Ensinamentos Básicos

FlorANATTA / VERDADES / VACUIDADE / KARMA / RODA DA VIDA

O primeiro sermão de Buda Shakyamuni foi dado aos cinco ascetas que estavam no Parque da Gazelas em Sarnath, Benares. Nesse sermão, Buddha expôs os ensinamentos fundamentais do budismo: as quatro verdades nobres (sânsc. chatu-arya-satya). Antes de falar delas, vamos conhecer as três marcas (sânsc. trilakshana) com as quais o Buda caracterizou a nossa existência: a impermanência, o não-eu e o sofrimento.
A impermanência (sânsc. anitya, páli anichcha) se refere ao fato de que todas as coisas passam por uma constante transformação, momento a momento. Do mesmo modo, a felicidade, a saúde, a vida, as propriedades… tudo é impermanente, instável.
Por que é tão difícil praticar a morte e praticar a liberdade? E por que temos tanto medo da morte que evitamos por completo olhar para ela? De algum modo, no fundo, sabemos que é impossível evitar encará-la para sempre. Sabemos que, nas palavras de Milarepa, “essa coisa chamada ‘cadáver’, que tanto nos apavora, vive conosco aqui e agora”. Quanto mais adiarmos esse encontro, quanto mais o ignorarmos, maior é o medo e a insegurança que surgem para nos perseguir… Quanto mais tentarmos fugir do medo, mais monstruoso ele se torna.
A morte é um vasto mistério, mas há duas coisas que é possível dizer a seu respeito: é absolutamente certo que morreremos um dia e é absolutamente incerto quando e onde essa hora vai chegar. Então, a única certeza que temos é essa incerteza sobre o instante da nossa morte, a que nos agarramos para adiar encará-la diretamente. Somos como crianças que fecham os olhos no jogo de esconde-esconde e pensam que assim ninguém pode vê-las.

Sogyal Rinpoche, O Livro Tibetano do Viver e do Morrer

O não-eu (sânsc. anatman, páli anatta) se refere à ilusão de que possuímos uma entidade pessoal independente, ou atman. A idéia do “eu” só aparece em dependência de cinco agregados (forma, sensação, percepção, formações mentais, e consciência) [os cinco agregados] e, portanto, o “eu” não existe inerentemente, não existe por si mesmo.
Nós afirmamos o “eu”, de novo e de novo, através da identificação. Nós o identificamos com um certo nome, uma idade, um sexo, uma habilidade, uma ocupação. “Eu sou um médico, Eu sou um advogado, Eu sou um contador, Eu sou um estudante”. E identificamos as pessoas às quais estamos apegadas. “Eu sou um esposo, Eu sou uma esposa, Eu sou um pai, Eu sou uma mãe, Eu sou um filho, Eu sou uma filha”. Agora, na maneira de falar, usamos o “eu” deste modo; mas não é apenas na fala. Realmente, acreditam que o “eu” é quem somos. Quando qualquer destes fatores é ameaçado, se o “ser uma esposa” é ameaçado, se o “ser uma mãe” é ameaçado, se o “ser uma advogada” é ameaçado, se o “ser uma professora” é ameaçado; ou se perdemos as pessoas que nos permitem reter aquele “eu”; que tragédia! (…)
A identificação com qualquer coisa é o que fazemos, e qualquer coisa é o que temos, posses ou pessoas que acreditamos ser necessárias para nossa sobrevivência. Auto-sobrevivência [sobrevivência do “eu”]. Se não nos identificamos com isto ou aquilo, sentimos como se estivéssemos no limbo. Esta é a razão pela qual é difícil parar de pensar durante a meditação. É porque, sem pensar, não haverá identificação. Se o “eu” não pensa, com o que o “eu” se identifica? É difícil ir a um estágio de meditação em que não há absolutamente qualquer coisa que se identifique com algo mais. A felicidade também pode ser uma identificação, “Eu estou feliz”, “Eu estou triste”. (…) Esta identificação resulta, é claro, em desejo de possuir [felicidade, posses etc.]. E este [desejo de] possuir resulta em apego. (…) Cada momento passa, mas nos apegamos, tentando nos manter neles. Tentando fazer deles uma realidade. Tentando fazer deles uma segurança. Tentando fazer deles algo que não são. Veja como estão passando. (…)
Não há uma entidade específica em qualquer coisa. Isso é a vacuidade. Essa vacuidade é também experimentada na meditação. É vazia, sem qualquer pessoa específica, sem qualquer coisa que a faça permanente, vazia de qualquer coisa que a faça permanente, vazia de qualquer coisa que a faça mais importante. A coisa toda está em fluxo. Então, a vacuidade é isso.
E a vacuidade deve ser vista em qualquer lugar, é para ser vista em si mesmo. E isso é o que chamado de anatman, o não-eu. Vazio de uma entidade. Não há ninguém lá. É tudo imaginação.

Ayya Khema, Meditating on No-self

Tudo é mudança, tudo é transformação nesse dinâmico processo que constitui a vida humana, e nada encontramos dentro de nós que possa ser definido como um Eu, como uma natureza constante, imutável. Entretanto, a ignorância e as paixões do homem levam-no a alimentar a ilusão de que as coisas não se transformam e tomam-nas por possuidoras de uma essência perene. Nasce daí o apego das coisas experimentadas através dos sentidos e também o desejo de uma vida eterna, bem como o seu oposto, o desejo mórbido e niilista da aniquilação total. O homem sofre porque projeta desejos de estabilidade e permanência em coisas efêmeras e relativas.

Ricardo Mário Gonçalves, Textos Budistas e Zen-budistas

O sofrimento (sânsc. duhkha, páli dukkha) é melhor explicado pelas Quatro Verdades Nobres.
É importante ter em mente que o Buddha nunca negou que a vida; mesmo “não-iluminada”; mantém a possibilidade de muitos tipos de beleza e felicidade.
Mas ele também reconheceu que os tipos de felicidade aos quais a maioria de nós está acostumada não pode, por sua própria natureza, trazer uma satisfação realmente duradoura. Se alguém está genuinamente interessado no bem-estar próprio e dos outros, então ele deve estar querendo trocar um tipo de felicidade por outro muito melhor. Este entendimento está no próprio coração do método de Buddha. (…) A mais alta felicidade de todas, e aquela à qual os ensinamentos de Buddha definitivamente apontam, é a felicidade e paz duradouras do Nirvana transcendente e imortal. Assim, os ensinamentos do Buddha estão preocupados unicamente em guiar as pessoas à mais alta e extensa felicidade possível.

