Ensinamentos Zen de Huang Po – Parte 0

ENSINAMENTOS ZEN DE HUANG PO

 

Compilação e tradução: John Blofeld

Versão espanhola: Ricardo Crespo

  Versão: Flávio Capllonch Cardoso

  

 

INTRODUÇÃO

  John Blofeld (Chu Ch’an)

 

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O presente livro é uma tradução completa de Huang Po Ch’uan Hsin Fa Yao, texto budista chinês do sec. IX, grande parte do qual aparece agora em inglês pela primeira vez. Contém uma relação concisa dos sublimes ensinamentos do grande mestre da escola Dhyana, a qual, seguindo a prática corrente no mundo oriental, denominarei daqui em diante com o nome Zen. O Zen é considerado frequentemente como um desenvolvimento particular do budismo no Extremo Oriente. Os seguidores do Zen, no entanto, afirmam que sua doutrina é uma ramificação direta dos ensinamentos do próprio Buda Gautama. O presente texto, que é uma das principais obras do Zen, segue fielmente a doutrina proclamada no Sutra do Diamante, Vajrachedika Sutra ou a Joia da Sabedoria Transcendental, habilmente traduzida ao inglês por Arnold Price e publicada pela Sociedade Budista de Londres. Segue também estreitamente os ensinamentos do Sutra da Plataforma de Wei Lang – Hui Neng.     […]

 

 HUANG PO E O TERMO “A MENTE ÚNICA”

 

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O texto indica que Huang Po não estava de todo satisfeito com a escolha da palavra “Mente Única” para indicar a inexprimível realidade que se estende além do pensamento conceitual, pois, mais de uma vez explica que a Mente Única não é na realidade Mente; porém tinha que usar um termo ou outro, e o termo havia sido empregado freqüentemente por seus antecessores. Como Mente expressa intangibilidade, lhe pareceu sem dúvida uma boa escolha, especialmente porque o uso desse texto ajuda a clarear que a parte do homem usualmente considerada como entidade individual que habita o corpo não é de fato propriedade sua, mas é propriedade comum de todos e de tudo. (deve-se ter em conta que a palavra chinesa “hsin” não significa apenas “mente”, porém também “coração”; em resumo, denota o homem real, ou tido como tal). Se preferir substituir está idéia pela palavra “Absoluto”, o que Huang Po faz em certas ocasiões, se há de ter cuidado de não interpretar o texto com noções preconcebidas no que se refere à natureza do Absoluto. Deve-se clarear especificamente também que é evidente que a idéia de “Mente Única” é mesmo assim suscetível de má interpretação, a menos que se abandone toda idéia preconcebida, como preconiza Huang Po.

  […]

 

 

 

 (I) MEMÓRIA de CHÜN CHOU do MESTRE ZEN HUANG PO (TUAN CHI)

 COLEÇÃO DE SERMÕES E DIÁLOGOS POR P’EI HSIU DURANTE SUA ESTADIA NA CIDADE DE CHÜN CHOU

 

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1.    O Mestre me disse:

– Todos os Budas e todos os seres sencientes não são outra coisa senão a Mente Única, fora da qual nada existe. Esta Mente, que não tem princípio, é inata (não nasce) e indestrutível (não morre). Não tem cor nem forma ou aparência. Não pertence à categoria das coisas existentes ou não existentes nem podemos considera-la em termos de nova ou de velha. Não é comprida ou curta, nem pequena ou grande, uma vez que transcende todos os limites, medidas, nomes, vestígios e comparações. É o que vemos à nossa frente, se começarmos a raciocinar sobre ela imediatamente caímos em erro. É como o ilimitado vazio que não podemos sondar nem medir. Só a Mente Única é o Buda e não existe distinção entre o Buda e os seres sencientes, se estes não estiverem apegados às formas, e assim buscarem exteriormente as qualidades do Buda. Com a própria busca o perdem, pois isso é como empregar o Buda para buscar o Buda e empregar a Mente para encontrar a Mente. Embora nos empenhemos nisso durante eras inteiras, não lograremos alcançar nosso objetivo. Ignoramos que, se parássemos com nosso pensamento conceitual e esquecêssemos a nossa ansiedade, o Buda apareceria diante de nós, pois esta Mente é o Buda e os Budas são todos os seres existentes. Não existem rebaixamentos nem enaltecimentos por manifestarem-se como seres comuns ou como Budas.

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2. Com relação à prática dos paramitas1 é imenso o número de práticas semelhantes, o logro dos méritos deveria ser tão numeroso como as areias o rio Ganges, pois se somos fundamentalmente completos em todos os aspectos, não deveríamos tratar de suplementar tal perfeição com práticas tão insensatas. Quando se apresente a ocasião para isso, as coloquem em prática e quando a ocasião passar, permaneçam serenos. Se não estiverem completamente convencidos de que a Mente é o Buda e sentirem apego às formas, práticas e conquistas meritórias, seu modo de pensar será falso e completamente incompatível com o caminho. A Mente é o Buda e não existe nenhum outro Buda nem nenhuma outra MenteÉ luminosa e sem mácula como o vazio e não tem forma nem aparência alguma. Empregar a Mente no pensamento conceitual equivale a abandonar a substância e agarrar-se à forma. O Buda imortal não é um Buda da forma nem do apego. Praticar os seis paramitas e uma infinidade de práticas semelhantes, com o objetivo de realizarem um Buda por esses meios, é avançar por etapas; porém o Buda imortal não é um Buda de etapas. Despertem a Mente Única e não haverá nada mais para alcançar. Este é o Buda verdadeiro. O Buda e todos os seres sencientes são a Mente Única e nada mais.

1. Caridade, moralidade, paciência na aflição, fervorosa aplicação, correto controle da mente e a aplicação da mais alta sabedoria.

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3. A Mente é como o vazio, no qual não há confusão nem maldade. Assim, quando o Sol passa circundando e iluminando a Terra, o vazio não aumenta o brilho e quando o Sol se põe o vazio não escurece.  Os fenômenos da luminosidade e da escuridão alternam-se um com o outro, porém o vazio permanece inalterável. Tal acontece com a Mente do Buda e dos seres sencientes. Se considerarmos o Buda como apresentando uma aparência pura, esplendorosa ou iluminada, ou se por outro lado, considerarmos os seres sencientes como de aparência impura, tenebrosa e de aspecto mortal, tais concepções que resultam todas do apego à forma, lhes manterão afastados do conhecimento supremo, tantas eras como as areias existentes no rio Ganges. Somente existe a Mente Única e nem uma partícula de qualquer outra coisa para adicionar, pois esta Mente é o Buda. Se vocês estudantes do Caminho, não despertarem e perceberem a substância desta Mente, ocultarão a Mente com o pensamento conceitual, buscarão o Buda fora de vocês mesmos e permanecerão apegados às formas, às práticas piedosas e as demais distrações que são altamente prejudiciais, posto que não conduzem ao Conhecimento Supremo.

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4. Fazer oferendas a todos os Budas do Universo não se iguala a fazer oferendas ao adepto seguidor do Caminho, que eliminou o pensamento conceitual. Por quê? Porque tal adepto não forma nenhuma espécie de conceitos. A substância do Absoluto está no interior da madeira ou da pedra que carece de movimento; e no exterior, como o vazio, onde não há limites nem obstruções. Não é subjetiva nem objetiva, carece de localização específica, não possui forma e não pode desvanecer-se. Aqueles que se dirigem apressadamente para ela não ousam penetrá-la por temor de precipitarem-se no vazio, sem nada a que se agarrar nem algum meio de conter sua queda. Assim é que aproximam-se da borda e retrocedem. Isto se refere aos que esperam encontrar a meta por meio do conhecimento. Então, aqueles que buscam a meta por meio do conhecimento são como os pelos, (muitos) que mudam; enquanto os que buscam mediante a intuição, são como os chifres, (poucos) fixos e permanentes1.

1. Compare-se está afirmação com o que disse o mestre Suzuki: “O que se conhece como mente no raciocínio discursivo é não-mente, embora sem esta Mente não se pode alcançá-la”.

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5. Manjushri representa a sabedoria, e Samantabhadra, a vacuidade. Pelo primeiro se expressa a sabedoria inextinguível além da esfera da forma, e pelo segundo se dá a entender a lei do vazio verdadeiro e ilimitado. Avalokitesvara representa a compaixão sem limites. Mahastama, a magna sabedoria e Vimalakirti, o nome sem mácula. Sem mácula se refere à verdadeira natureza das coisas, enquanto nome significa forma. Mas a forma é realmente una com a Verdadeira natureza; daí o termo combinado “nome sem mácula” 1. Todas as qualidades simbolizadas pelos grandes Bodisatvas, são inerentes ao homem e não as devemos considerar separadas da Mente Única. Desperte esta consciência e ela estará aqui. Vocês estudantes do caminho que não a despertaram em suas mentes mesmas, e que estão apegados às aparências e que procuram buscar algo objetivo fora de suas próprias mentes, terão dado as costas ao caminho. As areias do Ganges! Buda disse destas areias:

 “Quando todos os Budas e Bodisatvas, inclusive Indra e todos os deuses passeiam por elas, as areias não se regozijam; e se bois, ovelhas, répteis e insetos as pisam ou se arrastam por elas, as areias não sentem nojo. De perfumes nem jóias tem desejos, nem lhes causam asco a hedionda sujeira do esterco nem da urina”.

1. O zen ensina que, embora o mundo fenomenal baseado na experiência sensorial tenha somente uma existência relativa, é errôneo vê-lo como algo separado da Mente Única. Assim a Mente Única é compreendida erroneamente. Como diz o Prajna Paramita Hridaya Sutra: “A forma não é diferente do vazio, e o vazio da forma; a forma é vazio e o vazio é forma”.  

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6. Esta Mente é também a mente do pensamento conceitual e não está completamente desligada da forma. De maneira que os Budas e os seres sencientes não diferem em nada. Contanto que nos desembaracemos do pensamento conceitual, realizaremos tudo quanto existe a realizar. Porém se vocês, estudantes do caminho, não conseguirem livrar-se do mais leve pensamento conceitual, embora tenham se esforçado durante kalpas e kalpas, jamais alcançarão seus propósitos. Enredados nas práticas meritórias dos Três Veículos, lhes será impossível realizar a Iluminação. Não obstante, o reconhecimento da Mente Única poderá ser realizado após um período maior ou menor. Algumas pessoas tão logo ouvem estes ensinamentos, livram-se do pensamento conceitual como um relâmpago. Existem outros que obtêm o mesmo resultado logo após ter seguido as Dez Crenças, as Dez Etapas, as Dez Atividades e as Dez Doações de Mérito. E ainda outros obtêm este resultado após passarem pelas Dez Etapas de Progresso do Bodisatva 1. Porém, tão logo vocês transcendam o pensamento conceitual a realizam em um período breve, não sendo necessário um processo gradual e prolongado. O resultado é um estado de SER: não são necessárias práticas piedosas nem ações a realizar. Dizer que não há nada a alcançar não são palavras vans; é a pura verdade. Além disso, o resultado de seus propósitos realizados em um instante será o mesmo do que seriam necessários seguindo as Dez Etapas do Progresso do Bodisatva, pois este estado de ser não admite graus, de modo que o procedimento gradual implica kalpas de sofrimentos desnecessários.

1. Essas categorias são todas partes da doutrina como ensinam outras escolas, embora possam ser úteis para preparar o terreno, a mente deve dar um salto, indo além de um processo gradual.

