Wu-Wei

Os verdadeiros homens de outrora nada sabiam do amor à vida ou do ódio à morte. Entrar na vida não lhes proporcionava alegria; a saída da mesma não despertava resistência. Calmamente, iam e vinham. Não esqueciam qual havia sido o começo e não indagavam qual seria o fim. Aceitavam [a vida] e regozijavam-se com ela; esqueciam [todo o temor à morte] e retornavam [ao seu estado antes da vida]. Assim, havia neles a necessidade de qualquer mente em resistir ao Tao, e todas as tentativas, por meio da condição Humana, de resistir ao Divino.13 [68a]

Longe de usar qualquer artifício ou método para obter poderes espirituais, controlar ou elevar-se acima das transformações de vida e morte, Chuang-tzu parecia exultar apenas seguindo o processo.
Você teve a coragem de nascer humano, e está encantado. Mas este corpo passa por miríades de mudanças que jamais chegam ao fim, e assim não propicia alegrias incalculáveis? Por conseguinte, o sábio desfruta daquilo de que não é possível separar-se e pelo qual tudo é preservado. Considera a morte prematura ou a velhice, seu começo e fim igualmente bons, e nisto outros homens o imitam. Quanto mais farão em respeito a este [Tao] do qual todas as coisas dependem e do qual origina-se toda transformação! 14 [68b]

Em outras palavras, aquilo que em geral é sentido como o mundo instável, imprevisível, perigoso e até mesmo hostil – incluindo os sentimentos volúveis e sentimentos íntimos – na verdade é o próprio ser e mo¬do de fazer. O próprio sentido de não ser assim é, por sua vez, parte do ser assim. Ou seja, do ponto de vista do Taoísmo Contemplativo primitivo (termo usado por Creel), qualquer exercício deliberado para cultivar o wu-wei pareceria auto-contraditório. Na própria metáfora de Chuang-tzu, seria como “bater um tambor em busca de um fugitivo” ou, como posteriormente afirmaram os budistas Ch”an, “colocar pernas numa serpente”. De acordo com Lao-tzu (cap. 38), poder-se-ia afirmar, “O wu-wei superior não objetiva o wu-wei, por isso é o verdadeiro wu-wei”.

Tal compreensão se dá por uma percepção intuitiva e não como resultado de alguma disciplina. Da mesma maneira, não é preciso aprendizado para compreender o artifício de representar a terceira dimensão através de linhas traçadas em perspectiva; basta que isso seja mostrado e a expe¬riência de profundidade do quadro deixa de ser apenas compreensão verbal e toma-se a visão real.

Então, o que devemos fazer da venerável tradição dos exercícios de meditação no Hinduísmo, no Budismo, no Taoísmo Hsien e no Sufismo Islâmico, os quais tomam a consciência cósmica e os poderes paranormais como seu objetivo ostensivo? Se prosseguirmos até os primeiros escritos Ch’an da Dinastia T’ang (+618 a +906), recordando que o Ch’an constituía à época uma fusão do Taoísmo e do Budismo, acho que não haverá dúvidas de que estes primeiros mestres Ch’an, tais como Seng- Ts’an, Hui-neng, Shen-hui, Ma-tsu e até mesmo Lin-chi, não apenas deixavam de enfatizar a importância dos exercícios de meditação, mas com freqüência descartavam-nos como irrelevantes. Eles enfatizavam inteiramente o insight intuitivo imediato, resultante do professor “apontar diretamente” (chih-chih) em entrevistas de pergunta e resposta denominadas wen-ta, de tal forma que, aquele que já havia visto a verdade das coisas simplesmente a apontava para aquele que não a havia visto – com freqüência por meios não-verbais, por demonstração e não explicação.15

Por este motivo, Hui-neng, Sexto patriarca do Ch’an Budismo (+ 713), chamava seu método de “escola súbita”, hoje ridicularizada por budistas protestantes secretos como “Zen instantâneo” (como café instantâneo) – como se o valor de uma inspiração ou intuição deva ser julgado simplesmente pelo padrão quantitativo de tempo e energia gastos na preparação para o mesmo. Quanto tempo uma criança demora para saber que o fogo é quente?