John Bullit, What is Theravada Buddhism?

Há três portas para a liberação: a sem sinais, a sem desejos, e a da vacuidade. Se compreendemos totalmente a impermanência, anitya, isto é chamado de liberação sem sinais. Se compreendemos totalmente o sofrimento, duhkha, isto é a liberação sem desejos. Se compreendemos totalmente o não-eu, anatman, então isto é a liberação da vacuidade. (…) Uma pessoa completamente liberada ainda age, fala, pensa e considera suas intenções e objetivos, como qualquer um, mas tal pessoa perdeu a idéia de que “Eu estou” pensando, “Eu estou” falando, “Eu estou” agindo. O karma não está mais sendo feito porque há apenas o pensamento, apenas a fala, apenas a ação. Há a experiência, mas não o experimentador. E como mais nenhum karma está sendo feito, não há renascimento. Isso é a iluminação completa.

Ayya Khema, Meditating on No-self

I. A verdade do sofrimento [Duhkkha]

Como vocês sabem, a vida é repleta de sofrimentos: o sofrimento do nascimento, o sofrimento da velhice, o sofrimento da doença, o sofrimento da morte. Há também o sofrimento da perda de entes queridos, o sofrimento de estar junto de algo que não se gosta, o sofrimento de não conseguir o que se deseja, o sofrimento de perder suas conquistas…

Todos os seres estão sujeitos à tristeza, à lamentação, à dor, ao desespero, aos problemas… Buddha não negou a existência de felicidade mundana, mas reconheceu que essas felicidades são impermanentes.
Reconhecer o sofrimento é o primeiro passo para se encontrar uma saída; é também um remédio para todas as nossas falsas esperanças e nossa tendência de buscar apoio em prazeres efêmeros que resultam em decepção. O noticiário da televisão é suficiente para que nos deparemos com o imenso sofrimento; basta refletir sobre os acontecimentos dolorosos na vida daqueles que nos cercam, ou explorar as constantes correntes por debaixo de nossos próprios problemas, para podermos confirmar que a tristeza e o sofrimento permeiam toda a existência. Tal reconhecimento pode nos devastar e nos esgotar. Perguntamo-nos então como foi que isso veio a acontecer, sem de fato esperar uma resposta. Os ensinamentos budistas, porém, são claros quanto a esta questão. O sofrimento, em suas inúmeras manifestações, tem uma única fonte: a delusão da mente dualista.

Chagdud Khadro, Comentários sobre Tara Vermelha

Há três tipos de sofrimento. O primeiro é o sofrimento que se sobrepõe ao sofrimento.
Uma coisa ruim acontece em cima da outra, e parece não haver justiça alguma no processo. Quando você pensa que a situação em que está não pode ficar pior, ela fica.
Você perde dinheiro, depois um parente, depois a juventude; há inúmeras maneiras pelas quais sofremos. O segundo tipo é o sofrimento da mudança. Nada é confiável ou consistente. Por maior que seja a nossa esperança de ter uma base sólida sobre a qual podemos nos apoiar, tudo aquilo com que contamos sempre se corrói, criando grande dor. O terceiro é o sofrimento que tudo permeia. Da mesma forma que, quando você espreme uma semente de gergelim, constata que ela está permeada de óleo, pode parecer que a nossa vida seja feliz, mas, quando somos espremidos, sofremos. Tão certo quanto o fato de que nascemos é o fato de que iremos ficar doentes, envelhecer e morrer.

Chagdud Tulku Rinpoche, Portões da Prática Budista

II. A verdade da causa [Samudaya]

A origem do sofrimento é o desejo sensual, o desejo de existência, o desejo de não-existência, o desejo de auto-aniquilação.
A união dos cinco agregados faz surgir a ilusão de um ego. Nunca conseguimos satisfazer os inúmeros desejos desse ego impermanente, sem essência, sofredor. Dessa ilusão inicial, ou avidya, surgem os três venenos (sânsc. klesha): o desejo (apego), o ódio (aversão) e a ignorância (desconhecimento). Do mesmo modo, surgem todos os outros venenos mentais, como o orgulho, a inveja etc.
Para compreender como o sofrimento aparece, pratique observar a sua mente. Comece simplesmente deixando-a relaxar. Sem pensar no passado nem no futuro, sem sentir esperança nem medo em relação a isto ou aquilo, deixe que ela repouse confortavelmente, aberta e natural. Nesse espaço da mente não há problemas, não há sofrimento. Então, alguma coisa prende a sua atenção; uma imagem, um som, um cheiro. Sua mente se subdivide em interno e externo, “eu” e “outro”, sujeito e objeto. Com a simples percepção do objeto, não há ainda nenhum problema. Porém, quando você se foca nele, nota que é grande ou pequeno, branco ou preto, quadrado ou redondo. Então, você faz um julgamento; por exemplo, se o objeto é bonito ou feio. Tendo feito esse julgamento, você reage a ele: decide se gosta ou não do objeto.
É aí que o problema começa, pois “Eu gosto disto” conduz a “Eu quero isto”. Igualmente, Eu não gosto disto” conduz a “Eu não quero isto”. Se gostarmos de alguma coisa, se a queremos e não podemos tê-la, nós sofremos. Se a queremos, a obtemos e depois a perdemos, nós sofremos. Se não a queremos, mas não conseguimos mantê-la afastada, novamente sofremos. Nosso sofrimento parece ocorrer por causa do objeto do nosso desejo ou aversão, mas realmente não é bem assim; ele ocorre porque a mente se biparte na dualidade, sujeito-objeto, e fica dividida com querer ou não querer alguma coisa.

