Crescendo

Texto de Pema Chödrön
extraído do livro “Quando tudo se desfaz”
Publicado por GRYPHUS
Traduzido por Helenice Gouvêa

Em meu escritório, há um pergaminho feito com caligrafia japonesa e uma pintura de Bodhidharma, mestre Zen. Ele é um homem gordo, de aspecto rabugento e sobrancelhas peludas. Sua aparência lembra alguém que está tendo uma indigestão. A caligrafia diz: “Voltando-se diretamente para o seu próprio coração, você encontrará o Buda”.

Ouvir palestras sobre o dharma ou sobre os ensinamentos de Buda e praticar meditação nada mais é que estudar a si mesmo. Comendo, trabalhando, meditando, ouvindo ou falando – estudar a nós mesmos é a razão absoluta para estarmos aqui, neste mundo. Na verdade, já foi dito que estudar a si mesmo pode servir de material para todos os livros de que precisamos.

Talvez os livros e palestras sobre o dharma existam apenas para nos encorajar a compreender este ensinamento simples: toda a sabedoria sobre como causamos sofrimento a nós mesmos e sobre quanto nossa mente é prazerosa, vasta e descomplicada – esses dois aspectos, a compreensão do que poderíamos chamar de neurose e a sábia percepção da verdade incondicional e imparcial somente podem ser encontrados em nossa própria experiência.

Bodhidharma trouxe o Zen Budismo da Índia para a China. Sua impetuosidade e intransigência eram bastante conhecidas. Conta urna história que ele costumava cochilar durante a meditação e, por isso, Cortou fora suas pálpebras e as jogou no chão. Quando caíram ali, transformaram-se em um pé de chá e ele percebeu que bastava tomar desse chá para permanecer acordado! Inflexível, buscava conhecer a verdade e não queria apenas acreditar no que os outros lhe diziam. Sua grande descoberta foi perceber que, olhando diretamente para o nosso próprio coração, encontramos o Buda desperto, a experiência totalmente límpida das coisas como realmente são.

Em qualquer tipo de situação é possível descobrir o que é verdadeiro, apenas estudando a nós mesmos de todos os ângulos, em nossos cantos escuros e claros, sejam eles sombrios, horríveis, medonhos, esplêndidos, mal-assombrados, assustadores, alegres, estimulantes, tranqüilos ou irados. Podemos apenas olhar para o conjunto. Temos muito encorajamento para fazer isso e a meditação nos fornece o método. Em meu primeiro contato com o budismo, fiquei muito aliviada ao saber que ele não consistia apenas de ensinamentos, mas que incluía também uma técnica que eu poderia utilizar para explorar e testar esses ensinamentos. Desde o primeiro momento me foi dito que, assim como Bodhidharma, teria de descobrir por mim mesma o que era verdadeiro.

Entretanto, quando sentamos para meditar e olhamos honestamente para nossa mente, existe uma tendência para que esse processo se transforme em um projeto um tanto mórbido e depressivo. Podemos perder todo o senso de humor e sentar com a sombria determinação de chegar ao fundo de uma grande confusão que não cheira muito bem. Após um tempo, quando as pessoas estão praticando dessa forma, começam a sentir tanta culpa e angústia que simplesmente ficam saturadas, e podem até dizer a alguém em quem elas confiem: ‘Onde está a graça de tudo isso?’

Portanto, juntamente com a visão clara, existe outro elemento importante e esse elemento é a bondade. Sem clareza e honestidade parece que não progredimos. Ficamos sempre girando no mesmo ciclo vicioso. Mas a honestidade sem bondade nos deixa sombrios e mesquinhos, e logo começamos a ficar como se estivéssemos chupando limão. Ficamos tão aprisionados pela introspecção que perdemos qualquer contentamento ou gratidão que pudéssemos ter. A sensação de estar irritado consigo mesmo, com a vida e com as idiossincrasias de outras pessoas torna-se dominate. Por essa razão, dá-se tanta ênfase à bondade.

