A Essência, a Natureza e as Características da Mente


A Essência, a Natureza e as Características da Mente

Dagpo Tashi Wangyal

A essência da mente

Apesar da natureza da mente ter geralmente sido designada por estes três termos – nominalmente, essência, natureza e características -, elas em realidade não são diferentes da essência da mente. O Amnayamanjari afirma:

A vacuidade constitui a natureza intrínseca de todas as coisas [mentais e materiais]. A essência dessa vacuidade não é diferente do que foi designado como a própria natureza da mente e seu modo de se manifestar. Entretanto, do ponto de vista do [aspecto mental], ela pode ser dividida em três: essência, natureza e características, que são identificadas de acordo [com seus aspectos].

Quanto a isto o venerado Gampopa escreveu:

A essência da mente consiste de três aspectos: essência, natureza e características. Sua essência consiste do estado de claridade e não-concepção, sua natureza é vazia de qualquer modo substantivo de surgimento, permanência e cessação, e suas características referem-se às aparências dualistas da existência cíclica [samsara] e da paz permanente [nirvana].

Novamente ele comenta:

A mente consiste de natureza, essência e características. O termo designado “natureza da mente” significa que em sua natureza intrínseca ela é pura e não-criada, e assim abarca todos os reinos do samsara e do nirvana. O termo “essência” significa o estado desperto mais interno, que é desapegado do surgimento e da cessação. O termo “características” significa as diversas aparências de imagens surgidas das marcas psíquicas condicionadas.

Je P’hagmodrupa conclui:

Mahamudra significa [estado desperto] não-dual.
Seus três aspectos são a essência, a natureza e as características.
“Essência” significa a vacuidade do surgimento, cessação ou concepção.
“Natureza” significa lucidez não-obstruída.
“Características” significa as diversas aparências. Nos níveis do samsara e do nirvana.

A essência e a natureza da mente são afirmadas como sendo idênticas em realidade. O aspecto da mente é idêntico com suas características. Isto é afirmado por Je Rangjungpa [Karmapa III]:

A essência [da mente] é vazia, sua própria natureza é lúcida
E seu aspecto consiste de aparências diversas e incessantes.

A essência da mente é, desde o início, vazia de qualquer surgimento, permanência ou cessação substantivos. Não é maculada por conceitos dualistas dos agregados psicofísicos da vida, pelos elementos e pelas faculdades sensoriais. Ela tem a mesma natureza daqueles fenômenos que são vazios de qualquer essência própria mas são uma igualdade que tudo abarca.

Isto é enfatizado no Guhyasamaja:

É vazia de todas as substâncias
E desapegada das discriminações dualistas
Tais como agregados, elementos e faculdades sensoriais.
É sem eu e igual.
Esta mente é não-nascida desde o início
Porque é vazia por sua natureza inata.

Referindo-se à essência da mente, o Bodhichittavivarana explica:

As mentes iluminadas [bodhi] dos buddhas
Não são nubladas por qualquer visão de dualidades –
O eu e os agregados da vida –
Porque as características destas mentes
São vazias em todos os tempos.

Como afirmado anteriormente, quando olhamos e examinamos completamente a natureza intrínseca da mente, não encontramos qualquer base substantiva. Ao invés disso, experienciamos que o processo analítico está se aquietando ou se apagando. Este estado é descrito como sendo a realidade última, a vacuidade que tudo abarca, que é intrínseca em todas as coisas e em todos os tempos. O Satyadvaya afirma:

A aparente realidade aparece como tal
Mas é [vista como sendo] vazia de qualquer substância
Quando sujeita à investigação lógica completa.
Esta descoberta [da vacuidade] representa a verdade absoluta
Que é inerente em todas as coisas e em todos os tempos.

Essa vacuidade intrínseca da mente é na verdade a vacuidade de todas as coisas, que abarca todas as aparências e existências do samsara e do nirvana. Aryadeva comenta:

Uma substância representa a essência de todas as outras substâncias;
Todas as outras substâncias representam a essência de uma substância.

Aryadeva também diz em seu Chatuhshataka:

A vacuidade de uma coisa
Representa a vacuidade de todas as coisas.

O Satyadvaya declara:

Não há divisão qualquer na vacuidade,
Nem mesmo no menor grau.

A natureza da mente

O Ashtasahasrika Prajnaparamita Sutra ensina:

A natureza da mente consiste da claridade luminosa,
Que é a natureza intrínseca do Tathagata.

Há muitas passagens como esta que descrevem a natureza da mente como sendo uma claridade luminosa. O termo “claridade luminosa” significa que é pura, não-maculada por quaisquer pensamentos discriminadores, tais como surgimento, permanência ou cessação. Não-maculada [por quaisquer máculas mentais] e desapegada das partículas dos agregados, ela permanece imutável por todo o tempo, como o espaço, ou mesmo inseparável da natureza do espaço.