(Chagdud Tulku Rinpoche, Portões da Prática Budista)

III. A verdade da cessação [Nirodha]

Extinguindo-se a causa, extinguindo-se o falso ego, o sofrimento também desaparece.
Aqui, aplica-se a lógica da interdependência. A existência do sofrimento depende de sua causa; se essa causa for eliminada, suas conseqüências (sofrimento, desejo, ódio, ignorância) também desaparecerão.

IV. A verdade do caminho [Marga]

O caminho óctuplo é o caminho que conduz à extinção do sofrimento: visão correta e intenção correta; fala correta, ação correta e meio de vida correto; esforço correto, atenção correta e concentração correta.
O caminho óctuplo (sânsc. ashtanga-marga) é assim chamado por ser dividido em oito partes. Este é o caminho do meio, o caminho do despertar, que conduz ao estado de nirvana; a extinção total do sofrimento.
Primeiro, é preciso conhecer a existência do sofrimento. Depois, deve-se destruir sua causa. Para isso, deve-se compreender que a cessação do sofrimento é possível. Para consegui-la, deve-se então praticar o caminho. Eu conheci a existência do sofrimento, destruí sua origem, compreendi sua cessação e pratiquei o caminho. Assim, obtive a iluminação insuperável, completa e perfeita. O sofrimento, a causa, a cessação e o caminho são as quatro verdades nobres. Sem conhecê-las, ninguém pode conseguir a iluminação. Quem compreendê-las perfeitamente, pode se libertar de todos os sofrimentos.

SABEDORIA (Prajna)
1. Visão correta (samyak-drishti)
2. Intenção correta (samyak-samkalpa)

ÉTICA (Shila)
3. Fala correta (samyak-vach)
4. Ação correta (samyak-karmata)
5. Meio de vida correto (samyak-ajiva)

CONCENTRAÇÃO (Samadhi)
6. Esforço correto (samyak-vyayama)
7. Atenção correta (samyak-smiriti)
8. Concentração correta (samyak-samadhi)

O nobre caminho óctuplo oferece um compreensivo guia prático para o desenvolvimento das qualidades e habilidades benéficas no coração humano, que devem ser cultivadas para levar o praticante à meta final, a liberdade e felicidade supremas do nirvana. (…) O progresso pelo caminho não permite uma simples trajetória linear. Ao invés disso, o desenvolvimento de cada aspecto do nobre caminho óctuplo encoraja o refinamento e fortalecimento dos outros [aspectos], conduzindo o praticante cada vez mais à frente na espiral ascendente da maturidade espiritual que culmina no despertar.

(John Bullit, What is Theravada Buddhism?)

Prajna, a Sabedoria

1. Visão correta (sânsc. samyak-drishti): o conhecimento das quatro verdades nobres, da interdependência etc. constituem a visão correta da realidade.
2. Intenção correta (sânsc. samyak-samkalpa): é a atitude de renunciar às atitudes negativas e cultivar a bondade e a não-agressão.
Shila, a Ética

3. Fala correta (sânsc. samyak-vach): não se deve mentir, difamar, falar rudemente ou tagarelar, mas falar sim de maneira honesta, harmoniosa, reconfortante e significativa.
4. Ação correta (sânsc. samyak-karmata): não matar, não roubar, não ter má conduta sexual, não tomar drogas ou tóxicos, etc.
5. Meio de vida correto (sânsc. samyak-ajiva): o meio de vida deve seguir os preceitos citados anteriormente.

Samadhi, a Concentração

6. Esforço correto (sânsc. samyak-vyayama): não se deve viver de modo negativo ou repetir os erros da passado, mas sim desenvolver cada vez mais as atitudes positivas.
7. Atenção correta (sânsc. samyak-smiriti): é a contemplação do corpo, dos sentimentos, da mente dos fenômenos.
8. Concentração correta (sânsc. samyak-samadhi): é a meditação praticada com o esforço correto e com a atenção correta.