15. Ao apresentar esta idéia, percebo que, vis-à-vis os disciplinadores Ch’an modernos (Zen) do ramo do Budismo das “pernas doloridas”, não passo de um herege deplorável, pois para eles o za-zen (meditação Zen sentado) e o sesshin (longos períodos de meditação zen sentada) são o sine qua non para o despertar (ou iluminação), segundo sua escola. Fui duramente repreendido por esta opinião em Kapleau (1), pp. 21-22, 83-84, embora o único texto por ele citado da literatura zen inicial seja o de Huang-po Tuan-chi Ch’an-shih Wang-Iing Lu (antes de + 850): “Para praticar o controle da mente (ts’o-ch’an), sente-se na posição adequada, permaneça perfeitamente e não permita que o menor movimento de sua mente o perturbe” (tr. Blofeld (1), p. 131).

Considerando-se a grande ênfase dada ao za-zen posteriormente, é estranho Huang-po ter apenas isso a dizer a respeito. O leitor interessado nas raízes desta questão precisará apenas consultar o Tan-ching de Hui-neng {sutra da Plataforma} (tr.Chan Wing-tsit (1), ou Yampolsky (1), esp. o cap. 19), ou o Shen-hui Ho-ehang I-ehi (tr. Gernet (1), esp. a seção 1.111), ou Ma-tsu em Ku¬tsun-hsü Yü-lu (tr. Watts (1), p. 110). Para outras discussões1 ver Fung Yu-Ian (1), voI. 2, pp. 393-406, e Hu Shih. Todas estas evidencias corroboram a visão de que os mestres T’ang do Ch’an deploravam o uso de exercícios de meditação como forma de obter o verdadeiro insight (wu, ou o japonês satori). Obtive confirmação posterior desta visão em discussões particulares com D. T. Suzuki e R. H. Blyth, os quais consideravam o za-zen compulsivo das “pernas doloridas” um fetiche supersticioso da moderna prática zen.

Por outro lado, os que compreendem o Tao deliciam-se, como gatos, limitando-se a ficar sentados e observando, sem qualquer propósito ou resultado em mente. Mas quando um gato se cansa de ficar sentado, ele se levanta e vai caminhar ou caçar ratos. O gato não inflige castigos a si mesmo nem compete com outros gatos em testes de resistência – quanto tempo pode permanecer imóvel – a não ser que exista algum motivo verdadeiro para permanecer imóvel, tal como pegar um pássaro. Os taoístas contemplativos terão todo o prazer em sentar-se com yogis e Zen por um tempo razoável e cômodo; mas quando a natureza nos diz que estamos “empurrando o rio”, levantamos e fazemos outras coisas, ou mesmo vamos dormir. Mais do que isso, sem dúvida não passa de orgulho espiritual. Os taoístas não consideram a meditação uma “prática”, exceto no sentido de como um médico ‘pratica’ a medicina. Não pretendem subjugar ou alterar o universo por meio da coerção ou força de vontade, pois sua arte deve seguir inteiramente o fluir das coisas, de maneira inteligente. A meditação ou contemplação (kuan) desenvolve esta inteligência como conseqüência, e não como objetivo direto. O propósito ou benefício da contemplação consiste apenas em ouvir, durante uma longa noite, o som da água. Isso diz o que penso.
Sua mente está livre de todos os pensamentos. Sua conduta é tranqüila e silenciosa. A fronte refulge com simplicidade. Ele é frio como o outono e quente como a primavera, pois a alegria e a raiva acontecem com a naturalidade das quatro estações.16 [69b]

Contudo, deve-se deixar claro que o wu-wei não é um capricho intencional, como quando as pessoas saem de seu caminho para fazer aquilo que é bizarro ou anti-convencional, seguindo as convenções com a servidão de qualquer antiquado – como um guia para fazer exatamente o contrário. Este foi um equívoco comum na interpretação do Taoísmo e do Zen, quando se tomaram populares entre os jovens ocidentais. As¬sim, na verdade os taoistas contemplativos sentam-se em meditação, mas não com o propósito egoísta de se aperfeiçoarem. O que acontece é que, percebendo intuitivamente a inexistência de algum caminho a seguir, exceto o caminho do Tao, “divagam para dentro da¬quilo do qual não se pode escapar” (Chuang-tzu 6) e meditam pelo prazer da meditação – o fluxo da respiração; o som dos galos à distância, a luz no chão, o sussurrar do vento, a tranqüilidade e, infelizmente, to¬das aquelas coisas que os militantes ativistas do Ocidente e do Oriente, com sua determinação frenética, aprenderam a desdenhar. Este é o aspecto yin da vida taoista, e assim não exclui – quando se toma oportuno – o aspecto yang de deliciar-se com o vigor, por isso a – disciplina do t’ ai chi chuan de movimento corporal, fluindo e oscilando, é tão apreciada quanto sentar-se para meditar 17.