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7. No contexto dos ensinamentos a acumulação do bem e do mal implicam apego à forma 1. Aqueles que apegados à forma, cometerem más ações, terão de passar desnecessariamente por várias encarnações; aqueles que, apegados à forma, praticam o bem, obrigam-se a si mesmos a sofrer fadigas e privações, também sem necessidade alguma. Tanto em um como no outro caso é melhor obter uma iniciação instantânea do próprio ser e compreender o Dharma fundamental. Este Dharma é a Mente, além da qual não existe Dharma; e esta Mente é o Dharma, além da qual não existe mente. A Mente em si mesma não é a mente, tampouco é a não-mente. Dizer que Mente é não-mente implica algo existente 2. Permita-nos que haja um tácito acordo e nada mais. Fora com todo pensar e com todas as explicações! Então podemos dizer que o caminho das palavras foi cortado e a agitação da mente eliminada. Esta Mente é o puro Buda original inerente a todos os homens. Todos os seres semoventes na posse de vida senciente, e todos os Budas e Bodisatvas são da mesma substância sem diferença alguma. As diferenças são produzidas somente com o pensar errôneo e conduzem a criação de todos os gêneros de carmas.

1. Segundo o zen, seus seguidores devem executar atos virtuosos, porém não com a finalidade de acumular méritos nem como meios de chegar à Iluminação. O ator deverá permanecer perfeitamente desligado dos atos e de seus resultados. O mérito, não obstante ser excelente em si mesmo, nada tem a ver com a iluminação.

2. Em outras palavras, Mente é um termo arbitrário para algo que não pode expressar-se apropriadamente por palavras.

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8. A ‘nossa’ natureza búdica original é, em inequívoca verdade, carente de um átomo sequer de objetividade. É vazia, onipresente, silente e pura; é gozo tranqüilo, excelso e misterioso, isso é tudo. Penetrem profundamente nela despertando ‘sua própria’ natureza. (que também existe em tudo). Isto é o que existe diante de você em toda sua plenitude, totalmente integra. Nada há que não seja ela. Ainda quando siga todas as etapas do progresso dos Bodisatvas, uma por uma, quando ao final, em um supremo instante veja a realidade completa, não terá feito outra coisa que se dar conta da Natureza Búdica, que jamais deixou de estar com você; e com todas as etapas passadas não terá adicionado absolutamente nada. Ao final não considerará esses kalpas de logro e de esforço, senão como ações realizadas em um sonho. Por isso o Tathagata disse: – “Verdadeiramente nada alcancei com a total e insuperável Iluminação. Se tivesse alcançado algo, o Buda Dipamkara não teria feito a profecia sobre mim”.

Também disse: – “Esse Dharma carece em absoluto de distinções e de graus superiores e inferiores, e seu nome é Bodhi. É a mente pura, que é a origem de todas as coisas e que, tanto se aparece na forma de seres sencientes como na de Budas, como na dos rios e na das montanhas do mundo das formas, como também no que carece de forma interpenetrando o Universo inteiro. Também carece absolutamente de distinções, posto que em seu reino não existem entidades tais como o egoísmo e o altruísmo”.

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9. Esta Mente pura, origem de todas as coisas, brilha perpetuamente sobre tudo quanto existe, com o resplendor de sua própria perfeição. Porém aqueles que vivem no mundo não despertam para sua luz, cuidando como cuidam tão somente do que vêem, do que ouvem, do que sentem e do que conhecem com a mente. Cegos pela sua própria visão, surdos por seu próprio ouvir, insensíveis por seu próprio sentir, e ignorantes por seu próprio pensar, não percebem o brilho da substância original. Se tão somente eliminassem num súbito relâmpago todo pensamento conceitual, se manifestaria essa substância original como o sol ascende no vazio e que ilumina o universo inteiro sem obstáculos nem limitações. Portanto, se vocês, estudantes do caminho, tratassem de progredir mediante a visão, o olfato, a audição, o tato, o sentimento, o conhecimento, quando se virem privados de suas percepções, seus caminhos para a Mente seriam interceptados e não encontrariam meios de entrar. Compreendam claramente que, embora a Mente verdadeira se expresse nestas percepções, nem toma parte delas, nem está separado delas. Não devem começar a raciocinar sobre essas percepções nem permitir que dêem lugar a pensamentos conceituais; e, no entanto não deveriam tampouco buscar a Mente Única separada delas, nem abandona-las na busca do Dharma. Acima, abaixo e ao redor de vocês, tudo existe espontaneamente, pois não há lugar algum onde não exista a Mente Única.

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10. Quando as pessoas do mundo ouvem dizer que os Budas transmitem a Doutrina da Mente, imaginam que existe algo a alcançar ou compreender além da Mente e, portanto, utilizam a Mente para buscar o Dharma, sem compreender que a Mente e o objeto de sua busca são um e o mesmo. Não se pode utilizar a Mente para buscar algo da Mente; pois, então, após passar milhões de kalpas, o dia do êxito não terá ainda amanhecido. Tal método não é comparável com a repentina eliminação do pensamento conceitual, que constitui o Dharma fundamental. Imagine um guerreiro que, esquecendo que já leva sua pérola na testa, fosse buscá-la em algum outro lugar. Certamente não a encontraria embora viajasse por toda a Terra. Porém se outra pessoa, compreendendo a situação, viesse a lhe indicar onde esta, o guerreiro a encontraria imediatamente e compreenderia que a pérola estivera constantemente ali. Assim é que se vocês, estudantes do Caminho, por se enganarem sobre ‘sua’ própria Mente verdadeira, ao não reconhecerem que são Budas, a buscassem consequentemente em algum outro lugar, entregando-se a várias façanhas e práticas, esperando obter seu objetivo por tais práticas graduais. Porém, mesmo depois de kalpas de busca diligente, não lhes será possível encontrar o Caminho. Estes métodos não podem ser comparados com a eliminação instantânea do pensamento conceitual, na certeza de que não há nada que tenha existência absoluta, nada que nos ofereça um apoio, nada em que possamos confiar nada que nos dê refúgio, nada subjetivo ou objetivo. Evitando qualquer causa que dê espaço à produção do pensamento conceitual, será assim que encontrarão Bodhi; e quando a encontrarem, não terão feito outra coisa que encontrar o Buda, que sempre existiu em sua própria Mente. Os kalpas de laboriosos esforços parecerão como outros tantos kalpas de empenhos malogrados; tal como aconteceu ao guerreiro do exemplo, quando encontrou sua pérola e compreendeu que a matinha sempre pendurada na sua testa; e do mesmo modo seu achado não tinha nada a ver com seus esforços para descobri-la em algum outro lugar. Por essa razão o Buda disse:

 “-Na realidade nada alcancei com a completa e insuperável Iluminação”.

Por temor de que as pessoas não lhe acreditassem, explicou o que se vê com as cinco modalidades de visão e o que se diz com os cinco gêneros de fala. Assim, pois esta citação não é uma frase vã, porém que expressa a mais elevada verdade.

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11. Os estudantes do Caminho deveriam estar certos de que os quatro elementos constitutivos do corpo não constituem o “eu”; de que o “eu” não é uma entidade; e que disto podemos deduzir que o corpo não é o “eu” nem tampouco uma entidade. Além disso, os cinco agregados que compõe corpo e mente, não constituem um “eu” nem entidade alguma; disso podemos deduzir que corpo/mente [chamado indivíduo] não é nem um “eu”, nem uma entidade. Os seis órgãos dos sentidos [inclusive a mente], que juntamente com os seis tipos de percepção e os seis tipos de objetos da percepção constituem o mundo sensório, devem entender-se da mesma maneira. Esses dezoito aspectos dos sentidos são vazios, tanto separada como conjuntamente. Somente existe a Origem Mental, de ilimitada extensão e absoluta pureza.

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12. Assim, pois existe a comida sensual e a comida sábia. Quando o corpo composto por elementos sente o aguilhão da fome consequentemente lhes damos alimentos, porém sem gula, isto é o que se chama comida sábia. Por outro lado, se gozarmos glutonamente na pureza e sabor, daremos apoio às distinções que são produzidas como consequência do pensamento errôneo. Tratar meramente de gratificar o órgão do paladar sem nos darmos conta que já basta o quanto comemos, se denomina comida sensual.

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13. Os Sravakas 1 procuram alcançam a iluminação ouvindo o Dharma, por isso se chamam Sravakas. Os Sravakas não conseguem compreender sua própria mente, portanto permitem que se formem conceitos originados ao escutar a doutrina. Tanto se ouvem mencionar a existência de Bodhi e do Nirvana mediante poderes paranormais, ou por sua boa sorte, ou na predicação, alcançarão a qualidade búdica depois de três kalpas de duração infinitamente longa. Tudo isso é o que corresponde à modalidade dos Sravakas, por esta razão são chamados budas Sravakas. Porém despertar repentinamente para o fato de que a própria Mente é o Buda, de que não há nada a alcançar nem ação alguma a executar, este é o Caminho Supremo; isto é realmente ser como Buda; somente temo que vocês estudantes do Caminho, por trazerem à existência um só pensamento, poderão talvez criar uma barreira que os separem do Caminho. De pensamento após pensamento, de instante após instante, nenhuma FORMA; De pensamento após pensamento, instante após instante, nenhuma ATIVIDADE; eis aqui o que é ser um Buda. Se vocês estudantes do Caminho desejam ser Budas, não necessitam estudar doutrina alguma, mas aprender somente a evitar a busca de algo e o apego a qualquer coisa que seja. Não buscar coisa alguma implica Mente Inata [Não-nascida]; não apegar-se a nada implica Mente sem destruição; e o que não nasceu nem será destruído é o Buda. Os oitenta e quatro mil métodos de confrontar as oitenta e quatro mil formas de ilusão, são apenas figuras de retórica para atrair as pessoas à Entrada. Na realidade nenhum deles tem existência real. Desprendimento de todos os objetos é o Dharma e quem compreende isso é um Buda; porém o abandono de TODAS as ilusões não nos deixa Dharma algum em que apoiar-nos.

1. Os seguidores do hinayana.

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14. Se vocês, estudantes do Caminho desejam conhecimento deste grande mistério, não façam senão evitar apego a todas as coisas além da mente. Dizer que o verdadeiro Dharmakaya do Buda é semelhante ao Vazio, não é senão dizer que o Dharmakaya é o Vazio e que o Vazio é o Dharmakaya. As pessoas sustentam frequentemente que o Dharmakaya está no Vazio e que o Vazio contém o Dharmakaya sem compreender que são idênticos. Porém se definirmos o vazio como algo que existe, então não é o Dharmakaya; e se definimos o Dharmakaya como algo que existe, então não é o Vazio. Evitem qualquer concepção objetiva do Vazio e então isso ‘é’ o Dharmakaya; e somente ao evitar qualquer concepção objetiva do Dharmakaya, então eis aí o que é o Vazio. Um não difere do outro, nem existe diferença alguma entre os seres sencientes e os Budas, nem entre samsara e nirvana, nem entre ilusão e Bodhi. Quando todas as formas forem abandonadas, surge o Buda. As pessoas comuns prestam atenção ao que as rodeia, enquanto aqueles que seguem o Caminho prestam atenção à Mente; porém o Dharma verdadeiro consiste em esquecer tanto um como o outro. O primeiro é bastante fácil; o segundo, muito difícil. O homem tem medo de esquecer sua mente por temor de cair no Vazio sem nada que contenha sua queda. Não sabe que o Vazio não está totalmente vazio, mas que é o reino do verdadeiro Dharma. Esta natureza espiritualmente clara não tem princípio, é tão antiga como o vazio, não está sujeita a nascimento nem a destruição, não é existente nem não existente, nem é pura nem impura, não é gritante nem calada, nem jovem nem velha, não ocupa espaço algum, não tem interior nem exterior, nem tamanho nem forma, cor nem som. Não a podemos buscar, é incompreensível para a sabedoria e para o conhecimento, não podemos explica-la com palavras, tocá-la materialmente, nem alcançá-la por atos meritórios. Todos os Budas e Bodisatvas juntamente com todos os seres que se agitam possuídos pela vida, são participes desta magna natureza nirvânica. Tal natureza é a Mente; a mente é Buda e o Buda é o Dharma. Qualquer pensamento que difira desta verdade é completamente um pensamento errôneo. Não podemos usar a Mente para buscar a Mente, nem o Buda para buscar o Buda, nem o Dharma para buscar o Dharma. Assim, pois vocês estudantes do Caminho deveriam refrear imediatamente seus pensamentos conceituais. Que prevaleça somente uma tácita compreensão! Todo processo mental deve necessariamente conduzir ao erro. Não existe mais do que uma transmissão de Mente a Mente. Tal é o critério pertinente. Cuidem de não prestar atenção ao meio material circundante. Aqueles que confundem tal meio com a Mente podem equiparar-se ao homem que tomou um ladrão por seu filho 1.