O Upaparipriccha explica:

A mente em sua natureza é pura e luminosa.
É não-substantiva, não-maculada e desapegada de quaisquer partículas subatômicas.

O Uttaratantra diz:

Esta claridade luminosa, sendo a natureza da mente,
É imutável, como o espaço.

O Jnanalokalamkara Sutra elabora:

[Buddha:] Ó Manjushri, a iluminação por sua natureza inata consiste de claridade luminosa, por que a natureza intrínseca da mente é luminosamente clara. Por que ela é assim designada? A natureza intrínseca da mente é desapegada de qualquer mácula interior e é igual, ou possui, a natureza do espaço, enquanto abarca o espaço através de suas características idênticas.Por todas estas razões ela é designada como sendo claridade luminosa.

O Vairochanabhisambodhi observa:

A natureza da mente é pura, porém não pode ser concebida dualistamente como sendo externa, interna ou intermediária.

E novamente diz:

O que quer que seja a natureza do espaço é a natureza da mente. O que quer que seja a natureza da mente é a mente da iluminação. Por esta razão a mente, a expansão do espaço, e a mente da iluminação são não-duais e inseparáveis.

O Guhyasamaja explica:

Já que todas as coisas em sua natureza são luminosamente claras,
Elas são puras desde o início, como o espaço.

Sendo assim, alguns meditadores não-sábios, quando experienciam qualquer tipo de claridade interior, consideram-na como sendo a claridade luminosa da mente e até mesmo a assumem como sendo radiante como a luz solar. Este é um erro muito sério pois, como provado por citações anteriores, o termo “claridade luminosa” tem sido usado para simplesmente significar que a mente é de pureza intrínseca, que não é maculada pelos pensamentos discriminadores ou aflições emocionais. Se a natureza da mente se constituísse de qualquer coisa radiante e colorida, a mente teria de ser uma luz e teria uma cor. Então a doutrina [buddhista] que afirma a natureza da mente como sendo pura, isto é, desapegada de qualquer essência própria, estaria errada.

Bem, então, quando certas experiências nas quais yogis percebem o próprio estado desperto com a própria claridade como se fosse uma manifestação psíquica, uma luz interior que até mesmo ultrapassa as aparências, ou uma cor ou luz normais? Naropa esclarece isto no Drishtisamkshepta:

Todas as coisas da aparência e da existência
Não existem separadas do próprio estado desperto
Pois as coisas aparecem e se cristalizam
Assim como, por exemplo, a mente experiencia
O seu próprio estado desperto.

E novamente ele diz:

Este próprio estado desperto é desapegado da discriminação;
Ele se manifesta enquanto sendo intrinsecamente vazio;
Sendo vazio ele se manifesta.
A aparência e a vacuidade são, portanto, inseparáveis.
Elas são como o reflexo da lua na água.

Tal [experiência dos místicos] é simplesmente o despontar interior da lucidez e estado desperto da mente. Apesar desta experiência interior ser correntemente designada como estado desperto para o objeto prático da contemplação, ela está ainda no nível da dualidade e como tal não pode ser um estado desperto real porque não é a vacuidade suprema de todas as formas, nem o poder que tudo permeia. O grande comentário sobre o Kalachakra [o Vimalaprabha] explica:

O que, então, é o estado desperto? A resposta é que o estado desperto, assim designado, é o estado desperto mais interno de um tipo não-discriminativo. É a vacuidade suprema de todas as formas. Além de ser um estado desperto imutável e extasiante, ele transcende todos os conceitos. Este estado desperto é o mestre da causa e efeito. A causa e efeito estão nele como a luz e calor do fogo.

O Manjushrinama Sangiti descreve o estado desperto:

É o estado desperto que tudo conhece, completo e absoluto.
Como tal ele transcende o reino da consciência.

E novamente diz:

Ele compreende tudo, a si mesmo e os outros.

Por esta razão Je Drikhungpa diz:

O que é conhecido como o grande selo é este estado desperto mais interior.

Todas as formas de estado desperto mostradas aqui como objetos de meditação deveriam ser entendidos à luz destas passagens. Mesmo assim, a percepção interior que os místicos experienciam não pode ser construída para ser o estado desperto discernidor e a lucidez intrínseca da mente. O Samdhinirmochana explica:

O estado desperto discernidor está no estado desperto não-dual.

O Guhyachintya Tantra afirma:

Abandonando o eternalismo e o niilismo,
O surgimento e a cessação, e outras visões extremas,
A mente atinge o estado desperto transcendendor
Que desde o início tem sido desapegado de quaisquer distorções dualistas.
O significado disto está realmente além de uma dimensão conceitual.