16- Chuang-tzu 6, Fung Yu-Ian (3), p. 113, modo auct.
17- É difícil imaginar um equivalente ocidental para o t’ai chi chuan. Parte dança, parte exercício físico e parte combate lento, ainda assim ele não é nada disso, mas, ao contrário, “O T’ai chi exemplifica o princípio mais sutil do Taoismo, conhecido como wu-wei… agir sem esforço – movimentar-se em harmonia com o fluxo da natureza… e é mais bem compreendido observando-se a dinâmica da água” (Huang [I], p. 2).

O crítico de Chuang-tzu, Ko Hung (-300), um taoísta Hsien, ressaltou a importância dada por Chuang-tzu à compreensão intuitiva do Tao, sem recorrer a ‘exercícios espirituais’ artificiais. Ko Hung denominou o caminho de Chuang-tzu como nada além de ‘pura conversação’ (ch’ing t’an), ou como poderiam chamar seus correlatos modernos, ‘mera intelectualização’ ou nada além de uma ‘viagem mental’. Chuang-tzu, escreveu ele, “afirma que vida e morte são exatamente a mesma coisa, classifica o esforço em preservar a vida como servidão laboriosa e exalta a morte como um descanso; tal doutrina está a milhões de quilômetros daquela do shen hsien [imortais sagrados]” 18.
18 – Creel (1. p.22)

O mais próximo que Chuang-tzu chegou de um esboço de método para atingir o Tao é colocado na boca de um sábio chamado Nü Chü, presumivelmente uma mulher:

Havia Pu Liang I, que possuía o gênio de um sábio, mas não o Tao. Eu tenho o Tao, mas não o gênio. Quis ensinar-lhe, a fim de que se tomasse um verdadeiro sábio. Ensinar o Tao de um sábio a um homem de gênio parece algo fácil. Mas não é, e continuei instruindo-o; depois de três dias, ele conseguiu desprezar todas as questões mundanas [isto é, ansiedades quanto à posição social ou sobre ganhos e perdas]. Depois de desprezar todas as questões mundanas, continuei instruindo-o; sete dias mais tarde, ele conseguiu desprezar todas as coisas externas [como sendo entidades separadas]. Depois de desprezar todas as coisas externas, continuei instruindo-o; nove dias mais tarde, ele conseguiu desprezar a própria existência [como um ego]. Depois de desprezar a própria existência, ele foi iluminado. Tornando-se iluminado, conseguiu perceber a visão do Um. Depois de ter esta visão do Um, então ele foi capaz de transcender a distinção entre passado e presente. Transcendida a distinção entre passado e presente, então ele conseguiu ingressar no reino onde vida e morte não existem. Enfim, para ele, a destruição da vida não significa¬va morte, nem o prolongamento da vida um acréscimo à duração de sua existência. Ele teria seguido qualquer coisa; teria recebido qualquer coisa. Para ele, tudo estava em destruição, tudo estava em construção. A isto chama-se tranqüilidade na desordem. Tranqüilidade na desordem significa perfeição 19. [70-69aJ .

Existe uma passagem semelhante em Lieh-tzu onde, contudo, os dias passam e chegam a anos, e o mestre nada diz, contando-nos como Lieh-tzu apren¬deu a cavalgar o vento, ou, como ele diria, a caminhar pelo ar.
Ao cabo de sete anos, houve outra mudança. Permiti que minha mente refletisse sobre o que seria, mas ela não se ocupava mais com o certo e o errado. Permiti que meus lábios pronunciassem o que quisessem, mas eles não falavam mais de perdas e ganhos… Ao cabo de nove anos, minha mente deu rédeas às suas reflexões, minha boca livre passagem a seu discurso. Sobre o certo e o errado, sobre perdas e ganhos, eu não tinha qualquer conhecimento, tocando a mim ou aos outros… Interno e externo fundiram-se na Unidade. Depois disso, não havia distinção entre olho e orelha, entre orelha e nariz, entre nariz e boca; tudo era a mesma coisa. Minha mente estava congelada, meu corpo em dissolução, pele e ossos fundidos. Eu estava inteiramente inconsciente de onde o meu corpo repousava, ou do que havia sob meus pés. Eu era mantido de um jeito e de outro pelo vento, como palha ou folhas secas caindo de uma árvore. Na verdade, não sabia se o vento estava me cavalgando ou eu ao vento 20.
19. Chuang-tzu 6, tr. Fung Yu-lan (3), pp. 119-20.
20. Lieh-tzu 2, tr. L. Giles (1), pp. 40-42.

