Consciência

Vijnana

O quinto e último skandha é a consciência, vijnana em sânscrito. Consciência é aquilo que sabe ou experimenta. Não implica uma consciência mais elevada ou desperta; que é expressa pela palavra jnana. O prefixo vi em vijnana indica divisão e separação: vijnana é consciência dividida, dualista. Não é mais total, mas limitada e fragmentada; é separada de seu original, primordial de conhecimento não-dual e se tornou a consciência comum da vida diária. Em alguns casos, vi pode indicar até mesmo negação da palavra em que funciona como prefixo. Metaforicamente, podemos dizer de verdade que a consciência comum é inconsciência, comparada com o genuíno despertar de jnana. Sempre que falemos de consciência em psicologia budista, ela se refere à todas as funções da mente não iluminada, incluindo o que a Psicologia ocidental chama de subconsciente ou inconsciente. Dizemos que estamos inconscientes durante o sono ou em coma; mas a mente samsárica subjacente ainda está ativa nesses estados, portanto ainda é categorizada como vijnana.

A consciência possui oito aspectos. Os seis primeiros operam através dos seis sentidos. Todos os skandhas são interdependentes, e a consciência os permeia a todos; nenhum deles poderia funcionar sem a presença da consciência, portanto ela já é inerente mesmo no primeiro, o skandha da forma. Forma é a simples existência dos sentidos e seus objetos; a consciência os traz à vida, por assim dizer. De sua parte, a consciência se apóia em todos os outros skandhas para poder operar. Não é uma entidade fixa nem algum estado abstrato de pura consciência, mas um processo impermanente, mutável, dinâmico. Os seis primeiros aspectos deste skandha são a consciência da visão, a consciência da audição, a consciência do olfato, a consciência do paladar, a consciência do tato e a consciência da mente. Esta última é equivalente à mente racional. Ela coordena a informação dos outros senti¬dos e experimenta pensamentos e sentimentos. Tudo que chega através dos sentidos vindo de fora e todas as idéias e emoções que surgem de dentro chegam a nós como imagens mentais e servem como objetos da consciência mental. Esses seis primeiros tipos de consciência estão no nível da vida em vigília.

O sétimo aspecto é chamado de a consciência mental aflita ou impura, e é responsável pelo nosso sentido de ser. Trungpa Rinpoche a chamava de “a mente nebulosa”, porque está nublada pela ignorância, a aflição emocional fundamental. Aflição, ou klesha em sânscrito, quer dizer literalmente “uma dor”, alguma coisa que nos dói ou atormenta. É a dor de não conhecer nosso ser verdadeiro, indestrutível e desperto. Essa ignorância permeia a consciência dos seis sentidos, de tal forma que todas as nossas percepções são imediatamente influenciadas pela confusão. Essa mente nublada é o nível dos sonhos, das memórias, das imagens subconscientes e da confusa corrente subterrânea dos pensamentos. Age também como ligação entre as primeiras seis consciências e a oitava, que é a consciência original, ou “o armazém dos pontos de referência” (Alayavijnana), como Trungpa Rinpoche a chamava. A sétima consciência (Manas) olha em ambas as direções. Ela manda mensagens dos sentidos e da faculdade mental para serem mantidos nos bancos de memória do armazém, e as traz de volta para a superfície quando quer que sejam necessárias na vida em vigília. Fornece acesso à vasta biblioteca de informação que cada um de nós possui e que está em constante processamento e utilização enquanto seguimos em nossas vidas diárias.

A oitava consciência é a base das outras sete. Ela guarda os registros deixados pelas experiências passadas, que em retorno tornam-se as sementes das experiências futuras. Mas é difusa e indiferenciada; nem mesmo é dependente deste corpo e desta vida em particular. É potencialmente um sentido de ser, mas não um indivíduo plenamente formado. Carrega a continuidade dos efeitos kármicos de uma vida para a próxima, e cria um corpo mental durante o bardo entre a morte e o renascimento. De algumas formas, corresponde ao nosso conceito de mente inconsciente, mas é, entretanto chamada de consciência porque está sempre presente e potencialmente consciente, mesmo em coma ou em sono profundo. Onde quer que haja mente, haverá consciência, os dois termos são usados de forma intercambiável. Mente ou consciência está muito intimamente ligada com o prana, a força da vida; é equivalente à própria vida, porque ainda estamos vivos, enquanto o prana e a mente ainda não deixaram o corpo, mesmo quando estamos aparentemente “inconscientes”. Através da meditação, torna-se finalmente possível penetrar nesse nível e transformar a consciência comum (vijnana) em conhecimento puro e não-dual (jnana). Podemos também olhar para os oito aspectos da consciência em ordem reversa para ver como eles dão origem ao sentido de ser. A oitava é a fonte, Contendo a semente latente do desenvolvimento do ego; é como o útero do ego. A sétima é o nascimento do ego por causa da ignorância de sua própria natureza verdadeira; aqui a semente se agita em direção à vida e se torna um broto. Finalmente, o broto cresce para ser uma planta plenamente desenvolvida com a consciência mental como seu caule, enquanto as cinco consciências dos sentidos são suas folhas e flores, brotando do caule e se comunicando com o ambiente. A planta no seu todo é permeada pelo sabor do “eu, mim, meu”. No nível básico da oitava consciência, o ego é apenas um potencial, mas do sétimo em diante está presente em toda a experiência. É difícil até mesmo imaginar a consciência sem um ego. Sentimos que sermos conscientes não implica de modo algum, automaticamente, estarmos conscientes de algo além de nós mesmos. Isso acontece por estarmos tão acostumados a pensar em termos de dualidade, com nossa consciência dividida.