1. Existe um relato de um homem que tomou um ladrão por seu filho perdido por longo tempo e dispensou uma calorosa acolhida, o que facilitou a ele escapar com quase todos os pertences do homem. Aqueles que põem sua confiança em coisas materiais encontram-se em perigo de perder o mais valioso de seus bens: a chave do enigma da vida que serve para abrir a porta do Nirvana.  

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15. É tão somente por contraposição ao apego, à raiva e à ignorância que existem a abstinência, a calma e a sabedoria. Sem ilusão, como existiria a Iluminação? Por esta razão Bodhidharma disse: “O Buda enunciou todos os Dharmas a fim de eliminar qualquer vestígio de pensamento conceitual. Se me abstiver completamente de dar lugar ao pensamento conceitual, de que me serviriam todos os Dharmas?”

Não se apeguem a nada que não seja a pura natureza búdica, que é a fonte original de todas as coisas. Suponham que fossem adornar o vazio com inumeráveis joias, como permaneceriam na devida posição? A natureza búdica é semelhante ao Vazio; embora a adornem com inestimáveis méritos e sabedoria, como permaneceriam na devida posição? Somente serviriam para ocultar sua natureza original e torná-la invisível.

A chamada Doutrina das Origens Mentais (seguida por outras escolas) postula que todas as coisas se formam na Mente e que se manifestam ao entrar em contato com o ambiente externo, deixando de manifestar-se quando o ambiente cessa de estar presente. Porém é errado conceber um ambiente separado da pura e constante natureza de todas as coisas.

O que chamamos de Espelho da Concentração e Sabedoria requer o uso da visão, do ouvido, do tato, do paladar e do entendimento, o que conduz a estados sucessivos de calma e agitação. Porém estes estados implicam concepções baseadas em objetos do ambiente; são expedientes passageiros correspondentes a uma das categorias inferiores das “raízes da bondade1”. E esta categoria de “raízes da bondade” meramente habilita às pessoas para compreender o que lhes dizemos. Se vocês quiserem ter a experiência da Iluminação, não devem se deixar levar por tais concepções. Todas são apenas dharmas do ambiente que se referem ao que é e ao que não-é, baseados na existência e na inexistência. Somente evitando os conceitos de existência e inexistência referentes absolutamente a tudo, então vocês se darão conta do DHARMA.

1. Alguns seguidores do mahayana acreditam que as raízes da bondade são “potenciais da Iluminação” de diferentes graus de força, que os indivíduos renascem de acordo com os vários méritos que tenham acumulado em vidas anteriores.

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16. No primeiro dia da nona lua, o mestre me disse: “Desde que o grande Mestre Bodhidharma chegou à China, falou somente da Mente Única e transmitiu somente um Dharma. Usou o Buda para transmitir o Buda, sem nunca falar de algum outro Buda. Empregou o Dharma para transmitir o Dharma, sem jamais falar de nenhum outro Dharma. Tal Dharma é o Dharma Inefável, e o tal Buda é o Buda Intangível, já que na realidade é a Mente Pura, origem de todas as coisas. Esta é a única verdade; tudo o mais é falso. Prajna é Sabedoria; Sabedoria é a informe Mente Primordial original. As pessoas comuns não buscam o Caminho, mas meramente procuram gratificar os seis sentidos, o que conduz ao regresso aos seis sentidos da existência. O estudante do Caminho que permite abrigar um só pensamento samsárico, cai entre os demônios. Se permitirmos um só pensamento que conduz à percepção da desigualdade, cometemos uma heresia. Sustentar que existe algo nascido e tratar de eliminá-lo, é cair entre os Sravakas. Manter que algo não nasceu porém que é susceptível de destruição é cair entre os Pratyekas. Nada nasce, nada se destrói. Joguem fora seu dualismo! Abandonem seus gosto e não gosto! Cada coisa que existe não é senão a Mente Única. Quando tiverem tomado consciência disso, tomarão assento na Carruagem dos Budas.

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17.  Todas as pessoas comuns entregam-se habitualmente ao pensamento conceitual baseado nos fenômenos circunstanciais, o que origina desejo e aversão. Para eliminar os fenômenos circunstanciais coloque um fim no pensamento conceitual. Quando ele cessa, os fenômenos circunstanciais mostram-se vazios; e quando estes se esvaziam, o pensamento cessa. Porém se tentamos eliminar o ambiente que dá origem aos fenômenos circundantes sem por fim ao pensamento conceitual, não conseguirão; pior, acrescentarão mais poder para perturbá-los. Portanto, todas as coisas não são senão a Mente; a Mente Intangível. E, sendo assim, o que poderão obter? Os estudantes de Prajna (Sabedoria) mantêm que não existe coisa alguma tangível, logo deixam de pensar nos Três Veículos. Existe somente uma Realidade que não é para se conquistar nem para se obter. Dizer “eu sou capaz de conquistar ou eu posso obter algo” é situar-se entre os arrogantes. Os homens que sacudiram seu manto e abandonaram a reunião, segundo mencionado no Sutra do Lótus, pertenciam a essa classe de indivíduos. Foi por isso que Buda disse: “Na verdade nada obtive com a Iluminação”. Produziu-se uma compreensão misteriosa e tácita, e nada mais.

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18. Se o homem comum, quando próximo da morte, pudesse ver os cincos elementos, (os 5 scandas) como vacuidade, que estes cinco elementos não constituem uma entidade, um “eu”; e a Mente verdadeira sem forma nem situação, nem daqui nem de mais além; sua natureza como algo que não começa ao nascer nem termina ao morrer, mas como totalidade e imobilidade em toda sua profundidade; ‘sua’ Mente e os objetos do ambiente como Unidade; se for possível realmente perceber isso, instantaneamente realizaria a Iluminação. Não ficaria enredado no Mundo Triplo; teria transcendido o mundo. Não teria a mais leve tendência de nascer de novo. Mesmo se tivesse a visão gloriosa de todos os Budas que viriam dar-lhe as boas-vindas rodeadas de todas as espécies de manifestações portentosas, não sentiria desejo algum de reunir-se a eles. Se fosse rodeado por toda classe de formas horrendas, não experimentaria terror algum. Permaneceria em si mesmo, indiferente a qualquer pensamento conceitual, unificado com o Absoluto. Alcançaria o estado de ser incondicionado. Este é, pois, o princípio fundamental.

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19. No oitavo dia da décima lua, disse-me o mestre: “O que se chama Cidade da Ilusão contém os Dois Veículos, as Dez Etapas do Progresso dos Bodisatvas e as duas formas da Completa Iluminação. Tudo isso constitui um poderoso ensinamento para estimular o interesse das pessoas; todavia, isso faz parte da Cidade da Ilusão 1”. O que se chama o Lugar das Preciosidades é a Mente Verdadeira, a Essência Búdica original, o tesouro da ‘nossa’ Natureza ‘própria’ e Verdadeira. Estas jóias não podem ser avaliadas nem acumuladas. Mas, posto que não existem nem Budas nem seres sencientes, nem sujeito nem objeto,  onde poderemos encontrar o lugar das Preciosidades? Se perguntarmos, muito se poderá dizer da Cidade da Ilusão; porém, onde está o lugar das Preciosidades? É um lugar para o qual não se pode dar instrução alguma; pois, se pudéssemos assinalar sua direção, existiria no espaço; logo não poderia ser o lugar verdadeiro das Preciosidades. Tudo o que podemos indicar é que está muito próximo. Não é possível descrevê-lo exatamente; porém quando tenham uma compreensão tácita de sua substância, ali vocês verão claramente que é a Mente Verdadeira.

1. A Cidade da Ilusão é um termo tomado do Sutra do Lótus e aqui implica um temporal ou incompleto Nirvana. Do ponto de vista Zen, é provável que todos os ensinamentos das muitas escolas baseadas na crença da Iluminação gradual, conduzam seus seguidores à Cidade da Ilusão, porque todas elas parecem seguir uma ou outra forma de dualismo.

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20. Icchantikas são os que têm crenças incompletas. Todos os seres que habitam nos seis reinos da existência inclusive os adeptos do Mahayana e do Hinayana, se não acreditam em sua qualidade búdica potencial, são chamados, portanto de icchantikas com raízes de bondade cerceadas. Os Bodhisatvas que crêem firmemente no Dharma búdico sem aceitar a divisão em Mahayana e Hinayana, porém não compreendem a Natureza única dos Budas e seres sencientes são, portanto chamados icchantikas com raízes de bondade. Aqueles que recebem a Iluminação por haverem ouvido falar da doutrina, denominam-se Sravakas (ouvintes). Os que recebem a Iluminação mediante a percepção da lei do Carma, são denominados pratiekabudas. Os que chegam a Budas, porém porque a Iluminação não aconteceu em sua própria mente, são chamados budas ouvintes. A maior parte dos estudantes do Caminho, recebem a Iluminação por ter ouvido o Dharma que é ensinado por palavras e não pelo Dharma da Mente. Mesmo após sucessivos kalpas de esforços ainda não se colocaram em harmonia com a Essência búdica original. Aqueles que não foram Iluminados do interior da própria Mente, mas escutando o Dharma que é ensinado por palavras, não dão muita importância à Mente e atribuem grande importância à doutrina, e assim avançam passo a passo, descuidando da Mente Original. De modo que, se tiverem somente uma compreensão tácita da mente, não necessitarão investigar o Dharma, pois, em tal caso a Mente é o Dharma.

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21.  As pessoas, para perceberem a Mente frequentemente se vêem perturbadas pelos fenômenos circunstanciais e pelos acontecimentos, para perceberem os princípios fundamentais, de maneira que com frequência procuram escapar dos fenômenos circunstanciais com a finalidade de aquietar sua mentalidade particular ou, de outro modo, obscurecer os fatos com o objetivo de se manterem unidos com os princípios. Não se dão conta de que isto é meramente tentar obscurecer os fenômenos com a mente e os acontecimentos com os princípios. Deixem que suas mentes permaneçam vazias e os fenômenos circunstanciais se esvaziarão por si mesmos; permitam que os princípios deixem de se agitar por si mesmos. Nunca usem suas mentes de maneira tão pervertida.

Muita gente tem medo de esvaziar sua mente por temor de cair no vazio. Não compreendem que suas próprias mentes são vazias. Em sua ignorância evitam os fenômenos, porém não os pensamentos; os sábios evitam os pensamentos, mas não os fenômenos.

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22.  A mente do Bodhisatva é semelhante ao vazio, uma vez que renuncia a tudo e não deseja sequer acumular méritos. Existem três espécies de renúncia. A que se verifica quando abandonamos tudo, tanto externamente quanto internamente; tanto corporal quanto mentalmente; quando, como acontece no Vazio, não fica apego algum; quando toda ação é ditada puramente pelo lugar e as circunstâncias em que nos encontramos; quando a subjetividade e a objetividade são esquecidas; esta é a forma de renúncia mais elevada.  Quando, por um lado, seguimos o Caminho com a prática de atos virtuosos, enquanto por outro lado existe a renúncia dos méritos e não abrigamos esperança de recompensa: esta é a forma de renúncia média. Quando realizamos todas as espécies de ações virtuosas com esperança de recompensa: esta é a forma de renúncia mais baixa. A primeira é como uma tocha flamejante, sustentada diante do Caminho o que torna impossível equivocar-nos de rumo; a segunda é como uma tocha sustentada lateralmente, de forma que algumas vezes ilumina e às vezes escurece; a terceira é como uma tocha mantida às costas de modo que não permite ver os obstáculos a frente do caminho.