A essência do ensinamento budista pode ser resumida em dois princípios: as quatro verdades nobres e o nobre caminho óctuplo. O primeiro aborda o lado da doutrina e a primeira resposta que provoca é o entendimento; o segundo aborda o lado da disciplina, o sentido mais amplo desta palavra, e seu objetivo fundamental é a prática. Na estrutura do ensinamento, estes dois princípios estão juntos em uma indivisível unidade chamada Dharma-vinaya (páli Dhamma-vinaya), a doutrina – disciplina, ou de forma resumida, o Dharma (páli Dhamma). A unidade interna do Dharma é garantida pelo fato que a última das quatro verdades nobres, verdade do caminho, é o nobre caminho óctuplo, enquanto que o primeiro fator deste, a visão correta, é o entendimento das quatro verdades nobres. assim, os dois princípios se penetram e se incluem, um ao outro; a fórmula das quatro verdades nobres contendo o nobre caminho óctuplo e este contendo as quatro verdades nobres.
Dada esta unidade integral, seria sem sentido colocar a questão de qual dos dois aspectos do Dharma teria maior valor, a doutrina ou o caminho. Entretanto, se fizéssemos tal pergunta, a resposta teria que ser o caminho. O caminho clama primazia porque é precisamente ele que traz o ensinamento à vida. O caminho traduz o Dharma de uma coleção de abstratas fórmulas em um contínuo desvelar da verdade. Ele dá saída ao problema do sofrimento, onde o ensinamento se inicia. E ele faz a meta do ensinamento, a liberação do sofrimento, acessível a nós, e é através dela que toma seu autêntico significado.
Seguir o nobre caminho óctuplo é mais uma questão de prática do que de conhecimento intelectual, mas para se aplicar o caminho corretamente deve-se entendê-lo apropriadamente. De fato, o entendimento correto do caminho é em si mesmo uma parte da prática. É uma faceta da visão correta, o primeiro fator do caminho, o precursor e guia para o resto do caminho. Assim, apesar que um entusiasmo inicial possa sugerir que a função da compreensão intelectual deva ser colocada de lado como uma aborrecida distração, uma consideração madura revela ser na verdade essencial para o sucesso último do caminho. (…)
Os oito fatores do nobre caminho óctuplo não são estágios para serem seguidos em seqüência, um após o outro. Ao invés disso, eles podem ser mais habilmente descritos como componentes, comparáveis às fibras entrelaçadas de um único cabo que requer a contribuição de todas as fibras para resistência máxima. Com um certo grau de progresso, todos os oito fatores podem estar presentes simultaneamente, cada um ajudando os outros. Porém, até que esse ponto seja atingido, uma certa seqüência no desenvolvimento do caminho é inevitável. Do ponto de vista do treinamento prático, o caminho óctuplo divide-se em três grupos: [ética, concentração e sabedoria]. (…)
A ordem dos três treinamentos é determinada pela meta final e pela direção do caminho. Já que a meta final para a qual o caminho conduz, a libertação do sofrimento, em última instância depende da erradicação da ignorância, o clímax do caminho deve ser o treinamento diretamente oposto à ignorância. Este é o treinamento na sabedoria [prajna], destinado a despertar a faculdade de entendimento penetrativo que vê as coisas “como elas realmente são”. A sabedoria desenvolve-se por graus e até mesmo os mais fracos lampejos de “insights” pressupõem, como sua base, uma mente que esteja concentrada, livre de confusões e distração.
A concentração [samadhi], é adquirida por meio do treinamento em consciência elevada, a segunda divisão do caminho, que produz a calma e a serenidade necessárias para o desenvolvimento da sabedoria. Mas para que a mente seja unificada na concentração, um freio deve ser colocado nas disposições não-saudáveis que geralmente dominam sua atividade, uma vez que essas disposições dissipam o foco de atenção e a dispersa entre uma multidão de inquietações e preocupações. As disposições não-saudáveis continuam a dominar enquanto se permite que elas ganhem expressão através dos canais do corpo e da fala, como ações corporais e verbais. Consequentemente, no próprio começo do treinamento, é necessário restringir as faculdades da ação, para prevenir que elas se tornem instrumentos das impurezas. Essa tarefa é realizada pela primeira divisão do caminho, o treinamento na ética [shila].
Então o caminho desenvolve-se através de seus três estágios, com a ética como fundamento para a concentração, a concentração como fundamento para a sabedoria, e a sabedoria como instrumento direto para a obtenção da liberação.
Algumas vezes, a perplexidade surge a respeito de uma inconsistência aparente na combinação dos fatores do caminho e do treinamento triplo. A sabedoria; que inclui a visão correta e a intenção correta; é o último estágio no treinamento triplo, apesar dos seus fatores serem colocados no início do caminho ao invés do seu término, como poderia ser esperado de acordo com o princípio fundamental da consistência estrita.
Porém, a seqüência dos fatores do caminho não é o resultado de um erro negligente, mas é determinada por uma consideração logística importante, a saber, que a visão correta e a intenção correta são, no ínicio, um tipo preliminar como o impulso para a entrada no treinamento triplo. A visão correta provê a perspectiva para a prática, a intenção correta o sentido de direção. Mas as duas não terminam nesse papel preparatório pois, quando a mente foi refinada pelo treinamento na ética e na concentração, ela chega a uma visão correta e intenção correta superiores, as quais formam o próprio treinamento na sabedoria suprema.

Bhikkhu Bodhi, The Noble Eightfold Path

Quanto à ética budista, é muito conhecido o grupo de cinco preceitos (sânsc. pancha-shila): não matar; não roubar; não cometer adultério; não mentir ou falar de maneira rude; não tomar tóxicos.
Outro grupo, de dez preceitos (sânsc. dasha-kushala-karma-patha), é uma versão um pouco mais detalhada dos cinco citados anteriormente: não matar, mas proteger a vida; não roubar, mas praticar a generosidade; não cometer adultério, mas praticar a ética; não mentir, mas falar a verdade; não difamar, mas falar harmoniosamente; não falar de maneira rude, mas usar palavras reconfortantes; não tagalerar, mas falar com discrição e significado; não cobiçar, mas regozijar-se com a riqueza e as qualidades dos outros; não ter maldade, mas ter benevolência; não defender visões errôneas, mas cultivar as corretas.
Como a vontade é por si mesma indeterminada, o Buddha prescreveu, em termos definitivos e lúcidos, os fatores de treinamento moral que devem ser completados para salvaguardar o progresso no caminho à iluminação. Estes fatores são uma parte essencial do treinamento e, quando implementados pela força da volição, se tornam um meio fundamental de purificação. Especialmente no contexto da prática meditativa, a tomada de preceitos previne a emergência de ações corrompidas, destrutivas ao propósito da disciplina meditativa. Ao seguir cuidadosamente as regras das condutas prescritas, estaremos evitando pelo menos as expressões mais grosseiras de cobiça, aversão e ilusão e, desta forma, não teremos que vivenciar os obstáculos da culpa, ansiedade de agitação que surgem na trilha de transgressões morais regulares.
Portanto, um preceito é, segundo a perspectiva budista, muito mais que uma proibição imposta à conduta vinda de fora. Cada preceito é uma expressão tangível de uma atitude mental correspondente. Ao trazer nossa conduta em harmonia com os preceitos, podemos nutrir a raiz de nossos esforços espirituais, a virtude. Quando a virtude é aprimorada, os estágios do caminho se desvelam espontaneamente através da lei da vida espiritual, culminando na perfeição do conhecimento e libertação serena.

Bhikkhu Bodhi, Nourishing the Roots

Karma e renascimento

A palavra sânscrita karma significa ação e se refere à causalidade, a interdependência entre todos os atos e suas conseqüências naturais. De modo geral, para que as coisas aconteçam, é necessário uma ação. Por exemplo, se você quer tomar um chá, precisa praticar vários atos que possibilitem isso: comprar a erva, arrumar uma xícara, preparar a água etc., até que, enfim, esteja em condições de bebe-lo. Essas ações, como toda e qualquer ação, têm seus resultados; esta é a lei do karma. Existem ações que frutificam de imediato; outras, porém, frutificam em alguns meses ou anos, ou depois de várias vidas, ou mesmo depois de várias eras mas, apesar do tempo que possa mediar, sempre haverá uma correspondência entre a ação e o seu fruto.