Aparentemente, Lieh-tzu oferece metáforas físicas para estados psicológicos, e assim é que, montando o vento, a mente congelada e o corpo dissolvido devem ser compreendidos literalmente.
Estas passagens sugerem que wu-wei constitui um estado da consciência quase de sonho – flutuante – de forma que o mundo físico perde a dura realidade normalmente presente no senso comum.
Certa vez eu, Chuang-chou, sonhei que era uma borboleta, uma borboleta voando, divertindo-se. Eu não sabia que ela era Chuang-chou. De súbito, despertei e era novamente Chuang-chou. Mas não sei se sonhei que era uma borboleta ou se sou uma borboleta sonhando que sou Chuang-chou.21 [72b]

E novamente:
Como saber que amor à vida não é uma ilusão? Como saber que aquele que teme a morte não se assemelha ao homem que foi embora de casa quando jovem e não pretende voltar? … Como saber que os mortos não se arrependerão da antiga ansiedade pela vida? Aqueles que sonham com um banquete à noite talvez na manhã seguinte chorem e se lamentem. Aqueles que sonham com lamentos e choro talvez na manhã seguinte saiam para caçar. Quando sonham, não sabem que estão sonhando. No sonho, podem inclusive interpretar seus sonhos. Somente quando estão despertos é que começam a perceber que sonharam. Logo vem o grande despertar, e então descobriremos que a própria vida é um grande sonho. Durante todo este tempo, os tolos consideram-se despertos e pensam que sabem. Com belas discriminações, fazem distinções entre príncipes e cavalariços. Como são tolos! Confúcio e você, ambos estão sonhando. Quando afirmo que você está sonhando, também eu estou sonhando.22 [71a]

A sensação de que o mundo é um sonho, que também é encontrada no Hinduísmo e no Budismo, provém sobretudo da observação de sua transitoriedade e não de especulações a respeito do conhecimento e da verdade, da epistemologia e da ontologia, embora estes surjam posteriormente. Especialmente com o amadurecimento, torna-se cada vez mais evidente que as coisas não têm substância, pois o tempo aparentemente passa com mais rapidez, de tal forma que percebe-se a liquidez dos sólidos; pessoas e coisas transformam-se em luz e ondulações sobre a superfície da água. Podemos criar filmes acelerados sobre o crescimento de plantas e flores, nos quais estas parecem ir e vir como gestos da terra. Se pudéssemos filmar civilizações e cidades, montanhas e estrelas, da mesma maneira as veríamos como cristais congelados que se formam e se dissolvem, e como faíscas no fundo de uma lareira. Quanto mais rápido o movimento, mais parece que estamos observando não tanto uma sucessão de fatos, mas o movimento e as transformações de determinada coisa – como vemos ondas no oceano ou os movimentos de um dançarino. Da mesma maneira, o que num microscópio parece uma massa de protuberâncias plásticas cercada de espinhos, a olho nu é a pele fina de uma moça. Dito cruamente, o misticismo é a apreensão de que alguma coisa faz todo o resto. Os taoístas são mais sutis, de modo que o “fazer” não tem o sentido de uma coisa, o Tao, forçando ou compelindo outras.
21. Chuang-tzu 2 and fin., tr. Fung Yu-lan (3), p. 64, modo auct.
22. Chuang-tzu 2, tr. Fung Yu-lan (3), pp. 61-62.