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23. Assim, pois a mente do Bodhisatva que renuncia a tudo é semelhante ao Vazio. Não se agarrar aos pensamentos do passado é o que se chama renúncia do passado. Não se apegar aos pensamentos do presente é o que se chama renúncia do presente. Não se apegar aos pensamentos do futuro é o que se chama renúncia do futuro. Tudo isso é o que se chama renúncia completa do Tempo Triplo.  Desde que o Tathagata confiou à Kasyapa o Dharma até agora, a Mente foi transmitida pela Mente e tanto uma como a outra sempre foram a mesma. A transmissão do Vazio não pode se verificar com palavras. Uma transmissão em termos concretos não pode ser o Dharma. Assim, pois a Mente é transmitida pela Mente, e estas mentes não diferem de modo algum. Transmitir e receber a transmissão são ambos um gênero dificilíssimo de misteriosa compreensão, de modo que são muito poucos aqueles que foram capazes de lográ-la. No entanto, de fato a Mente não é a Mente e a transmissão não é realmente a transmissão 1.

1. Isto é só uma lembrança de que todos os termos usados no Zen são meros expedientes.

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24. Um Buda possui três corpos: o Dharmakaya, através do qual se entende o Dharma da onipresente vacuidade da real natureza de todas as coisas que não existem por si mesmas1; o Sambhogakaya, através do qual se dá a entender o Dharma da pureza universal subjacente à todas as coisas2; e o Nirmanakaya, através do qual entende-se os Dharmas das seis práticas que conduzem ao nirvana e de todas as outras classes de recursos semelhantes. O Dharma do Dharmakaya não se encontra na palavra falada nem na palavra ouvida nem na palavra escrita. Nada há nele que possa ser expresso ou mostrado como evidente; nada senão a vacuidade onipresente da real natureza de todas as coisas que não existem por si mesmas; nada mais. Por conseguinte, dizer que não existe Dharma para explicar com palavras, é explicar o Dharma. Tanto o Sambhogakaya como o Nirmanakaya referem-se a circunstancias particulares mediante aparências adequadas. Os Dharmas falados que se referem aos acontecimentos por meio dos sentidos em toda espécie de formas, nenhum deles são o Dharma verdadeiro. Por conseguinte se diz que o Sambhogakaya e o Nirmanakaya não são o Buda nem o predicador do Dharma verdadeiro3.

1. Que não existem por si mesmas, são vazias de substância própria.

2. A luminosidade, consciência pura.

3. Os três corpos são inseparáveis, nenhum deles tomado separadamente pode ser considerado o Buda verdadeiro.

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25. O termo unidade faz referencia a um brilho espiritual homogêneo que é constituído por seis “elementos” harmoniosamente congregados. O brilho espiritual homogêneo é a Mente Única, enquanto os “elementos” harmoniosamente congregados são os órgãos dos seis sentidos. Estes órgãos dos seis sentidos se unem distintamente com os objetos que podem ser adulterados: olho com a forma, o ouvido com o som, o olfato com o odor, a língua com o sabor, o corpo com o tato e a mente pensante com os pensamentos e emoções. Entre estes órgãos e seus objetos são produzidas as seis percepções sensoriais1, criando assim dezoitos conjuntos sensoriais no total. Se compreendermos que esses dezoito conjuntos não tem existência objetiva, se unirão aos seis “elementos” harmoniosamente unificados em um só brilho espiritual, que é a Mente Única. Todos os estudantes do Caminho sabem isto; porém não podem evitar a formação dos conceitos2. Conseqüentemente, encontram-se encadeados a entidades e malogram a tácita compreensão da Mente Original.

1. Elas podem ser adulteradas dependendo da nossa visão cármica – os nossos condicionamentos.

2. Esses conceitos e preconceitos são formados por nossos condicionamentos, marcas cármicas (depositados no Alayavijnana), e até mesmo pelo código genético, uma herança dos nossos antepassados.

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26. Quando o Tathagata manifestou-se no mundo, desejava ensinar um só Veículo da Verdade. Entretanto, as pessoas não acreditariam nele, e ao ridicularizá-lo, se veriam imersos em um mar de aflições (samsara). Por outro lado, se não houvesse dito nada teria sido egoísta e não poderia ter difundido o conhecimento do misterioso Caminho para proveito dos seres sencientes. Assim, pois adotou o recurso de predicar a existência dos Três Veículos. No entanto, assim como esses Veículos são relativamente maiores ou menores, existem ensinamentos verdadeiramente superficiais e ensinamentos profundos, mas nenhum deles é o Dharma original. Assim, dizemos que existe somente UM Caminho Único. Se houvesse mais de um, não poderiam ser verdadeiros. Além disso, não há absolutamente meio algum de descrever o Dharma da Mente Única. Portanto, o Tathagata chamou Kasyapa para que viesse sentar-se com ele particularmente no Assento da Proclamação do Dharma, confiando-lhe até o Ensinamento Inefável da Mente Única. Este Dharma isento de ramificações pratica-se separadamente e quem for tacitamente iluminado por ele alcançará o estado búdico 1.

1. Huang Po está certamente falando da experiência direta da Mente Única.

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27. P: O que é o Caminho e como segui-lo?

R: Que espécie de coisa se parece o Caminho para quem quer segui-lo?

P: Que instruções deram os mestres de todos os lugares para a prática de dhyana e o estudo do Dharma?

R: As palavras usadas para chamar a atenção das pessoas de pouca compreensão, não são para se tomar ao pé da letra.

P: Se esses ensinamentos foram destinados às pessoas de pouca compreensão, falta-nos ouvir ainda qual é o Dharma destinado às pessoas de maior compreensão.

R: Se forem realmente pessoas de maior compreensão, onde vão encontrar a quem seguir? Se buscarem no interior de si mesmos não encontrarão nada tangível. Quanto menos digno de sua atenção será o Dharma que encontrem em alguma outra parte? Não prestem atenção ao que os pregadores chamam de Dharma, pois que espécie de Dharma poderá ser?

P: Sendo assim, não deveríamos mais buscar coisa alguma?

R: Concordando com isso, poderias economizar uma boa quantidade de esforço mental.

P: Porém dessa maneira tudo seria eliminado. O que há não pode ser somente o nada.

R: Quem o chamou de nada? Quem é esse indivíduo? Porém vocês querem buscar algo.

P: Posto que não há necessidade de buscar, por que não nos dizem também que nem tudo está eliminado?

R: Não buscar é repousar na tranquilidade. Quem foi que disse que você eliminaria alguma coisa? Olha o Vazio que existe diante de seus olhos. Como você poderia produzi-lo ou eliminá-lo?

P: Se me fosse dado alcançar esse Dharma, seria semelhante ao vazio?

R: Dia e noite lhes expliquei que o vazio é ao mesmo tempo uno e múltiplo. Disse isso a guisa de recurso provisório; porém vocês criam conceitos sobre ele.

P: Se nos quer dar a entender com isso que não devemos formar conceitos. Como fazem normalmente os seres humanos?

R: Eu não lhes estou impedindo; porém os conceitos estão relacionados com os sentidos; e quando se produzem sensações se fecha a porta à sabedoria.

P: Então, devemos evitar qualquer sentimento com respeito ao Dharma?

R: Quando os sentimentos não são produzidos, quem pode dizer que está num bom caminho?

P: Por que nos fala Vossa Reverencia como se houvesse erro em todas as perguntas que fazemos?

R: Você é uma pessoa que não entende o que se diz.  O que é isso “como se houvesse erro?” 1

1. É obvio que o mestre está tentando ajudar o discípulo a romper com o hábito de pensar em termos de conceitos e categorias lógicas. Para fazer isso se vê obrigado a fazer com que ele pareça equivocado, pergunte o que perguntar.

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28. P: Até agora Vossa Reverência não fez senão refutar tudo que dissemos. Não fez nada para nos indicar o verdadeiro Dharma.

R: No verdadeiro Dharma não há confusão: porém você não fez mais que produzir confusão com tais perguntas. Que espécie de “Dharma verdadeiro” lhe será dado buscar?

P: Como a confusão é causada por minhas perguntas, qual será a resposta de Va. Reverência ?

R: Observa as coisas tal como são e não preste atenção aos outros. Existem pessoas que semelhantes aos cachorros raivosos, que latem para tudo quanto se move; que latem inclusive quando o vento se agita entre as ervas e folhagens.

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29. Com respeito à nossa doutrina Zen, desde que foi transmitida pela primeira vez, nunca ensinou que os homens devem adquirir conhecimentos ou formar conceitos. “Estudar o Caminho” é apenas uma figura retórica. É um método para despertar o interesse das pessoas nas primeiras etapas de seu desenvolvimento. Na realidade o Caminho não é algo que possamos estudar. O estudo conduz a retenção de conceitos, de maneira que o Caminho é compreendido erroneamente. Além disso, o Caminho não é algo que exista determinadamente; é chamado a “Mente Mahayana”; Mente que não se encontra nem dentro nem fora nem no meio. Na verdade, não está localizada em parte alguma. O primeiro passo consiste em abster-se de conceitos baseados no conhecimento. Isto implica que se formos seguir o método empírico até um limite extremo, alcançado o limite, não nos seria possível localizar a Mente. O Caminho é a verdade espiritual e, originalmente, não tinha nome ou título. Foi somente porque as pessoas em sua ignorância buscaram empiricamente encontrá-lo, então os Budas apareceram e as ensinaram a não usar estes meios. Foi por temor de que ninguém compreendesse que escolheram a palavra Caminho. Vocês não devem permitir que esse nome venha a formar um conceito mental de um caminho. Assim, pois, se diz: “Quando se pescou o peixe, esqueça de ficar olhando a rede”. Quando o corpo e a mente adquirem espontaneidade, alcançou-se o fruto e a compreensão da mente. O Sramana é assim chamado porque penetrou na fonte original de todas as coisas. O fruto de alcançar o estado de Sramana obtém-se pondo um fim a toda e qualquer espécie de ansiedade; isso não se consegue com o estudo dos livros.

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31. P: De modo que vossa reverência acaba de dizer, a Mente é o Buda; porém não ficou claro qual é a mente que se quer dar a entender com “a Mente é o Buda”?

R: Quantas mentes você tem?

P: Porém Buda é a mente ordinária ou a Mente iluminada?

R: Onde, neste mudo, guardais vossa “mente ordinária” e vossa “mente iluminada”?

P: No ensinamento dos três veículos se declara que ambas existem. Por que vossa reverência o nega?

R: No ensinamento dos três veículos explica-se claramente que a mente ordinária e a iluminada não são senão ilusões. Você não compreendeu. Esse apego à idéia de que as coisas existem é confundir a vacuidade com a verdade relativa. Como é possível que tais concepções não sejam ilusórias? Sendo ilusória lhe oculta a Mente. Se tão somente pudesse libertar-se dos conceitos “ordinário” e “iluminado” perceberia que não existe outro Buda além do Buda de ‘sua’ Mente. Quando Bodhidhama veio do oeste, indicou que a substância da qual todos os homens são formados é o Buda. Você continua sem compreender; prende-se a conceitos tais como “ordinário” e “iluminado”, dirigindo seus pensamentos para o exterior indo de um lado para outro, galopando como cavalo! Tudo isso equivale a nublar sua própria mente! Assim é que lhe digo que a Mente é o Buda. Tão logo o pensamento ou as sensações apareçam você cai no dualismo. O tempo sem princípio e o momento presente são um e o mesmo1. Não existe isto e aquilo. Compreender essa verdade é o que se chama a completa e não sobrepujada iluminação.