Dalai Lama, citado na revista Bodisatva

Certamente, a maneira mais utilizada para se explicar o karma é a analogia de que estamos colhendo os frutos das ações que cultivamos anteriormente; do mesmo modo, nosso futuro terá as conseqüências do que estamos fazendo agora.
Tudo o que é colocado em movimento produz um movimento correspondente. Se você joga uma pedra numa lagoa, formam-se ondulações ou anéis que correm para fora, batem na margem e voltam. O mesmo se passa com o movimento dos pensamentos: ondulações correm para fora, ondulações retornam. Quando os resultados desses pensamentos chegam de volta, sentimo-nos vítimas indefesas: estávamos inocentemente vivendo nossa vida; por que todas essas coisas estão acontecendo conosco? O que acontece é que os anéis estão voltando para o centro. (…)
[Isto é o karma e, devido a ele,] nossa experiência da realidade continua a girar em ciclos, com todas as suas variações, vida após vida. Assim é o interminável samsara, a existência cíclica. Não compreendemos que estamos vivendo resultados que nós mesmos criamos, e que nossas reações produzem ainda mais causas, mais resultados; incessantemente. (…)
O karma pode ser comparado a uma semente que, em condições adequadas, dará lugar a uma planta. Se você colocar na terra uma semente de cevada, pode ter certeza de que obterá um broto de cevada. A semente não vai produzir arroz.
A mente é como um campo fértil; coisas de todos os tipos podem crescer nele. Quando plantamos uma semente; um ato, uma palavra ou um pensamento, num dado momento, será produzido um fruto que irá amadurecer e cair por terra, perpetuando e incrementando sementes de causalidade potentes em nosso corpo, fala e mente. Quando se juntarem as condições adequadas para o amadurecimento do nosso karma, teremos que lidar com as conseqüências das coisas que plantamos.

Chagdud Tulku Rinpoche, Portões da Prática Budista

A doutrina budista, ao delinear o que deve ser abandonado e o que deve ser aceito, classifica o karma em dez não-virtudes e dez virtudes. As dez não-virtudes incluem três do corpo; matar, roubar e conduta sexual indevida; quatro da fala; mentir, difamar, fala rude e conversa fiada; e três da mente; cobiça, maldade e visão errônea. (…) As dez ações virtuosas são o oposto das dez não-virtuosas: não matar, e sim proteger a vida; não roubar, e sim praticar a generosidade; não se entregar a uma conduta sexual indevida, e sim praticar a moralidade em assuntos sexuais (realçada pela manutenção do celibato em certos dias sagrados e durante certas ocasiões como retiros espirituais); não mentir, e sim falar a verdade; não difamar, e sim falar harmoniosamente; não usar a fala rude, e sim usar palavras reconfortantes; não tagalerar, e sim falar com discrição e significado; não cobiçar, e sim regozijar-se com a riqueza e as qualidades dos outros; não ter maldade, e sim benevolência; não defender visões errôneas, e sim cultivar as corretas.

Chagdud Khadro, Práticas Preliminmares do Budismo Vajrayana

A palavra reencarnação, apesar de ser bastante utilizada, não é muito correta para o contexto budista; a palavra mais precisa seria renascimento.
Algumas pessoas acreditam que uma alma imortal, ou Atman, migra de vida para vida, ou que a consciência individual é reabsorvida na consciência universal ou mente divina para depois, mais uma vez, renascer. A visão budista não é nenhuma dessas. (…)
[Segundo Buddha,] o que sobrevive à morte é o fluxo contínuo, sempre em mutação, da energia de nosso corpo e mente muito sutis. Todos nós recebemos um nome quando nascemos e, por toda a nossa vida, respondemos a ele, embora nosso corpo e mente aos dez, vinte, trinta, quarenta, cinqüenta ou setenta anos sejam bastante diferentes. Somos a mesma pessoa, mas não somos a mesma pessoa. A natureza essencial de nossa mente é vazia de uma existência por si mesma independente. Nossa natureza mais essencial é como um cristal puro [vajra], e nela são gravadas muitas marcas. Assim, momento após momento, vida após vida, estamos sempre nos manifestando de formas diferentes.

T.Y.S. Lama Gangchen, Ngelso

As existências sucessivas numa série de renascimentos não são como as pérolas de um colar, presas por um cordão, a “alma”, que passa através de todas as pérolas; são mais como dados empilhados uns sobre os outros. Cada um dos dados é separado, mas suporta o que está sobre ele e está funcionalmente conectado com ele. Entre os dados não há identidade, mas condicionalidade.

H.W. Schumann, The Historical Buddha

Há nas escrituras budistas um relato muito claro desse processo de condicionalidade. O sábio budista Nagasena fez uma explanação disso ao rei Milinda num famoso conjunto de respostas a perguntas que o rei lhe fez.
O rei perguntou a Nagasena: “Quando alguém renasce, ele é o mesmo que aquele que acabou de morrer ou é diferente?”
Nagasena respondeu: “Ele não é o mesmo, nem é diferente… Diga-me uma coisa, se um
homem acendesse uma lamparina, ela poderia fornecer luz durante toda a noite?”;
“Sim.”;
“É a chama que brilha na primeira vigília da noite a mesma da segunda… ou da última?”;
“Não.”;
“Isso quer dizer que há uma lamparina na primeira vigília, outra lamparina na segunda, e outra na terceira?”;
“Não.’;
“É de uma única lamparina a luz que brilha a noite toda?”;
“Sim.”
“No renascimento é a mesma coisa: um fenômeno surge e outro cessa, simultaneamente. Assim, o primeiro ato de consciência na nova existência não é o mesmo do último ato de consciência da existência prévia, nem tampouco é diferente.”
O rei pediu outro exemplo que explicasse a natureza precisa dessa dependência, e Nagasena fez a comparação do leite: a coalhada, a manteiga ou o ghee [manteiga semilíquida], feitos de leite, nunca são o mesmo que o leite, mas dependem totalmente dele para serem produzidos.