De maneira geral, as filosofias do Ocidente moderno não aceitam bem esta visão sonhadora das coisas, talvez porque sintam que, se somos sonhos, não somos importantes, e se não somos importantes, não há necessidade de respeitar-nos uns aos outros. Todos já ouvimos o chavão de que na China a vida humana é barata. Naturalmente, porque lá ela é abundante; e nós mesmos estamos nos tornando endurecidos com a multiplicação da população, e os meios de comunicação nos habituam a estatísticas de carnificinas enormes. Contudo, ainda não foi demonstrada a necessária relação entre as visões metafísicas ou convicções religiosas das pessoas e seu comportamento moral. Pessoas importantes podem tornar-se demasiado importantes, e assim devem livrar-se de aborrecimentos; e devemos lembrar que as torturas e mortes na fogueira à época da Santa Inquisição foram cometidas com pro¬funda preocupação com o destino da alma imortal dos hereges.

Via de regra, parece que o sofrimento é a nossa medida da realidade; não sei se nos sonhos existe dor física dissociada de algum motivo fisiológico real. Assim, é conhecida a pilhéria de que aqueles que acreditam na irrealidade da matéria têm dificuldade para convencer os demais acerca da irrealidade da dor.
Havia um curador pela fé, que disse, “Embora a dor não seja real, quando a ponta de um alfinete penetra.minha pele, não gosto do que imagino sentir”.
Contudo, o corpo humano contém tanto espaço vazio que seus elementos ponderáveis poderiam ser condensados ao tamanho dessa mesma ponta de alfinete, pois sua aparente solidez é uma ilusão proveniente do movimento rápido de seus componentes atômicos como quando uma hélice girando parece tornar-se um disco impenetrável. Talvez a dor seja uma forma de “condicionamento”, pois sabemos que o tipo de condicionamento denominado hipnose pode constituir um anestésico extraordinário e seletivo.

Não obstante, tentemos imaginar um universo, um campo de experiência ou um campo de consciência, sem extremos que poderiam ser denominados dor ou horrores. Embora uma pessoa de sorte possa passar dias, meses e até anos nas circunstâncias mais confortáveis e satisfatórias, sempre existe a apreensão, a idéia guardada no mais recôndito da mente, de que alguma forma de dor é, no mínimo, possível. Ela está emboscada nas proximidades, e ele sabe que é uma pessoa de sorte, porque à sua volta existem os que sofrem. Toda experiência, toda consciência parece possuir espectros variados de vibrações tão ordenados que seus extremos, como o yin e o yang, de alguma manei¬ra têm de caminhar juntos. Se cortarmos um magneto ao meio, de forma a retirar seu pólo norte, descobriremos apenas que cada metade possui agora pólos norte e sul como antes. Assim, seria difícil imaginar um universo sem polaridades de prazer e dor. Em inúmeras sociedades, percorremos um longo trajeto buscando livrar-nos de monstruosidades tais como a tortura legal e, através de meios médicos, livrar-nos dos sofrimentos da enfermidade e da cirurgia. Contudo, novas ameaças parecem tomar o seu posto, e sempre existe o espectro da morte em segundo plano.
Portanto, se nos aprofundarmos na verdadeira natureza do sentimento, começaremos a perceber que não, queremos, e nem mesmo podemos querer, um universo sem esta polaridade. Em outras palavras, enquanto de¬sejamos a experiência denominada prazer, implicamos e, desta forma, geramos o seu oposto. Por conseguinte, os budistas e taoistas falam do sábio como aquele que não tem desejos, embora os taoistas também o caracterizem como aquele cuja “alegria e raiva ocorrem tão naturalmente quanto as quatro estações”, e aqui pode estar a chave do problema. Pois é possível não desejar? Tentar liberar-se do desejo sem dúvida é desejar não desejar 23.