P: Em que Doutrina se baseia vossa reverência estas palavras?

R: Para que buscar uma doutrina? Tão logo tenha uma doutrina você cairá no pensamento dualista.

P: Há um momento vossa reverência disse que o passado sem princípio e o presente eram um e o mesmo. Que quereis dizer com isso?

R: É precisamente pelo efeito de sua busca que você encontra diferenças entre eles. Se parasse de buscar, como poderia haver diferença alguma entre eles?

P: Se não são diferentes por que emprega vossa reverência termos diferentes para nomeá-los?

R: Se não houvesses feito menção de ordinário e iluminado, quem iria se preocupar de fazer tal distinção? Do mesmo modo que estas categorias carecem de existência real, assim também a “Mente” não é, na verdade, a “mente”. E posto que tanto a Mente com essas categorias são na realidade ilusões, onde poderias esperar encontrar alguma coisa.

1. Atemporalidade

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32. P: A ilusão pode ocultar a nossa própria mente, porém Vossa Reverência não nos disse até agora como nos livrar da ilusão.

R: O aparecimento e a eliminação do estado ilusório são ambos ilusórios. A ilusão não é algo que tenha raízes na realidade; existe por efeito do seu pensar dualista. Se tão somente deixasse de permitir o uso de conceitos opostos, como “ordinário” e “iluminado”, a ilusão cessaria por si mesma. E depois, se todavia desejares destruí-la onde quer que se encontre, verá que não fica nenhuma partícula de coisa alguma para assegurar-se. Este é o significado da expressão: “Deixarei ir com ambas as mãos, pois então seguramente descobrirei o Buda em minha Mente”.

P: Se não há nada em que se basear, como seria possível transmitir o Dharma?

R: Se transmite de Mente a Mente.

P: Se a Mente é empregada na transmissão, por que diz vossa reverência que não existe?

R: O não obter Dharma algum desta Mente implica que não há nem Mente nem Dharma.

P: Se não existe Mente nem Dharma o que se quer significar por transmissão?

R: Ouvimos as pessoas falarem de transmissão mental e logo falam de algo a receber.

 Assim disse Bodhidharma:

  A índole da mente,

 Quando bem compreendida,

 Não existem palavras humanas

 Que possam expressá-la

 Nem aquilatar seu influxo;

 Com a iluminação

 Nada se alcança,

 E o bem-aventurado que a realiza

 Não pode na verdade dizer: “eu sei”.

 Se eu não houvesse esclarecido isto a você, duvido que tivesse coragem suficiente para encará-lo.

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33. ­P: Seguramente que o vazio que se estende diante de vossos olhos é objetivo. Se for assim, não estará assinalando Va. Reverência algo que é objetivo e vendo Mente nele?

R: Que classe de mente poderia eu lhe dizer para ver em um ambiente objetivo? Embora pudesse vê-la não seria senão a Mente refletida na esfera objetiva. Seria como o homem que vê seu rosto em um espelho; ainda que pudesse ver claramente suas feições, nem por isso deixaria de ser meramente seu reflexo o que veria. O que tem a ver tudo isso com o assunto que o trouxe a mim?

P: Se somente vemos mediante reflexos, quando iremos ver alguma coisa?

R: Enquanto estiver preocupado com “por meio de”, sempre dependerá de algo falso. Quando irá compreender? Ao invés de prestar atenção a quem lhe diz que abra suas mãos e deixe-o ir como quem não tem nada a perder, desperdiça suas energias alardeando sobre todas as espécies de coisas.

P: Para aqueles que compreendem os reflexos ainda têm algum valor?

R: Se os sólidos não existem, quanto menos podemos fazer uso dos reflexos? Não vá por aí paparicando como sonâmbulo.

Entrando na sala pública Sua Reverência disse: – A posse de múltiplos conhecimentos não se compara com a renúncia a toda a busca de qualquer gênero que seja, que é o melhor de tudo. Não existem várias espécies de Mente nem há Doutrina que possa ser expressa em palavras. Assim, como se disse tudo quanto havia para dizer, dou por terminada a sessão!

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36. P: O sexto patriarca era analfabeto. Como foi que lhe entregaram o manto que o elevou a tal ministério? Shen Hsiu ocupava a posição mais alta entre os 500 monges e, como monge instrutor, tinha aptidão para explicar os 32 volumes dos sutras. Por que ele não recebeu o manto?

R: Porque ele ainda se entregava a pensamentos conceituais em um Dharma de atividade. Para ele a idéia; “segundo pratiques, assim alcançarás” era uma realidade. Portanto o quinto Patriarca efetuou a transmissão à Hui Neng (Wei Lang). Naquele momento mesmo, este último experimentou uma tácita compreensão e recebeu em silêncio o mais profundo ensinamento do Tathagata. Por isso o Dharma foi transmitido a ele. Você não vê que a Doutrina Fundamental do Dharma é que não existem Dharmas; porém a doutrina do Dharma é por si mesma um Dharma; e agora que a doutrina do não-Dharma foi transmitida, como é possível que a doutrina do Dharma seja um Dharma? Alguém que compreenda isto merece ser chamado monge bem versado na prática do Dharma. Se não acreditares no que digo, tereis que explicar a seguinte história:

O dignitário Wei Ming subiu o cume da montanha Ta Yü para visitar o sexto patriarca. Este perguntou por que tinha ido visitá-lo: se foi pelo manto ou pelo Dharma. O dignitário Wei Ming respondeu que não fora pelo manto, mas pelo Dharma; então o sexto patriarca respondeu:

– Talvez não aches inconveniente concentrar vossa mente por um momento, evitando pensar em termos de bem ou de mal – Ming fez o que pediu e o sexto patriarca continuou – Enquanto não pensas no bem e no mal, nesse mesmíssimo momento, volte ao que eras antes que vossos pais nascessem.

Antes que essas palavras terminassem de serem pronunciadas, experimentou uma súbita e completa compreensão.

Por conseguinte fez uma profunda reverencia e disse:

– Sinto-me como um homem que bebe água fresca e que sabe por si mesmo de sua frescura. Vivi com o Quinto Patriarca e com seus discípulos 30 anos, porém tive que esperar até hoje para que desvanecessem os erros de minha antiga maneira de pensar.

– Assim é – respondeu o sexto patriarca – Finalmente agora compreendeis porque, quando o primeiro patriarca chegou da Índia, não fez mais do que assinalar de um modo direto a Mente dos homens, por cujo meio lhes era dado perceber sua verdadeira natureza e chegarem a ser Budas; é por isso que nunca falou de alguma outra coisa.

Por acaso não ouvimos, Ananda perguntar a Kasyapa o que lhe havia transmitido o venerado do mundo, além do manto dourado. Kasyapa respondeu:

– Ananda!

E este respeitosamente respondeu:

– Que queres?

– Contestou aquele:

Derruba o mastro da bandeira da porta do monastério.

Tal foi o sinal que lhe deu o primeiro Patriarca. Durante 30 anos, o prudente Ananda atendeu às necessidades pessoais do Buda; porém como era muito aficionado à aquisição de conhecimentos, o Buda o admoestou dizendo-lhe:

– Um milênio de dias empregados na busca de conhecimentos não lhe serão de tanto proveito como um só dia empregado oportunamente no estudo do Caminho. Ao não estudá-lo não te será dado digerir nem uma gota d’água sequer.

 

(II) MEMÓRIA de  WAN LING do MESTRE ZEN HUANG PO (TUAN CHI)

 Coleção de diálogos, SERMÕES e anedotas anotados por P’ei Hsiu durante sua estada na comarca de Wang Ling

 

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 1. P: Uma vez fiz ao mestre esta pergunta: – Das quatrocentas ou quinhentas pessoas reunidas aqui na montanha quantas entenderam completamente o ensinamento de Vossa Reverência? O mestre respondeu: Não se pode conhecer o número.

P: Por quê?

R: Porque meu caminho consiste em despertar a mente. Como poderíamos explicar em palavras? As palavras só produzem algum efeito quando caem nos insipientes ouvidos das crianças.

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2. P: O que é o Buda 1.

R: A mente é o Buda, enquanto a cessação do pensamento conceitual é o Caminho. Logo que deixarmos de suscitar a criação de conceitos e de pensar em termos de existência e de inexistência, de comprido e de curto, de próprio e de alheio, de ativo e passivo e semelhantes pares de opostos, descobriremos que a Mente é intrinsecamente o Buda, e que o Buda é intrinsecamente a Mente e que a mente é semelhante ao vazio 2. Portanto, está escrito que “o Dharmakaya verdadeiro é semelhante ao vazio”. Não busquem coisa alguma, senão isto; de outro modo essa busca terminará em aflição. Embora pratiquem os seis paramitas.

1. O Absoluto.  

2. Significa intangível, não uma mera negação.

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3. P: Admitindo que o homem iluminado que conseguiu a cessação do pensamento conceitual seja um Buda, não se perderia a si mesmo no esquecimento o homem ignorante ao cessar de pensar conceitualmente?

R: Não existem homens iluminados nem homens ignorantes, e não existe tampouco o esquecimento. Entretanto, embora fundamentalmente tudo careça de existência objetiva, você não deve chegar a pensar em termos de algo não existente; e ainda que as coisas não sejam existentes, não deve formar conceitos de algo existente.  Pois a “existência” e a “não-existência” são tanto uma como a outra, conceitos empíricos que não são muito diferentes de ilusões. Portanto, está escrito: “Tudo quanto os sentidos percebem é semelhante a uma ilusão na qual podemos incluir qualquer espécie de existência desde os conceitos mentais até os seres viventes”. O fundador da nossa Escola 1 ensinava a não ficarmos presos a percepção sensorial e ir além dos conceitos. Nesta liberação total é onde floresce o Caminho dos Budas; enquanto que entre um e o outro, entre isto e aquilo, agita-se uma legião de demônios.

1. Bodhidharma

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4. P: Se a mente e o Buda 1 são intrinsecamente um e o mesmo, deveríamos continuar praticando os seis paramitas e os demais meios ortodoxos para realizar a iluminação?

 R: A iluminação origina-se na mente, fazendo caso omisso de que pratiquemos os paramitas e tudo o mais. Todas as práticas são meros expedientes para manipular assuntos “concretos” quando se trata de problemas da vida cotidiana. Inclusive a Iluminação, o Absoluto, a Realidade, a Súbita realização, o Dharmakaya e todos os demais até as Dez Etapas do Progresso, as Quatro Recompensas da Vida Prudente e Virtuosa e o Estado de Santidade e Sabedoria são – absolutamente todos – meros conceitos para ajudar-nos a atravessar o samsara; não tem nada a ver com a Mente Búdica. Como a Mente é o Buda, o melhor meio de realizá-la consiste em cultivar a Mente Búdica. Contanto que evitemos pensamentos conceituais que conduzem a “chegar a ser” e a “deixar de ser”, as aflições do mundo senciente e todo o restante, não haverá necessidade de métodos de Iluminação nem de outras coisas semelhantes. Esta é a razão pela qual foi escrito:

 “Todo ensinamento do Buda

 tem somente por objetivo

 conduzir a mente humana

 além do pensamento.

 Se conseguir por mim mesmo

 realizar essa façanha,

 de que me servirá então

 o Dharma de Buda e seu ensinamento?”