(Sogyal Rinpoche, O Livro Tibetano do Viver e do Morrer)

No budismo tibetano, é muito comum a identificação de tulkus (tib. sprul sku), lamas renascidos como crianças e identificados através de visões, profecias e testes. O mais famoso tulku tibetano é Tenzin Gyatso, o Dalai Lama. Segundo ele, a tarefa de identificar os tulkus é mais lógica do que pode parecer à primeira vista. Dada a crença budista no renascimento, e considerando que todo o propósito da reencarnação é possibilitar ao ser continuar seus esforços em benefício de todos os seres vivos, é uma conclusão clara que deveria ser possível identificar casos individuais. Isso habilita-os a serem educados e colocados no mundo de tal forma que continuem seu trabalho o mais rápido possível. Certamente, podem ocorrer erros nesses processo de identificação, mas as vidas da grande maioria dos tulkus (atualmente existem algumas centenas deles reconhecidos, sendo que antes da invasão chinesa eram provavelmente milhares os tulkus reconhecidos) são um bom exemplo do testemunho de sua eficácia.

(Dalai Lama, citado na revista Bodisatva)

A palavra tulku também é geralmente traduzida com o sentido reencarnação, mas o significado correto é corpo de emanação (sânsc. nirmanakaya). Do mesmo modo que o sol emana muitos raios; que não são totalmente iguais, nem totalmente diferentes; um lama teria a capacidade de emanar uma sucessão de renascimentos para trazer benefício aos outros seres.
O que continua num tulku? É ele exatamente a mesma pessoa que reencarnou? Ele é e não é, ao mesmo tempo. Sua motivação e dedicação para ajudar todos os seres é a mesma, mas ele não é na verdade a mesma pessoa. O que continua de uma vida para outra é uma bênção, é isso que o cristão chama de graça. Essa transmissão de uma bênção e da graça é sintonizada e adequada a cada época sucessiva, e a encarnação aparece da maneira que potencialmente melhor se adequa ao karma das pessoas desse tempo, para poder ajudá-las de modo mais completo.

Sogyal Rinpoche, O Livro Tibetano do Viver e do Morrer

A INTERDEPENDÊNCIA

O ensinamento do surgimento dependente (sânsc. pratitya-samutpada) diz que todo fenômeno (sânsc. dharma) aparece, se realiza e desaparece; estes três acontecimentos só podem ocorrer devido a certas causas e condições. Por isso, o samsara (o mundo dos fenômenos) é condicionado, interdependente, ao contrário da paz infinita do nirvana, incondicionado.
Se você é poeta, vê claramente uma nuvem em um papel em branco. Se não existir a nuvem, a chuva não cai. Se não cair a chuva, a árvore não cresce. Se não cresce a árvore, não se faz papel. Então, podemos dizer que o papel e a nuvem se encontram em interexistência. Se observarmos mais profundamente o papel, veremos nele a luz do sol.
Sem a luz do sol, o mato não cresce. Ou melhor, sem ela, nada no mundo cresce. Por isso, reconhecemos que a luz do sol também existe no papel em branco. O papel e a luz do sol encontram-se em interdependência. Se continuarmos observando profundamente, veremos o lenhador que cortou a árvore posteriormente levada à marcenaria.
Veremos também o trigo no papel. Sabemos que o lenhador não pode existir sem o pão de cada dia. Por isso, o trigo, a matéria-prima do pão, também existe no papel. Pensando desta maneira, reconhecemos que um papel branco não pode existir quando faltar qualquer um destes elementos. Não posso citar nada que não esteja aqui, agora. O tempo, o espaço, a chuva, os minerais contidos no solo, a luz do sol, as nuvens, os rios, o calor… tudo está aqui, agora. Não podemos existir sozinhos.
Este papel branco é totalmente constituído de “elementos que não são papel”. Se devolvermos todos os “elementos que não sejam papel” à sua origem, o papel deixará de existir. O papel não existirá se forem tirados os “elementos que não sejam papel”. O papel, em sua espessura fina, contém tudo do universo. Nele, não há nada que não exista em interdependência. A inexistência de elementos independentes significa que tudo é satisfeito por tudo.
Temos que existir em interexistência com os demais, assim como um papel que existe porque todo os demais elementos existem.

Thich Nhat Hanh, citado em Caminho Zen

Se tudo é impermanente, então tudo é o que chamamos “vazio” [sânsc. shunya], o que significa ausência de qualquer existência durável, estável e inerente; de todas as coisas, quando vistas e compreendidas em sua verdadeira relação, não são independentes, mas interdependentes entre si. O Buda comparou o universo a uma vasta rede composta por uma infinita variedade de jóias brilhantes, cada uma delas com um número incontável de facetas. Cada jóia reflete em si mesma toda outra jóia do conjunto é de fato una com toda as demais.
Pense numa onda no mar. Vista de um modo, parece ter uma identidade distinta, um fim um começo, um nascimento e uma morte. Vista de outro modo, a onda não existe, mas é apenas o comportamento da água, “vazia” de toda identidade separada, mas “cheia” de água. Assim, quando você pensa a respeito da onda, vem a perceber que se trata de algo que se tornou temporariamente possível pelo fato do vento, e pela água, e que é dependente de um conjunto de circunstâncias permanentemente mutáveis. Você também percebe que cada onda está relacionada com todas as outras ondas.
Quando observamos atentamente, nada tem qualquer existência inerente e própria, e essa ausência de existência independente é o que chamamos “vacuidade” [sânsc. shunyata].