Às vezes, ela é expressa como sentimento, como o despertar de nosso coração. Freqüentemente, é denominada sensibilidade. Às vezes, é chamada de amizade ilimitada. Entretanto, basicamente, bondade é uma forma realista e comum de descrever o importante ingrediente que traz equilíbrio ao quadro como um todo e promove nosso contato com a alegria incondicional. Como diz Thich Nhat Hanh, mestre vietnamita: “O sofrimento não é suficiente”.

A disciplina é importante. Quando sentamos para meditar, somos estimulados a permanecer na técnica e a seguir fielmente as instruções. Entretanto, mesmo dentro da estrutura da disciplina, por que precisamos ser tão severos? Será que meditamos porque “devemos”? Porque queremos nos tornar “bons” budistas, para agradar nosso mestre ou porque não queremos ir para o inferno? A forma pela qual encaramos o que surge durante a meditação representa um treino de nossa atitude diante de tudo que surge em outras situações da vida. Portanto, o desafio está em desenvolver compaixão juntamente com uma visão clara, em treinar para estar leve e animado, em lugar de tornar-se mais infeliz e oprimido pela culpa. Se não for assim, tudo o que vamos conseguir é rebaixar a nós mesmos e a todos os demais. Nada está à altura. Nada é bom o bastante.

A honestidade, sem bondade, humor e boa vontade, pode ser simplesmente mesquinha. Do início ao fim, voltar-se para o próprio coração a fim de descobrir o que é verdadeiro não é apenas uma questão de honestidade, mas também de compaixão e respeito por aquilo que vemos.

É importante aprender a ser generoso consigo mesmo e a respeitar-se, já que, fundamentalmente, quando nos voltamos para nosso coração e começamos a perceber o que é radioso e o que é confuso, o que é doce e amargo, estamos descobrindo não apenas a nós mesmos – estamos descobrindo o universo. Quando vemos o Buda que somos, percebemos que tudo e todos são o Buda. Percebemos que tudo e todos estão despertos. Tudo é igualmente precioso, inteiro e bom. Todos são igualmente preciosos, inteiros e bons. Quando encaramos pensamentos e emoções com humor e abertura, passamos a perceber o universo da mesma maneira. Não estamos falando apenas de nossa libertação pessoal, mas de ajudar a comunidade em que vivemos, nossa família, nosso país, todo o continente, sem falar do mundo, da galáxia e de tão longe quanto quisermos ir.

Há uma interessante transição que ocorre natural e espontaneamente. Começamos a descobrir que, à medida que há coragem em nos mesmos – disposição para olhar, para voltar-se diretamente para o próprio coração – e à medida que somos generosos conosco mesmos, surge a segurança de que, na verdade, podemos esquecer de nós mesmos e abrir para o mundo.
Não abrimos nosso coração e mente às pessoas simplesmente porque elas desencadeiam em nós uma confusão com a qual não queremos lidar, pois não nos sentimos corajosos ou equilibrados o bastante. À medida que olhamos com clareza e compaixão para nós mesmos, temos confiança e coragem para olhar nos olhos dos outros.

Então, essa experiência de abertura em direção ao mundo começa, simultaneamente, a beneficiar a nos mesmos e aos demais. Quanto mais nos relacionamos com os outros, mais rapidamente descobrimos onde estamos bloqueados, em que ponto somos ásperos, temerosos e fechados. Esse processo é benéfico, mas é também doloroso. Freqüentemente, nossas reações servem de munição contra nós mesmos e essa é a única resposta que conhecemos. Não somos bondosos. Não somos honestos. Não somos corajosos e, portanto, bem que poderíamos desistir de tudo agora mesmo. No entanto, se aplicarmos suavidade e ausência de julgamento a tudo que virmos, neste exato momento, conseguiremos fazer amizade com esse constrangedor reflexo que vemos no espelho. Olhar para essa imagem transforma-se em motivação para nos tornarmos mais leves e suaves, já que sabemos que essa é a única maneira de continuar a trabalhar com os outros e ser de algum benefício para o mundo.

Esse é o começo do crescimento. Seremos sempre crianças enquanto não quisermos ser honestos e bondosos conosco mesmos. Quando simplesmente tentamos aceitar a nós mesmos, o velho fardo da auto-importância torna-se bem mais leve. Finalmente, existe espaço para uma curiosidade autêntica e percebemos que sentimos gosto pelo que nos cerca.