 

Desde Buda Gautama, passando por toda uma linha de Patriarcas até Bodhidharma, ninguém ensinou coisa alguma que não fosse a Mente Única, com outro nome é chamado o Veículo Único da Liberação. Daqui depreendemos que embora indagássemos por todo o Universo, não nos seria dado encontrar outro veículo. Em nenhuma parte esse ensinamento possui folhas ou ramos; sua qualidade única e particular é a Verdade Atemporal. Por isso é difícil de aceitar. Quando Bodhidharma veio à China e chegou aos reinos de Liang e de Wei, somente o venerável mestre Ko obteve o imediato discernimento da Natureza da Mente; tão logo lhe foi explicado, compreendeu que a Mente é o Buda, e que a mente individual e o corpo nada são. Este ensinamento tem por nome a Via Magna. A natureza mesma da Via Magna é o vazio de oposição. Bodhidharma tinha como verdadeiro ser uno com a “Substância” Real do Universo nesta vida! A mente e esta “substância” não diferem nem em uma partícula: a “substância” é a Mente. Não podemos separá-las de modo algum. Foi por esta revelação que mereceu o título de Patriarca de nossa escola, e foi por isso que escreveu: “O momento da revelação da unidade da Mente e da “substância” que constitui a realidade, pode-se dizer na verdade, que ultrapassa qualquer descrição.

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5. P: O Buda realmente libera os seres sensíveis?

R: Na realidade não existem seres sencientes que o Tathagata tenha que liberar. Se nem o próprio Ser tem existência objetiva, quanto menos a terá qualquer outro ser. Assim, pois nem o Buda nem os seres sensientes existem objetivamente.

6. P: Entretanto, é uma coisa atestada que: “Quem quer que possua os trinta e dois sinais característicos de um Buda, tem a faculdade de liberar os seres sencientes”. Como pode Vossa Reverência negá-lo?

R: Seja quem for que os possua, quaisquer sinais são ilusórios. É precisamente dando-se conta de que todos os sinais não são sinais de nada, que alguém se dá conta do Tathagata. “Buda” e os “seres sensíveis”, tanto um como os outros, não são senão falsas concepções suas. É por falta de conhecimento da Mente Verdadeira que enganam-se a si mesmos com tais conceitos objetivos. Empenham-se em forjar um Buda, esse mesmo Buda obstruirá o caminho! Se conceberem os seres sensíveis, eles também lhes obstruirão. Todos esses conceitos duais como “ignorante” e “Iluminado”, “puro” e “impuro”, são obstruções. Por terem a mente assim obstruída que é preciso fazer girar a Roda da Lei1 Assim como os símios passam o tempo atirando coisas e voltando a colhê-las continuamente, assim acontece a vocês com seu saber. O que necessitam é renunciar ao seu saber, de seu ‘ignorante’ e ‘iluminado’, de seu ‘puro’ e ‘impuro’, de seu ‘grande’ e ‘pequeno’, de seu ‘apego’ e de sua ‘atividade’. Tais coisas são somente palavras de mera conveniência, adereços na Mente Única. Ouvi dizer que vocês estudaram os sutras das Doze Divisões dos Três Veículos. Todos eles não são mais que conceitos empíricos. Na verdade devem renunciar a eles!

Desfaçam-se, pois de tudo quanto adquiriram e que não tem mais valor, como o cobertor que cobria vocês quando estavam doentes. Tão somente quando tenham abandonado qualquer percepção, quando os fenômenos não obstruam mais seus caminhos; somente quando tenham se livrado de toda a gama de conceitos dualísticos pertencentes às categorias de ‘ignorante’ e ‘iluminado’, terão por fim realizado o título de Buda. Está, portanto, escrito: “Vosso abatimento é em vão. Não ponham vossa fé em tais cerimônias. Apressem-se em sair da influência de todas essas crenças”. Já que a Mente não conhece divisões em entidades separadas, os fenômenos devem igualmente permanecer indiferenciados. Já que a Mente está acima de todas as atividades, assim mesmo deve acontecer com os fenômenos. Todo fenômeno que existe é uma criação do pensamento; por conseguinte, não necessito mais deixar a mente vazia para descobrir que todos eles estão vazios. O mesmo acontece com todos os objetos dos sentidos, pertençam às miríades de categorias que pertençam. O vazio completo que se estende em todas as direções, é da mesma essência da Mente; e, posto que a Mente é fundamentalmente indiferenciada, o mesmo deve acontecer a todos os demais. Eles aparecem a vocês como entidades separadas, devido somente às diferenças de suas percepções: do mesmo modo que os manjares deliciosos com que os Devas se alimentam normalmente diferem em sabor, segundo se diz, conforme o mérito individual dos que os consomem!

Anuttara-samyak-sambhodhi2 é o nome que damos à compreensão de que os Budas do universo inteiro não possuem, na realidade, o mínimo atributo perceptível. Tão somente a Mente Única existe. Na verdade, não existe multiplicidade de formas, nem Explendor Celestial, nem Vitória Gloriosa (sobre o samsara), nem submissão ao Vencedor (Buda). Posto que jamais se ganhou vitoria alguma, não pode existir entidade formal semelhante a um Buda; e, já que nunca se encontrou perdedor algum, não pode haver entidades formais como os seres sencientes.

1. Quer dizer, que as verdades relativas do budismo ortodoxo devem ser ensinadas.

2. Suprema Onisciência.

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7. P: Embora a mente careça de forma, como pode Vossa Reverência negar a existência dos Trinta e Dois Sinais Característicos de um Buda, ou das Oitenta Excelências que serviram para transportar as pessoas para a outra margem1?

R: Os Trinta e Dois Sinais e tudo o que tem forma é ilusório. As Oitenta Excelências pertencem à esfera material; porém quem quer que perceba um ser na matéria, viaja por um caminho equivocado: assim não poderá compreender o Tathagata.

1. De samsara a nirvana.

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8. P: A substância essencial do Buda difere de algum modo da dos seres sencientes, ou são idênticas?

R: A substância essencial não tem parte na identidade nem na diferença. Se aceitarmos os ensinamentos ortodoxos dos Três Veículos do Budismo, onde diferenciam entre a Natureza Búdica e a natureza dos seres sencientes, criaremos para nós como consequência, o carma dos Três Veículos, que terá por resultado identidades e diferenças. Porém se aceitarmos o Veículo Búdico, que é a doutrina transmitida por Bodhidharma, deixaremos de falar de tais coisas; assinalaremos simplesmente a Mente Búdica, que carece de identidade e de diferenciação, e que não tem causa nem efeito 1. Portanto, escreveu-se: “Só existe um caminho para o Veículo Único: não há nem segundo nem terceiro, exceto para os meios empregados pelo Buda como expedientes puramente relativos 2 para os seres perdidos na ilusão”.

1.     A intenção de Huang Po não foi negar a validade da lei cármica segundo se aplica ao efêmero mundo do samsara.

2.     Upaya = meios hábeis

 

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9. P: Por que não foi dado ao Bodhisatva da Infinita Extensão reconhecer o sinal sagrado no cocuruto do Buda?

R: Na realidade não havia nada a ver. Por quê? Porque o Bodisatva da Infinita Extensão era o próprio Tathagata; portanto não se suscitou a necessidade de ver. A parábola tem por objetivo evitar que se conceba o Buda e os seres sencientes como entidades, caindo, portanto no erro da separação espacial. É uma advertência contra a concepção de entidades como existentes ou como não existentes, caindo, portanto no erro da separação espacial; e mesmo assim contra a concepção dos indivíduos como ignorantes ou iniciados, incorrendo no mesmo erro. Somente quem está completamente liberado dos conceitos pode possuir um corpo de infinita extensão. Todos os pensamentos conceituais são produzidos por crenças errôneas. Os que mantêm tais doutrinas falsas encontram satisfação na multiplicidade de conceitos; porém o Bodisatva permanece inalterável em meio à legião deles. “Tathagata” representa o Tal-como-é 1 de todos os fenômenos.

Portanto, está escrito: “Maitreya é TAL COMO É; os santos e os sábios são Tal-Como-São”. O Tal-Como-É consiste em não estar sujeito ao devir ou ao vir-a-ser, nem tampouco à morte e destruição, também não pode se visto e ouvido. O cocuruto do Tathagata é um conceito da perfeição; porém também é da não-perfeição-que-conceber. Então não caia no erro de conceber objetivamente a perfeição. Daí deduzirmos que o Budakaya 2 está acima de qualquer atividade; portanto, devemos precaver-nos de escolher entre as miríades de formas distintas.

O efêmero pode assemelhar-se à mera vacuidade; o grande Vazio é perfeição na qual não há nem carência nem superfluidade; um repouso em que toda atividade é aquietada. Não argumentem que talvez existam outras regiões que se estendam além do Grande Vazio, uma vez que tal argumento nos conduziria inevitavelmente à diferenciação. Por essa razão está escrito: “A perfeição é semelhante a um profundo mar de sabedoria; samsara é semelhante a um torvelinho caótico”.

Quando falamos do conhecimento que ‘eu’ posso obter da erudição que ‘eu’ posso alcançar, de ‘minha’ compreensão intuitiva, da ‘minha’ liberação da cadeia de renascimentos, e da moralidade de ‘meu’ modo de viver, ‘nossos’ êxitos fazem com que estes conceitos nos pareçam agradáveis; porém nossos fracassos os tornam deploráveis aos nossos olhos. De que serve tudo isso? Meu conselho é que permaneçam uniformemente repousados e que se mantenham acima de qualquer atividade. Não se enganem com pensamentos conceituais, e não busquem a verdade em parte alguma, já que o único necessário é que deixem de formar conceitos. É evidente que os conceitos mentais e as percepções externas são igualmente capciosos, e que o Caminho dos Budas é tão perigoso para vocês como o caminho dos demônios. Então, quando Mandjusri entrou temporalmente no dualismo, viu-se diminuído pelas montanhas de ferro que tornavam impossível a sua saída. Porém Mandsjuri possuía o verdadeiro juízo enquanto Samantabhadra possuía tão somente um saber efêmero. Não obstante, se o verdadeiro juízo e o saber efêmero se complementam como é devido, percebemos que ambos deixam de existir. Somente a Mente única existe, que não é nem Buda nem seres sencientes, pois não contêm tal dualismo. Tão logo concebamos o Buda, nos vemos forçados a conceber os seres sencientes, os conceitos e os não conceitos, o vital e o trivial, tudo que aprisiona alguém entre as montanhas de ferro.

Por causa dos obstáculos criados pelos raciocínio dualístico, Bodhidharma indicava meramente a Mente, a substância original de todos nós, que é de fato o próprio Buda. Ele não oferecia os falsos meios de aperfeiçoamento próprio; não participava de nenhuma escola de desenvolvimento gradual. Seus ensinamentos não admitem atributos tais como claro e escuro. Posto que, se não está claro, não há luz; como não está escuro, logo não há escuridão, nem se pôs fim à escuridão. Alguém que ultrapasse o umbral de nossa escola deve perceber tudo por meio do conhecimento intuitivo. Esta classe de percepção se conhece com o nome de Dharma; conforme percebemos o Dharma, falamos do Buda, se acontecer o estado chamado “entrada na Sangha”, os monges recebem a denominação de “monges que residem além de toda atividade” e ao processo completo se pode dar o nome de Triratna, ou seja as Três Joias de uma mesma substância.

Aqueles que procuram encontrar o Dharma, não devem buscá-lo no Buda, nem no Dharma, nem na Sangha. Não deveriam busca-lo em parte alguma. Quando não se busca o Buda, não existe Buda a se encontrar! Quando não se busca o Dharma, não há Dharma a se encontrar! Quando não se busca a Sangha, não há Sangha! 

1. Tathata é variadamente traduzido como “thusness”. É um conceito central no BudismoO sinônimo Dharmata também é usado com freqüência.

2. O Absoluto

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10. P: Vossa Reverência mesmo é atualmente membro da Sangha ocupado evidentemente em predicar o Dharma; assim sendo, como podes asseverar que não existe nenhum deles?