23. Como naturalmente os budistas logo descobriram.

Em geral, não se compreende que o Budismo não seja uma doutrina, mas um diálogo que prossegue com uma série de experimentos. Buda não “ensinou” como alguma espécie de dogma, que a cura para o sofrimento reside na eliminação do desejo (trishna). Ele sugeriu simplesmente este experimento como inicial, o qual naturalmente levaria as pessoas (exatamente o que ele pretendia) a perceberem que elas estavam desejando não desejar, envolvidas assim num círculo vicioso.
Qualquer projeto de suprimir o desejo obviamente seria contrário ao espírito de wu-wei, implicando que “Eu” sou uma potência separada, a qual pode subjugar o desejo ou ser por ele subjuga¬do. O wu-wei consiste em fluir com as experiências e sentimentos à medida que vêm e vão, como uma bola num riacho de montanha, embora na verdade não exis¬ta bola separada dos revoluteios e coleios do próprio riacho. A isto se chama “fluir com o momento”, conquanto aconteça apenas quando se torna clara a inexistência de outra coisa a fazer, pois não existe experiência que não seja o agora. Este riacho-agora (nunc fluens) é o próprio Tao, e quando isso fica claro, inúmeros problemas desaparecem. Enquanto perdurar a noção de que somos algo diferente do Tao, todos os tipos de tensão surgem como entre “eu” de um lado e as “experiências” do outro. Nenhuma ação, nenhuma for¬ça (we i) conseguem liberar a tensão proveniente da dualidade daquele que conhece e o conhecimento, as¬sim como não se pode afastar a noite com um sopro. A luz, ou a compreensão intuitiva, dissipa sozinha a escuridão. Assim como ocorre com a bola no riacho, não há resistência para cima quando se sobe, nem resistência para baixo quando se desce. Resistir o dei¬xará mareado.
Um bêbado cai de uma carroça e, embora possa sofrer, não morre. Seus ossos são iguais aos das outras pessoas; mas ele enfrenta o acidente de maneira diferente. Sua mente encontra-se em estado de segurança. Não está consciente da sua presença sobre a carroça; nem tampouco da queda. Idéias de vida, de morte e de medo não podem penetrar-lhe o peito; assim, ele não sofre pelo contato com as existências objetivas. E se tal segurança é obtida por meio do vinho, quanto mais será obtida por meio da Espontaneidade.24 [67b]

Este é um dos deliciosos exageros de Chuang-tzu, que ele explica melhor em outra passagem, como quando estabelece a distinção entre wu-wei e manter-se no meio, no caminho do meio.
Mas o meio caminho entre o útil e o inútil, embora pudesse parecer um bom lugar, na verdade não o é ¬– você jamais conseguirá escapar do problema aí. Contudo, seria bem diferente se você subisse o Caminho e sua Virtude, e perambulasse e vagasse, nem cheio de louvores nem de imprecações, ora sendo um dragão, ora sendo uma serpente, mudando com o tempo, jamais propenso a manter um caminho único. Subindo ou descendo, conseguindo harmonia para a sua cadência, perambulando e vagando com o ancestral das dez mil coi¬sas, tratando-as como coisas, mas não permitindo que elas o tratem como tal – então como você poderia arranjar um problema?25 [60a]

Mais além neste capítulo, ele volta ao mesmo tema:
Ouçam o que digo! No caso do corpo, o melhor a fazer é deixá-Io seguir com as coisas. No caso das emoções, o melhor a fazer é deixá-Ias seguir segundo sua vontade. Acompanhando as coisas, você evita tornar-se separado delas. Deixando as emoções livres, você evita a fadiga.26 [60b]

Vale re-enfatizar o princípio de que “você” não pode prosseguir com as “coisas”, exceto se houver a compreensão de que, na verdade, não existe alternativa, já que você e as coisas são o mesmo processo – o Tao que flui agora. O sentimento de que existe uma diferença também é este processo. Nada se pode fazer quanto a isto.
25. Chuang-tzu 20, Ir. Watson (1), pp. 209-10.
26. Ibid., p. 216.

Existe apenas o riacho e suas convolações em miríades – ondas, bolhas, borrifos, redemoinhos e vórtices – e você é isto.

Talvez fosse preferível deixar assim – só que es¬sa declaração evoca, em muitas mentes, uma confusão de perguntas. Em vez de experimentar esse fluir-agora – o que tornaria tudo mais claro – elas querem todas as formas de garantias preliminares de que será seguro e vantajoso experimentar, e se essa compreensão “funciona” como uma filosofia de vida. É claro que sim, e de maneira bastante eficaz, mas se alguém a segue por este motivo, não a estará seguindo. Entretanto, se exis¬te a compreensão, o poder ou virtude do te surge espontaneamente ou, como dizem os cristãos, pela graça divina tão distinta da força de vontade. Ao perceber que somos o Tao, automaticamente a sua magia se manifesta – mas a magia, assim como a graça, é algo que ninguém deve exigir. Como afirma Lao-tzu a respeito do Tao, “Quando se realizam boas coisas, ele não as exige (nem lhes dá nome)”.

Do livro: TAO – O curso do rio de Alan Watts

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