Sogyal Rinpoche, O Livro Tibetano do Viver e do Morrer

A interdependência do samsara foi esquematizada em doze elos, representados simbolicamente na roda da vida:

1. Ignorância (sânsc. avidya): é o desconhecimento das quatro verdades.
2. Formações (sânsc. samskara): resultantes da ignorância, são as vontades ou impulsos que originam as ações do corpo, da fala e da mente.
3 Consciência (sânsc. vijnana): como resultado das formações, há seis tipos de consciência, relacionadas aos seis órgãos (olhos, ouvidos, nariz, língua, corpo, mente).
4. Nome-e-forma (sânsc. nama-rupa): “nome” se refere às sensações, percepções, vontade e consciência, enquanto “forma” se refere aos elementos materiais: fogo, água, terra e ar. Forma, sentimentos, percepções, vontade e consciência são os cinco agregados que compõem a existência; são resultantes da consciência.
5. Seis Sentidos (sânsc. shadayatana): visão, audição, olfato, paladar, tato e consciência, resultantes do nome-e-forma.
6. Contatos (sânsc. sparsha): resultantes do encontro dos seis sentidos com seus respectivos objetos (cores, sons, cheiros, sabores, formas/texturas, pensamentos).
7. Sensações (sânsc. vedana): resultantes dos contatos, são classificadas como agradáveis, desagradáveis ou neutras.
8. Desejos (sânsc. trishna): querer as coisas que trouxeram sensações agradáveis e não querer as coisas que trouxeram sensações desagradáveis.
9. Apego (sânsc. upadana): como resultado dos desejos, surgem quatro tipos de desejos, relativos aos prazeres, às visões, aos rituais e regras, e ao falso ego.
10. Existência ou vir-a-ser (sânsc. bhava): como resultado do apego, surgem três tipos de existência: nos prazeres (sânsc. kamadhatu), na forma (sânsc. rupadhatu) e na não-forma (sânsc. arupadhatu).
11. Nascimento (sânsc. jati): é o processo de originação em um dos reinos de renascimento, o perecimento dos agregados e a aquisição dos sentidos, resultantes da existência.
12. Velhice-e-morte (sânsc. jara-maranam): velhice é a decadência que o corpo sofre com o passar da vida, e morte é a decomposição, a dissolução dos cinco agregados.
Todos os elos são interdependentes; a existência de um implica no aparecimento do elo seguinte. Ou seja, a velhice e morte é consequência do nascimento, que é consequência da existência, etc. Do mesmo modo, extinguindo-se a ignorância, desaparecem a formação, a consciência etc., até que se extingam todos os elos, todos os sofrimentos.
Em poucas palavras, a verdade última da existência, segundo o budismo, é shunyata, ou a Vacuidade. Porém, “vacuidade” não quer dizer (…) aquilo que é “oco”, mas sim que todos os fenômenos, todas as coisas, existem sob dependência ou interdependentemente, e não por si mesmas. Por esse motivo, porque nada existe por si só mas sim por dependência, cada fenômeno, isoladamente considerado é, em última instância, vazio. Assim, quando temos a ausência dessa interdependência da existência, temos a experiência da vacuidade.
Dalai Lama, citado na revista Bodisatva

Fundamentalmente, só existe o espaço aberto, o solo básico, o que realmente somos. É esse o estado primordial de nossa mente, antes da criação do ego, havendo abertura básica, liberdade básica, espaço, e temos agora, como sempre tivemos, essa abertura.
Tomemos, por exemplo, nossa vida e nossos padrões de pensamento cotidianos. Quando vemos um objeto, ocorre no primeiro instante súbita percepção sem lógica nem conceituação em relação a ele; apenas o percebemos no campo aberto. Então, de imediato, caímos em pânico e passamos a correr desorientadamente, tentando acrescentar-lhe alguma coisa, ou encontrar um nome para ele, ou ainda achando uma classificação para que possamos localizá-lo e categorizá-lo. Pouco a pouco, as coisas se desenvolvem a partir desse ponto.
Esse desenvolvimento não assume a forma de uma entidade sólida. Ao contrário, um desenvolvimento ilusório, a crença equivocada num “eu” ou “ego”. A mente confusa tende a ver-se como coisa sólida, em funcionamento, mas não passa de um conjunto de tendências e eventos. Na terminologia budista, esse conjunto é conhecido como os cinco skandhas ou as cinco pilhas [montes, agregados]. Assim, talvez possamos acompanhar o desenvolvimento dos cinco skandhas.
O ponto inicial é a existência de um espaço aberto, que não pertence a ninguém. Há sempre a inteligência primordial ligada ao espaço e à abertura. Vidya, que significa “inteligência” em sânscrito; precisão, agudeza, agudeza com o espaço, agudeza com o lugar em que se pode colocar coisas, trocar coisas. Poderíamos dizer um espaçoso salão em que há lugar para dançar, em que não corremos o risco de derrubar nem tropeçar em coisas, pois o espaço é completamente aberto. Nós somos esse espaço, nós “somos um” com ele, com vidya, inteligência e abertura.
Mas se o somos durante o tempo todo, de onde veio a confusão, para onde foi o espaço, o que aconteceu? Na realidade, nada aconteceu. Apenas nos tornamos demasiado ativos naquele espaço. Por ser vasto, ele nos convida a dançar; mas a nossa dança torna-se um pouco ativa demais, principiamos a girar mais do que o necessário para expressar o espaço. Nesse ponto, nos tornamos conscientes de nós mesmos, cônscios de que “eu” estou dançando no espaço.
A essa altura, o espaço deixa de ser espaço como tal. Faz-se sólido. Em lugar de “sermos um” com ele, percebemos o espaço sólido como entidade separada, tangível. Essa é a primeira experiência de dualidade; o espaço e eu, eu estou dançando neste espaço, e essa vastidão é uma coisa sólida, separada. Dualidade significa “o espaço e eu”, mais do que a completa identificação com o espaço. Assim, nasce a “forma”, o “outro”.
Ocorre, então, uma espécie de desmaio, no sentido de que nos esquecemos do que estávamos fazendo. Há uma lacuna. Tendo criado o espaço solidificado, somos engolfados por ele e começamos a perder-nos nele. Há um escurecimento e, depois, repentinamente, um despertar.
Quando despertamos, recusamo-nos a ver o espaço como abertura, recusamo-nos a ver-lhe a qualidade suave e arejada. Ignoramo-lo completamente, e a isso se chama avidya. “A”; significa “negação”, vidya; significa “inteligência”, avidya; significa “não-inteligência”.
Porque essa extrema inteligência se transformou na percepção do espaço sólido, porque essa inteligência luminosa, aguda, precisa e fluente, se tornou estática, dá-se-lhe o nome de avidya, ou seja, “ignorância”. Ignoramos deliberadamente. Não nos satisfazemos apenas em dançar no espaço, mas queremos ter um parceiro e, assim, escolhemos o espaço por parceiro. Se escolhemos o espaço por parceiro de dança, haveremos de querer, evidentemente, que ele dance conosco. A fim de tê-lo como parceiro, temos de solidificá-lo e ignorar-lhe a qualidade fluente, aberta. Isso é avidya, ignorância, ignorar a inteligência. É o ápice do primeiro skandha, a criação da ignorância-forma.
Com efeito, este skandha, o skandha da ignorância-forma tem três aspectos ou fases diferentes que podemos examinar empregando outra metáfora. Suponhamos que, no princípio, haja uma planície aberta, um simples deserto sem nenhuma característica especial. Eis aí como somos, o que somos. Somos muito simples e básicos. E, todavia, há um sol que brilha, uma lua que brilha, e haverá luzes e cores, a textura do deserto. Haverá alguma sensação da energia que brinca entre o céu e a terra. E, assim por diante, indefinidamente.
Depois, estranhamente, surge de improviso, alguém para notar tudo isso. Como se um dos grãos da areia espichasse o pescoço para fora e principiasse o olhar à sua volta. Nós somos o grão de areia, chegando à conclusão do nosso estado de separação. Este é o “nascimento da ignorância” em seu primeiro estágio, uma espécie de reação química. A dualidade começou.
À segunda fase da forma-ignorância dá-se o nome de “a ignorância nascida no interior”.
Tendo reparado que somos isolados, sobrevem a sensação de que sempre fomos assim.
É uma inépcia, o instinto da constrangedora consciência de si mesmo. É também uma desculpa para permanecermos independentes, um grão de areia individual. Um tipo agressivo de ignorância, embora não exatamente agressivo no sentido de colérico; ele ainda não se desenvolveu tanto assim. Trata-se antes de agressão no sentido de nos sentirmos desajeitados, desequilibrados e, por isso mesmo, de tentarmos garantir o nosso território, de criar um abrigo para nós. É a atitude do indivíduo confuso e separado, e isso é tudo. Nós nos identificamos como separados da paisagem básica do espaço e da abertura.
O terceiro tipo de ignorância é a “ignorância que se observa”, que se vigia. há um sentido de nos vermos como um objeto externo, o que nos conduz à primeira noção do “outro”.
Estamos começando a relacionar-nos com um mundo chamado “externo”. É por isso que os três estágios da ignorância constituem o skandha da forma-ignorância; estamos começando a criar o mundo das formas.
Quando falamos de “ignorância”, não queremos, de maneira alguma, dizer estupidez. Em certo sentido, a ignorância é muito inteligente, mas é uma inteligência bidirecional. Isto é, reagimos meramente às nossas projeções em lugar de diretamente limitar-nos a ver o que é. Não há nenhuma situação de “deixar ser”, porque ignoramos o que somos durante o tempo todo. Esta é a definição básica de ignorância.