R: Se você supõe que existe um Dharma a predicar, será natural que me peça que o exponha; porém se você postula um “eu”, isso implicará uma entidade espacial. O Dharma não é o Dharma: é a MENTE.

Por isso Bodhidharma disse:

  “Embora lhes tenha transmitido

 o Dharma da Mente,

 como é possível

 que o Dharma seja um Dharma,

 pois o Dharma e a Mente

 carecem de existência objetiva?

 Mas isto lhe fará compreender

 o Dharma que se transmite

 de Mente à Mente”.

 Saber que na verdade não existe coisa alguma a alcançar, chama-se repousar em Bodhimandala. O Bodhimandala é um estado onde não se produzem conceitos; no qual alguém desperta para compreender a vacuidade intrínseca dos fenômenos, e que se chama também a completa vacuidade da Matriz dos Tathagatas 1.

 “Nunca jamais existiu coisa alguma;

 Onde poderá, pois o pó se acumular? 2

 Se conseguires penetrar neste mistério,

 Por que falar da bem-aventurança transcendental?”

 

1.     Tathagata a fonte de todos os fenômenos. [Kundgd Gyalpo]

2.     Do Sutra da Plataforma – de Hui Neng 

 

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11. P: Se “Nunca jamais existiu coisa alguma”, é possível falar dos fenômenos como não existentes?

R: Falar dos fenômenos como “não existentes” é tão errôneo como falar de seu oposto. Bodhi significa ausência de conceitos de existência ou de não existência.

12. P: O que é Buda?

R: Sua Mente é o Buda. O Buda é Mente. A Mente e o Buda são indivisíveis. Portanto, está escrito: “O que é Mente é Buda; se for outra coisa diferente da Mente é com toda certeza, diferente do Buda”.

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13. P: Se nossa própria Mente é o Buda, como transmitiu Bodhidharma os ensinamentos quando veio da Índia?

 R: Quando veio da Índia, Bodhidharma transmitiu somente a Mente-Buda. Assinalou a verdade de que a mente de todos nós é, desde o princípio mesmo, idêntica à do Buda, e não está de modo algum separada uma da outra. Por esta razão o chamamos de nosso Patriarca. Qualquer pessoa que tenha uma compreensão instantânea desta verdade, transcende imediatamente toda a hierarquia de mestres e adeptos pertencentes a qualquer dos Três Veículos. Sempre fomos Um com Buda; não pretendam, pois, que possam alcançar esta unidade mediante práticas diversas 1.

1. Não podemos vir a ser o que já somos desde sempre: só podemos re-conhecer intuitivamente nosso estado original, antes oculto a nós pelas nuvens de avidya.

14. P: Sendo assim, qual é o Dharma que ensinam todos os Budas quando se manifestam no mundo?

R: Todos os Budas, quando se manifestam no mundo, não proclamam coisa alguma que não seja o ensinamento da Mente Única. Assim, pois o Buda Gautama transmitiu a Mahakasyapa tacitamente o ensinamento da Mente Única, que é a substância de todas as coisas coexistente com o Vazio e permeando inteiramente o mundo dos fenômenos. Esta é chamada a Lei de Todos os Budas. Digam dela o que disserem, como vão ter sequer a esperança de acesso à verdade, tão somente com palavras? Nem sequer podemos percebê-la objetiva nem subjetivamente. De modo que a plena compreensão somente pode chegar a vocês por um mistério inexprimível. O acesso a ela é chamado a “Entrada no Silêncio além de toda atividade”. Se quiserem compreender, saibam que uma compreensão repentina ocorre quando a mente está expurgada de toda confusão do pensamento e atividade conceitual e das distinções. Os que buscam a verdade por meio do intelecto e da erudição, não fazem outra coisa senão afastarem-se dela cada vez mais. Enquanto seus pensamentos não cessarem com ramificações por toda parte; enquanto não abandonarem qualquer pensamento de buscar algo; enquanto suas mentes não ficarem tão imóveis como a madeira ou a pedra, não pisarão no verdadeiro cominho que conduz à Entrada.

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15. P: Neste momento cruzam frequentemente por nossa mente toda espécie de pensamentos errôneos. Como é possível que Vossa Reverência diga que não temos nenhum?

R: O erro não é nada substancial; é completamente produto de seu próprio pensar. Quando se sabe que a Mente é o Buda e que a Mente carece fundamentalmente de erros, quando se percebe pensamentos, fica-se plenamente convencido de que eles são os responsáveis pelos erros. Se você puder evitar todo movimento dos pensamentos conceituais e aquietar o processo mental, naturalmente que não ficaria em você erro algum. Portanto, se disse: “Quando surgem os pensamentos, é quando então surgem todas as coisas; quando se desvanecem os pensamentos, então desaparecem todas as coisas”.

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16. P: Quando neste momento se produzem pensamentos errôneos em minha mente, onde está o Buda1 ?

R: Neste momento você está consciente desses pensamentos errôneos. Muito bem, neste momento ‘sua’ consciência é o Buda. Talvez poderia entender isso, contanto que esteja livre desses processos mentais ilusórios, caso contrário não haveria “Buda”. E por que não haveria Buda?, perguntaria. Porque quando você deixa que o movimento de tua mente tenha como resultado um conceito de “Buda”, você não faz senão trazer à existência um ser objetivo capaz de ser Iluminado. Do mesmo modo, qualquer conceito de seres sencientes necessitados de liberação, cria tais seres como objetos de seus pensamentos. Todos os processos intelectuais e movimentos dos seus pensamentos são o resultado dos seus conceitos 2.  Se você refrear por completo o seu conceituar, aonde iria o “Buda” continuar sua existência? Encontramos-nos com a mesma dificuldade com que se deparou Mandjusri, o qual, tão logo permitiu a si mesmo conceber o “Buda” como uma entidade objetiva, viu-se reduzido e cercado por montanhas de ferro.

1. Então, a Mente Única não está mais presente?

2. O que traz os objetos correspondentes ao pensamento à existência.

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17. P: No momento da iluminação, onde se encontra o Buda?

R: Donde procede sua pergunta? Onde se origina a sua consciência? Quando o falar está calado, todo movimento aquietado, toda visão e todo som extintos, então é quando o trabalho de liberação do Buda brota! Então aonde será que buscaremos o Buda? Não nos é dado por uma cabeça sobre nossa cabeça ou outros lábios sobre nossos lábios; melhor abster-nos de incorrer em todas as classes de distinções dualísticas. As montanhas são montanhas. A água é água. Os monges são monges. Os comuns são comuns. Porém tanto estas montanhas como esses rios e o mundo todo incluindo mesmo o Sol, a Lua e todas as estrelas, não há um só que exista fora da sua mente! Todos os milhares de cosmos susceptíveis de existência, somente existem em você. Assim, pois em que outra parte seria possível falar das diversas categorias dos fenômenos? Fora da nossa mente não há nada. As verdes colinas que em qualquer lugar se oferecem à sua vista, como esse firmamento vazio que você vê luzir por cima da Terra, não há uma partícula disso tudo que exista fora dos conceitos que você mesmo tem forjado. Assim é, pois todo ato de percepção, visão ou som, não é outra coisa que o Olho da Sabedoria do Buda 1.

Os fenômenos não se originam independentemente, mas são estimulados pelo ambiente 2. E o que requer toda essa classe de conhecimento individualizado é sua faculdade de aparecer como objetos. Alguém pode falar durante todo o dia, e contudo, o que foi que disse? Alguém pode escutar desde o alvorecer até o ocaso, e depois de tudo, o que será que ouviu? Assim foi como Buda Gautama ensinou durante quarenta e nove anos e, contudo, realmente, não proferiu uma só palavra 2.

1. O Olho da Sabedoria do Buda quer dizer o olho com o qual se percebe a verdadeira unidade de todas as coisas.

2. As palavras pertencem ao reino do fluxo e da ilusão. A verdade está além das palavras, uma experiência silenciosa e profunda. O Buda falou por meios relativos. Visto de um modo absoluto, não falou uma única palavra.

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18. P: Supondo que tudo isso é assim, qual é o estado que se define pela palavra Bodhi? 1

R: Bodhi não é um estado. O Buda não o alcançou. Os seres sencientes não carecem dele. Não podemos alcançá-lo com o corpo nem o abarcarmos com a mente. Todos os seres sencientes já são da mesma essência que Bodhi.

1. Iluminação ou Sabedoria Suprema.

2. Quer dizer, o entorno mental criado por vocês mesmo.

19. P: Porém, como “alcançamos a Mente Bodhi?”.

R:  Bodhi não é algo que se alcance 1. Se neste exato momento se convencessem da sua inacessibilidade, ficariam verdadeiramente convencidos de que jamais poderão alcançá-lo, pois já têm a mente Bodhi. Posto que Bodhi não é um estado, não é alguma coisa que possam alcançar. E, portanto, o Buda Gautama disse: “Enquanto estava ainda no reino do Buda Dipankara, não houve para mim nem uma mínima coisa para alcançar. Foi quando então o Buda Dipankara fez sua profecia, dizendo que eu também seria Buda”. Se souberem com toda a evidência que todos os seres sencientes já estão unidos a Bodhi, cessarão de pensar que Bodhi é algo suscetível de ser alcançado. Quiçá recentemente ouviram falar sobre “alcançar a mente Bodhi”, porém tais conversações podem ser consideradas como um meio intelectual de espantar o Buda! Seguindo esse método, só terão a aparência do Buda. Se tivessem que passar eras e mais eras dessa maneira, não lograriam mais que o Sambhogakaya e o Nirmanakaya. Que relação teria tudo isso com a Natureza Búdica original? Portanto, está escrito: “Buscar exteriormente o Buda possuidor de forma não é algo para se ater”.

1. Não é um objeto que se perceba, compreenda, realize, conceba.

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20. P: Se sempre somos um com o Buda, por que não obstante, existem seres que vem à existência mediante os quatro gêneros de nascimento e entram em um dos seis reinos da existência, cada um com a forma e a aparência característica de seu gênero?

R: A substância búdica essencial é um todo perfeito sem superfluidade nem carência. Permeia os seis reinos da existência, e ainda assim é absolutamente completa em todas as suas partes. Assim é que cada uma das miríades de fenômenos que são produzidos no Universo é o Buda (O Absoluto). Esta substância pode ser comparada a uma quantidade de mercúrio, que espalhada em todas as direções, voltam a se unir, constituindo conjuntos homogêneos e perfeitos, os quais voltando a se reunir formam de novo um só conjunto de inalterável homogeneidade, no qual se conterão todas as partes sem distinção alguma. A diversidade das formas e aparências, por outro lado, podem comparar-se com moradas. Assim como alguém abandona um estábulo, preferindo, viver em uma casa, assim também alguém muda o corpo físico por um corpo radiante e, assim, de uma para outra mudança do Pratyekabuda ao Bodhisatva e destes aos Budas. Porém essas diferenças todas são igualmente distinguidas e buscadas, ou abandonadas por vocês; esta é a razão da distinção entre elas; pois como é possível que a natureza original e essencial do Universo se encontre sujeita a tal diferenciação?

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21. P: Como os Budas, em sua imensa misericórdia e compaixão, ensinam o Dharma aos seres sencientes?

R: Falamos de sua imensa misericórdia e compaixão, porque estas estão além de toda causalidade. Por misericórdia se quer dar a entender que não se concebe que o Buda está iluminado, enquanto por compaixão se quer expressar que não se pode conceber os seres sencientes como liberados.

Na realidade, seu Dharma não lhes é ensinado em palavras nem dado a entender de outra forma; e os que escutam nem o ouvem nem o alcançam. É como se um mestre imaginário houvesse ensinado a pessoas imaginárias.

