ser adotadas como ‘bengalas’ por pessoas que se apoiam na espiritualidade. Para iniciar o Caminho, é preciso usar algum tipo de técnica que puxe o praticante, até chegar ao estado da fixação/concentração, onde todas as atividades são esquecidas. As práticas devocionais suprem essa necessidade, portanto não deixam de ser ‘bengalas’, ainda que tenham o caráter espiritual de aproximar as divindades que dão sustentação ao Caminho. O mesmo acontece quando o praticante se apega ao Vazio, que, para ele, passa a ser apenas uma ‘bengala’. Os mestres taoístas dizem: “Primeiro, você precisa se libertar das coisas do mundo; depois, precisa se libertar do sagrado, também”. Quem não consegue se libertar do sagrado limita-se às formas em que o sagrado se manifesta, portanto apega-se às manifestações e para chegar à ausência do apoio, precisará, ainda, libertar-se desse apego.
Mas existe uma distinção entre quem se liberta de quase todos os apoios, inclusive o apoio no sagrado, e alguns estereótipos orientais, como o do supos¬to ‘mestre’ que, ao se iluminar, levanta da meditação, pega seu cajado e quebra todas as imagens sagradas do Templo. Para o Taoísmo, esse não é o verdadeiro despertar porque repúdio é um apego pelo contrário. Se o ‘mestre’ acabou de se iluminar e desapegou-se do sagrado, por que deveria repudiá-Io? A religião foi a ‘bengala’ que o ajudou a caminhar e no dia em que ele se liberta do apoio, não precisa descartá-Io, com um gesto teatral. Fazer isso é reverter a lógica e passar a se apoiar na ‘renúncia da bengala’. Então, a renúncia passa a ser sua nova ‘bengala’. Um mestre desapegado não necessita quebrar seu Templo, nem se apegar a ele. Se o Templo já lhe foi útil no passado e agora é útil para outros caminhantes, não há razão para o mestre repudiá-lo. É possível encontrar, até mesmo dentro do Taoísmo, pessoas excêntricas, que fazem este tipo de show, mas esse comportamento não é bem visto pelos mestres tradicionais.
[…]
– A Fundação correta da autêntica fixação/concentração é a completa ausência de apoio. Apoiar-se na existência é apoiar-se na manifestação, tenha ela forma ou não. Assim, quem se apóia na existência estará sempre trocando de apoios porque as manifestações são impermanentes. Isso cria as constantes expectativas e decepções que se renovam incansavelmente no interior do praticante, o que traz desequilíbrio para o seu metabolismo. Agir assim é contrariar a razão da sua prática: sair incansavelmente em busca de apoios na existência, em lugar de procurar desvencilhar-se de suas ‘bengalas’. Esta contradição traz desgastes e desequilíbrios para seu coração, o que poderá atrair doenças para corpo e mente. Afastar-se da agitação e trabalhar para se libertar dos apoios na existência são, portanto, as únicas maneiras de construir o fundamento correto para o alcance da autêntica fixação/concentração, através da prática da meditação.

Do livro: MEDITAÇÃO TAOISTA – Wu Jyh Cherng

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