[Chögyam Trungpa, Além do Materialismo Espiritual ]

Skandhas, os cinco agregados

1. Forma (sânsc. Rupa): refere-se ao mundo físico, ao corpo e a todas as coisas percebidas pelos sentidos, simbolicamente representado pelos quatro elementos; terra, água, ar e fogo.
2. Sensações ou sentimentos (sânsc. vedana): sãs as experiências agradáveis, desagradáveis ou neutras, resultantes dos contatos dos órgãos dos sentidos (olhos, ouvidos, nariz, língua, corpo, mente) com seus objetos (cores, sons, cheiros, sabores, formas/texturas e pensamentos).

3. Percepções (sânsc. samjana): diferenciação de cores, sons, odores, sabores, formas (incluindo texturas) e pensamentos.

4. Vontade ou formações (sânsc. samskara): o terceiro dos doze elos, abrange todas as atividades volitivas, todas as ações (sânsc. karma) do corpo, da fala e da mente.

5. Consciência (sânsc. vijnana): inclui os seis tipos de consciência que surgem do contato dos órgãos dos sentidos com seus respectivos objetos; consciência visual, consciência auditiva, consciência olfativa, consciência gustativa, consciência corporal e consciência mental.

Se o “eu” ou “pessoa” existisse independentemente, separado dos agregados, então mesmo após desintegrá-los seria possível apontar um “eu” ou “pessoa” independente destes agregados; mas não é possível. Se o “eu” ou “pessoa” fosse uma entidade totalmente separada dos agregados, então não deveria existir qualquer relação entre o “eu” e os agregados.
Se o “eu” existisse em unidade com os agregados, então surgiria uma contradição, pois se os agregados são múltiplos, o “eu” também deveria ser múltiplo. E quando esta vida presente cessa no momento da hora da morte, a continuidade do “eu” também deveria cessar; o que também não acontece.

Dalai Lama, Path to Bliss

Geralmente, quando falamos sobre “mim” e “meu”, e quando falamos sobre “eu mesmo” e “quem eu sou”, estamos falando sobre alguma idéia que temos, algum conceito de “um ser”. Quando olhamos para nós mesmos, nossa mente cria alguma imagem, tanto através da visão quanto da audição; através de um dos cinco sentidos; e então decidimos que isso é o que vemos ou ouvimos, etc. Temos um tipo de visão parcial do que esta pessoa é. Mas, realmente, vemos algo em sua total realidade? No Dharma de Buddha, dizemos que não há um eu, não há a natureza de eu permanente. Este ser que encontramos como nós mesmos, ou como qualquer um, é um “confecção”, algo “agregado”, constituído pela forma, sensações, percepções, formações mentais (pensamentos de vários tipos) e consciência. Dentre destas cinco categorias, deveria ser achado o que chamamos de “ser humano”. Mas, dentro dos cinco skandhas, não há um eu permanente, nenhum eu inerente.

Sojun Weitsman Roshi, Lectures on the Heart Sutra

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