Assim o significado de estar desperto [ou de ter insight em] cada aspecto da realidade é afirmado como sendo não-dual e além de uma dimensão conceitual. O significado da lucidez intrínseca da mente foi explicado anteriormente.

As características da mente

A pureza intrínseca da mente foi nublada por uma mácula transitória. A confusão resultante distorceu a consciência de seu estado natural. Através de sua interação com a discriminação fundamental emergiram os seres sencientes das seis esferas existenciais, com sua [capacidade de experienciar] prazer e miséria transientes. Quando as máculas são eliminadas, a natureza intrínseca da mente é realizada e o processo interativo da auto-realização é completado, atinge-se a iluminação da realidade absoluta, para que suas manifestações supremamente ilusórias apareçam para o benefício dos seres sencientes. O Drishtisamkshepta comenta:

Alas, os seis níveis de seres sencientes são
Emanações das mentes deludidas.
Através do reino infinito do espaço
Eles vagam na miséria e delusão inimagináveis.

E novamente este texto aponta:

Lo! Das mentes imaculadas emergem
Emanações em formas sublimes.
Aparecendo como os reinos puros
E como as assembléias iluminadas em suas diversas formas,
Estas emanações maravilhosas
Permeiam o infinito espaço cósmico!

Saraha diz:

A mente sozinha é a semente de todas as realidades
Da qual se desdobram o samsara e o nirvana.

O Samputa explica:

A mente maculada pela paixão e pelos outros impulsos descontrolados
É na verdade a mente da existência cíclica.
Descobrir a lucidez intrínseca da mente é na verdade a liberação.
Não-maculada pela luxúria e impurezas emocionais,
Não-nublada por quaisquer percepções dualistas,
Esta mente superior é na verdade o nirvana supremo!

Se a mente em seu estado natural é pura desde o início, ela não pode eventualmente ser maculada por qualquer impureza transitória. Se isto fosse possível, a mente, após ser purificada da impureza, poderia novamente ser maculada. A impureza da mente tem sido designada como transitória já que pode ser eliminada. Não é algo que subitamente emergiu do nada. De fato, a impureza da mente tem coexistido com a mente desde um tempo sem início. O Uttaratantra explica-a através de uma analogia:

A pureza intrínseca [bodhi] é como o pólen no lótus comum,
Como grãos no debulho e ouro na sujeira,
Como um tesouro sob o solo e sementes nas vagens,
Como uma imagem do Buddha enrolada em trapos,
Como um príncipe no ventre de uma mulher comum,
Como um monte de ouro abaixo da terra.
Assim, a natureza da iluminação permanece escondida em todos os seres sencientes
Que estão dominados pela mácula transitória.

Quanto mais a mente permanece nublada por uma mácula transitória, mesmo que o seu estado intrínseco seja puro, as qualidades da iluminação não se cristalizarão. Elas, entretanto, emergirão espontaneamente com a eliminação da mácula da mente. O Hevajra Tantra afirma isto:

Todos os seres sencientes são buddhas,
Eles apenas estão dominados pela mácula transitória.
Eles se tornam buddhas no momento em que eliminam sua mácula.

Nagarjuna expõe:

Apesar de a preciosa vaidurya ser sempre translúcida,
Se deixada não cortada, ela não brilha.
Assim é a realidade que tudo abarca [dharmadhatu];
Apesar de intrinsecamente imaculada, ela é nublada pela mácula.
Assim permanece latente no samsara
Mas se cristaliza ao se atingir o nirvana.

As características [da mente] são assim descritas como essas que se manifestam nas diversas formas do samsara e do nirvana.

Os místicos do tempo presente experienciam até mesmo as manifestações da mente como sendo uma diversidade indeterminável e não-obstruída. Devido à força de suas diversas tendências não-nascidas, eles percebem as manifestações interiores como realidades externas. Elas aparecem exatamente como designadas ou moduladas pela interação do karma e das tendências não-nascidas dos meditadores. Mesmo que a natureza intrínseca [da mente] não mude, sua manifestação toma muitas formas diversas, como um tecido de lã que é transformado pelo uso de tinturas. O Lankavatara Sutra elucida:

A mente em sua natureza permanece pura e lúcida. Ainda assim ela se manifesta exatamente como o intelecto queira que seja, assim como um tecido de lã branca é transformado pelo uso de tinturas.

A fim de determinar o estado real da mente e o como ele se manifesta em diversas formas, normalmente se estudaria os textos explicativos sobre as oito formas de consciência, incluindo a consciência-fonte e as categorias mentais. Entretanto, dei aqui apenas as informações relevantes.


(Namgyal, Takpo Tashi. Mahamudra: the quintessence of mind and meditation.

Traduzido e anotado por Lobsang P. Lhalungpa, prefácio de Chögyam Trungpa. Delhi: Motilal Banarsidass, 1993. Pág. 213-220.)