Mas a consciência é exatamente igual a um show de mágicas: quando olhamos com cuidado, nada está lá e nada realmente aconteceu. Existe apenas uma peça mágica de aparências, uma dança entre um observador imaginário e um fenômeno imaginado. Outra analogia é uma bola de cristal, clara e transparente por si só, mas aparentando assumir todas as várias cores que a rodeiam.

A consciência partilha as qualidades do quinto elemento, o espaço. Como o espaço, ela é a mais sutil das cinco e permeia todas elas. É a primeira e a última, sua fonte e sua culminação. A consciência é luminosa. Em essência, ela é o Buda Vairochana, o Iluminador. Ele incorpora o conhecimento da totalidade, a dimensão toda abrangente da Verdade, a esfera de todos os fe¬nômenos como eles realmente são. A consciência se expande ao infinito, não mais autocentrada, porque a distinção entre sujeito e objeto foi transcendi¬da. Isso não é algum sentimento vagamente oceânico, mas um saber vívido, preciso e direto das coisas em sua verdadeira natureza. É a mágica genuína do ser sem ser, experimentando as características do oitavo aspecto de uma maneira completamente aberta e ilimitada.
[…]

O Sutra do Coração, a essência dos Sutras da perfeição da sabedoria, (Sutra Prajnaparamita) descreve como o bodhisattva Avalokiteshvara olhou com seu olho de sabedoria para os cinco skandhas e viu o seu vazio. Ele proclamou que: “Forma é vazio, no entanto vazio também é forma”. O mesmo é verdade sobre os outros skandhas: Sensação é vazio e vazio é sensação; Percepção é vazio e vazio é percepção; Condicionamento é vazio e vazio é condicionamento; Consciência é vazio e vazio é consciência”.

A natureza essencial dos skandhas é o vazio; eles não possuem realidade própria. Isso significa que quando meditamos no vazio, podemos nos libertar das atividades e características grosseiras dos skandhas e interromper o incansável fluir de causa e efeito que eles criam constantemente. Paramos de nos apegar à nossa idéia habitual de nós mesmos e relaxamos na amplidão e na claridade do espaço. Quando as escrituras falam dos Budas e bodhisattvas entrando em estado de samadhi e transmitindo ensinamentos, como no Sutra do Coração (Prajnaparamita), eles estão descrevendo estados de meditação que são acessíveis aos seres humanos. É possível para nós olharmos para o interior de nossa própria natureza verdadeira assim como Avalokiteshvara o fez.

O que ele viu foi vazio não apenas como uma condição negativa, mas como uma positiva. O vazio natural espontaneamente se manifesta como o, Universo, com todos os seus fenômenos maravilhosos e variados. A existência pode não ser real no sentido que temos sempre imaginado, mas é real em um sentido muito mais maravilhoso, como o jogo do despertar. Tudo no Universo está contido dentro dos cinco skandhas, e toda expressão de Iluminação está contida dentro da natureza dos cinco budas. O vazio é inseparável da luminosidade, o poder criativo da mente desperta e portanto a essência pura dos skandhas aparece como luz radiante brilhando a partir do coração dos budas.
Os skandhas por si só são neutros: não são algo de que tenhamos que nos envergonhar ou tentar suprimir. Em qualquer caso, é impossível se livrar deles. Enquanto estivermos vivos, possuímos os cinco skandhas, mas porque os possuímos temos também a natureza dos cinco Budas. É simplesmente um processo natural. Enquanto existir um corpo para receber impressões dos sentidos, haverá sensação, depois percepção e em seguida elaboração de pensamentos sobre o que foi percebido. Essas elaborações dão surgimento a um ciclo interminável de pensamentos e ações subsequentes, de tal forma que nos recriamos continuamente de momento a momento. A prática da meditação possibilita que nos tornemos desembaraçados do processo como um todo, e paremos de os identificar e nos envolver com ele. Podemos simplesmente observar o que quer que surja na mente sem nos sentirmos orgulhosos dos bons estados mentais ou deprimidos pelos maus. Na meditação, simplesmente lidamos com a energia básica dos skandhas, que é liberada para se manifestar como padrões de consciência em vez de confusão. Não precisamos temer a perda de nossos “eus” transitórios e ilusórios. Mesmo um homem ou mulher plenamente desperto ainda possui um sentido de identidade pessoal e em geral irradia uma personalidade muito poderosa.

Nossa existência física, sensações, percepções, condicionamentos e todos os conteúdos da nossa consciência constroem o retrato de quem somos. Agarramo-nos a esse retrato, temendo a morte e a não-existência. Ao nos identificarmos com os skandhas na verdade criamos uma nova vida, um novo “eu” a cada momento. Estamos constantemente formando as condições para nosso renascimento, seja ele na próxima vida ou aqui e agora. Mesmo quando os skandhas desta vida presente se separam e se dissolvem na morte, a corrente do karma continua. Ela nunca terminará enquanto nos auto-identificarmos com os skandhas, enquanto continuarmos a acreditar que realmente somos este corpo e esta mente.
Extraído do livro: VAZIO LUMINOSO de Francesca Fremantle – Ed. Nova Era –

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