A travessia interior

Texto de John Tarrant , extraído do livro”A luz dentro da escuridão”

Que graça!
Através da tela de papel rasgada,
a Via láctea.

ISSA

Quando éramos crianças, os nossos dias eram cheios de assombro — o mundo revelava a si mesmo e a nós, ao mesmo tempo. Em tal tarde eterna, a relva sussurra, a bola voa para o azul e a menina canta a cantiga de pular corda:

Cinderela, vestida de amarelo,
subiu a escada para beijar um amigo;
enganou-se e a uma cobra beijou.
De quantos médicos precisou?

imaginando o momento em que será picada por uma vida que ainda está sendo sonhada e que ainda não chegou — embora seja evidente para o seu pai, que a observa, que para ela a vida já está ali, inteiramente completa.

Por baixo ou dentro da vida que nós levamos todos os dias, existe outra vida. Essa vida invisível corre corno um rio sob a cidade, sob o trabalho, sob a família, sob a ambição, sob os nossos prazeres e as nossas aflições. “Existe outro mundo”, diz Paul Éluard, “e está dentro deste”.

No corre-corre, na pressa de completar os estudos, de fazer carreira, de constituir família, de obter êxito material, de precipitar-se, de fazer, de sobreviver, essa vida interior é freqüentemente subjugada ou recoberta. A vida que na criança é algo vigoroso e total avança mais para dentro do adulto, onde ela em geral dormita até ser suscitada. Mas essa vida por baixo ou dentro da nossa vida comum é irreprimível e irrefreável: ela brota cheia de encanto como junquilhos surgindo da neve caída. eleva-se em súplica como mãos saindo de grades em uma calçada na Índia, e irrompe do nosso peito como a fonte de choque que é a nossa reação a más notícias. Ela manifesta-se em sonhos, devaneios, lembranças da infância, no que consideramos belo e no que consideramos feio, como uma gárgula, e manifesta-se também quando nos apaixonamos, quando adoecemos, quando estamos perdidos em trilhas escuras. Toca os nossos prazeres com melancolia e, intermitentemente, penetra o nosso desespero com alegria.

Sempre gostei de pensar nos velhos navegadores — os pequenos grupos dirigindo-se a um novo continente, por pontes de terra construídas pela era glacial; os mestres canoeiros polinésios, velejando pela vastidão com uma casca de coco parcialmente cheia de água, com orifícios de observação perfurados perto da borda; James Cook, que por seus próprios méritos chegou ao comando do navio Endeavour, conduzindo Joseph Banks para fazer a pesquisa botânica nessas mesmas ilhas do Pacífico; e os meus antepassados, transportados em grilhões para a desolação de Botany Bay.

Quer as nossas viagens possam posteriormente estender-se às estrelas, e aquelas travessias árduas e corajosas possam repetir-se sob uma nova forma, quer não, a nossa fronteira agora é a vida interior. Neste livro, unem-se duas grandes linhagens de exploração interna. A primeira é a tradição asiática, com seu longo devotamento às artes da atenção e a uma compreensão espiritual baseada na indagação e experiência, em vez do dogma. A segunda é o método ocidental de trabalho com a alma, com a exploração da vida do sentimento, pensamento, das histórias e lendas que a alma aprecia contar, histórias em que traçamos nosso destino em meio à dor e à alegria, para descobrir o que acontece em seguida.

Tanto a travessia interior quanto a exterior têm um aspecto heróico. As travessias exteriores estabelecem novas ligações, pelas quais os seres humanos alcançam muitos fins — aventura, comércio, conquista e amor. A travessia interna também estabelece novas ligações: ela mergulha-nos em um espaço iniciador, como outrora os rapazes eram lançados no castelo de proa de um veleiro; em seguida, enquanto o mundo que conhecemos desaparece, somos sacudidos e rodopiados de um lado para outro, até o navio mais uma vez ancorar em um porto. Desembarcamos em uma terra que não é externamente nova, mas que os nossos olhos, estando mudados, vêem no seu primitivo frescor. A travessia íntima vence a solidão ao oferecer-nos um lugar no universo, em que podemos nos conhecer em meio a todas as mudanças.

Se respeitamos a vida interior, verificamos que também é possível inverter todo o relacionamento entre interior e exterior, abaixo e acima, e fazer com que a vida interior esteja acima de tudo, como um jardim de que se cuida por amor ao próprio cuidado. Cultivar, conhecer, amar essa vasta interioridade é a única maneira de ser livre em quaisquer circunstâncias, a única maneira de reparar a penúria de anos desperdiçados. Exploramos o domínio íntimo porque é a isso que nós, os seres humanos, somos destinados — consciência, a maravilhosa travessia.

Grande parte da viagem diz respeito às maneiras como lidamos com a nossa atenção, porque a atenção nos concede mais vida. Ela expande o registro, levando-nos a observar mais o vigor e o consolo das nossas vidas escuras, de modo que possamos existir no nosso verdadeiro âmbito, e não andar de um lado para outro perdendo coisas, como se conhecêssemos os países somente por seus aeroportos e hotéis. A atenção é a forma mais básica de amor: por seu intermédio, abençoamos e somos abençoados. Quando ficamos atentos à vida íntima, ligamo-nos também ao que nos circunda a máquina de café expresso assobiando, a corda de pular com seus dois punhos vermelhos alinhados e a corda girando preguiçosamente, os pontos verdes nas anêmonas pendentes sobre o chão gelado. O que era matéria

e meramente inanimado toma-se família e nós, os filhos, voltando, voltando, voltando para casa. Toda necessidade — de amor, de sermos compreendidos pelo que somos, de um carro novo e vermelho — é necessidade de encontrar essa misteriosa profundidade nas coisas, e a ela ser levado. E é essa ligação íntima que resolve o problema de quem somos e nos deixa à vontade no mundo. Pois a vida interior adoça a coisa mais humilde. Ela abre-nos a magia na vida comum.


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