Enquanto ao que se refere a todos esses Dharmas (ensinamentos), se em consideração ao Caminho falo a vocês do meu mais profundo conhecimento e os levo adiante, vocês podem compreender certamente o que digo; e, no que se refere à misericórdia e compaixão, se por causa de vocês me ponho a pensar as coisas e a estudar conceitos de outras pessoas, nem em um nem em outro caso vocês alcançarão profundamente a verdadeira percepção da natureza real de ‘sua própria’ Mente. Assim é que, ao fim e ao cabo, estas coisas de nada servirão de ajuda.

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22. P: qual o significado das palavras “fervorosa aplicação”?

R: A forma mais completa de fervorosa aplicação é a ausência em sua mente, de distinções como ‘meu corpo’, ‘minha mente’. Tão logo comece a buscar algo fora de ‘sua própria’ Mente, se parecerá com Kaliraja 1 com sua compulsão para a caça. Porém quando impedir que sua mente viaje fora de si mesma, então você já é um ksanti-rishi. NEM CORPO NEM MENTE: esse é o Caminho dos Budas.

1. Dizem que Kaliraja despedaçou alguns sábios, inclusive a uma encarnação anterior de Gautama. Este suportou os cortes em pedaços com a equanimidade de um ksanti-rishi, aquele que sem queixar-se pratica o paramita da paciência na aflição.

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23. P: Se sigo este Caminho e contenho os processos intelectuais e o pensamento conceitual, estarei certo de alcançar a meta?

R: A ausência de conceituação é seguir o Caminho! Qual o motivo de se falar sobre alcançar ou não alcançar? A questão é essa: pensando em algo, você cria uma entidade e não pensando em nada, você cria outra. Deixe que esse pensar errôneo se extinga por completo e então não restará nada que tenha de buscar.

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24. P: O que quer dizer “Transcender os Três Mundos”? (Do desejo, da forma e da não-forma)

R: Transcender os Três Mundos é um modo de dizer “ir além do dualismo, do bem e do mal”. Os Budas aparecem no mundo com a finalidade de ir além do desejo, da forma e dos fenômenos sem forma. Também para vocês se desvanecerão os Três Mundos se lograrem alcançar o estado que transcende o pensamento. Por outro lado, se continuarem apegados à noção de que algo, nem que seja sequer a centésima parte de uma partícula, que talvez exista objetivamente, então, mesmo o perfeito domínio do Cânone do Mahayana não serviria para ir além dos Três Mundos. Somente quando cada um desses diminutos fragmentos forem vistos como vazios, poderá o Mahayana lhes dar a conquista da vitória.

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25. Um dia, logo após sentar-se no salão, o mestre começou desta maneira:

– Como a Mente é o Buda (Absoluto), abarca tudo, desde os Budas (entes iluminados) em um extremo, até os mais ínfimos répteis ou insetos, no outro extremo. Todos participam igualmente da Natureza Búdica, e todos são da mesma substância da Mente Única. Assim, pois Bodhidharma, depois de sua chegada do oeste. Não transmitiu outra coisa senão o Dharma da Mente Única. Indicou diretamente a verdade de que todos os seres sencientes foram sempre da mesma substância que o Buda. Ele não seguiu nenhum desses errôneos “métodos de iniciação”; e se puderem atingir essa compreensão em sua própria Mente descobrindo desse modo sua natureza verdadeira, por certo que não haveria para vocês tampouco nada mais a buscar.

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26. P: Como, pois, um homem consegue a compreensão de sua própria Mente?

R: Quem faz essa pergunta é sua própria mente; porém se você permanecer em completa calma e se abstiver da mínima atividade mental, sua essência poderá ser vista como vazia: percebida como se carecesse de forma, sem ocupar nenhum ponto no espaço e como se não pertencesse à categoria do existente ou do não-existente. Por ser imperceptível, Bodhidharma disse: “A Mente, que é nossa natureza verdadeira, é a Matriz ingênita e indestrutível; que em resposta às circunstancias, se transforma a si mesma em fenômenos”. Por conveniência prática a chamamos “inteligência”; porém quando não responde às circunstâncias, não devemos nomeá-la com termos dualísticos tais como existência ou não-existência. Além disso, embora ocupada em criar objetos em resposta à causalidade, segue sendo imperceptível. Se soubermos isto e repousarmos tranquilamente no vazio, na verdade seguimos o Caminho dos Budas. Por esta razão é que o Sutra diz: “Desenvolva uma mentalidade que não repouse em coisa alguma, seja qual for”.

Todos os seres sencientes que se encontram sujeitos à roda de alternância da vida e da morte, voltam a ser criados segundo o carma de seus próprios desejos. Seu coração permanece sujeito aos seis estados de existência que levam consigo todas as espécies de dores e aflições. Ch’ing Ming disse: “Existem pessoas com mentes semelhantes a um símio, que são muito difíceis de ensinar; pessoas que necessitam todas as espécies de preceitos e doutrinas, para levar seus corações à compreensão”. E assim, quando surgem os pensamentos, seguem-se todas as espécies de dharmas; porém estes se desvanecem tão logo cessam os pensamentos. Isto nos habilita a ver que todas as classes de dharmas não são mais que uma criação da mente. E que todas as espécies de seres, tanto humanos como devas, os que sofrem no inferno, como os asuras e os compreendidos nas seis formas de vida, todos eles não são outra coisa que criações da mente. Então, logo que conseguíssemos obter um estado de não conceituação, veríamos imediatamente romper-se a cadeia da causalidade.

Abandonem esses pensamentos errôneos que conduzem a falsas distinções. Não existe nem ‘eu’ nem ‘outro’. Não existe nem ‘maus desejos’, nem ‘ódio’, nem ‘carinho’, nem ‘triunfo’, nem ‘fracasso’. Tão logo renunciem ao erro do pensamento intelectual ou conceitual, sua natureza exibirá sua prístina pureza, pois somente esta é a maneira de realizar a Iluminação, de realizar o Dharma, de realizar Buda e tudo mais. A menos que compreendam isso, a totalidade das suas erudições, seus penosos esforços para avançar, suas austeridades no comer e no vestir, não servirão para obter conhecimento de sua própria Mente. Devemos considerar todas as práticas como falaciosas, uma vez que qualquer delas não fará mais que conduzir-nos a renascer entre os ‘demônios’, quer dizer, entre inimigos da verdade ou entre os obtusos espíritos da natureza. De que servirá perseguir tais fins? Chih Kung disse: “Nossos corpos são criação de nossa própria mente”. Porém como vamos esperar adquirir conhecimento semelhante dos livros? Se compreenderem a natureza de sua própria Mente e terminarem com todos os pensamentos de diferenciação e distinção, não haverá lugar, por uma razão natural, para que se produza nem sequer o menor erro. Ch’ing Ming expressa isto no seguinte verso:

 Se quiseres descansar sem ânsias nem desejos,

 simplesmente estenda uma esteira no chão;

 não penses na cama com renovado apego,

 como se te sentisses muito gravemente doente.

 O carma dissipa-se quando cessa o desejo

 e as fantasias, esperanças e anelos,

 fica tão somente Bodhi.

 Bodhi não tem lugar nem tempo.

  Igualmente são as coisas, enquanto a mente se encontrar sob o influxo do mais leve pensamento, permanecerão presos no engano de considerar “Iluminado” e “ignorante” como estados diferentes. Este erro ainda persistirá apesar de seus conhecimentos do Mahayana, de suas habilidades para passar pelos “Quatro Graus de Santidade” e as “Dez Etapas de Progresso Para a Iluminação”, pois estes empenhos pertencem ao que é efêmero. Ainda o mais vigoroso de seus esforços está condenado ao fracasso, da mesma maneira que a flecha disparada para o alto, esgotada a energia, deverá inevitavelmente cair ao solo. Assim é que, apesar de todos os esforços, será certo que ao final encontrar-se-ão de novo na roda da vida e da morte. Ao se entregarem a tais práticas revelam que não alcançaram a compreensão do verdadeiro significado do Buda. Certamente que a energia empregada para suportar tão desnecessário sofrimento constitui um erro gigantesco. Chih Kung diz em algum outro lugar: “Se não encontrares um mestre capaz de transcender os mundos, ireis engolindo os remédios do Dharma Mahayana completamente em vão”.

Se seguirem agora a prática de manter suas mentes quietas em todos os momentos, tanto quando caminham como quando permanecem em pé, sentados ou deitados, resolvidos a não criarem pensamentos nem dualidade, em não confiarem nos demais nem apegarem-se a coisa alguma; não fazendo outra coisa senão observar como tudo segue seu curso durante o dia; como se estivessem muito doentes para se preocuparem com algo; mantendo-se desconhecidos para o mundo; inocentes de toda incitação para serem conhecidos ou desconhecidos; com sua mente como um bloco de pedra que não se preocupa com falhas: então todos os dharmas penetrariam completamente em seus entendimentos. E logo se veriam firmemente estabelecidos no desprendimento. Assim, pela primeira vez em suas vidas descobririam que suas reações aos fenômenos decresceriam e, finalmente passariam além do Mundo Tríplice; e as pessoas diriam que um novo Buda surgiu no mundo. O conhecimento puro e desapaixonado implica que colocamos um fim ao incessante fluir dos pensamentos e das idéias, pois dessa maneira cessamos de produzir carma que conduz ao renascimento, em qualquer de suas formas, seja na forma de deuses, de homens ou de seres atormentados no inferno.

Logo que cessa todo o processo mental, não se forma mais nenhuma partícula de carma. Então, inclusive nessa vida, a mente e o corpo se convertem na mente e no corpo de um ser completamente liberado. E supondo que isso não tenha por consequência imediata renascimentos posteriores, a menos que alguém esteja certo de renascer em situação propícia aos seus desejos. O Sutra declara que os bodhisatvas tomam um novo corpo de qualquer que seja a forma desejada. Porém se repentinamente perdem a faculdade de manter a mente livre de qualquer pensamento conceitual, ligações com a forma lhes arrastariam a um novo mundo fenomenal e cada uma das formas criaria para eles um carma demoníaco.

Com as práticas dos budistas da Escola Terra Pura acontece o mesmo, pois estas práticas todas produzem carma; por isso as chamamos impedimentos do Buda. Seja como for que obstruam a Mente, a cadeia de causa e efeito se agarra prontamente ao iniciante, arrastando-o ao estado dos não liberados.

Donde todos os dharmas tais como os que pretendem conduzir a obtenção de Bodhi, são irreais. As palavras do Buda Gautama têm validade meramente como expedientes eficazes para tirar os homens da escuridão da ignorância maior. É como pretender que as folhas amarelas são de ouro para conter o pranto de uma criança. Samyak-sambhodi (Conhecimento Supremo) é o nome que expressa a compreensão de que não existem Dharmas válidos. Se não compreendeis isto, de que servirão tais bagatelas? Em harmonia com as condições de suas vidas atuais, deveriam ir adiante, aproveitando as oportunidades com que se depararem para reduzir a produção cármica acumulada em vidas anteriores, e sobretudo, deveriam evitar a acumulação de uma nova produção.

A Mente está repleta de claridade radiante, assim abandonem a escuridão dos seus antigos conceitos. Ching Ming disse: “Despojem-se de tudo”. A frase do Sutra do Lótus referente aos vinte anos inteiros passados transportando esterco, simboliza a necessidade de afastar de suas mentes tudo quanto induza a formação de conceitos. Em outra passagem do mesmo Sutra se identifica os sofistas e a metafísica com o montão de esterco que temos que carregar. Assim é que a “Matriz dos Tathagatas” é intrinsecamente vacuidade e silêncio, que não contém dharmas individualizados de nenhuma espécie. Razão pela qual o Sutra diz: “Os reinos inteiros de todos os Budas são igualmente vazios”.

Embora as pessoas falem do Caminho dos Budas como algo suscetível de ser alcançado por meio de práticas piedosas e do estudo dos sutras, vocês não devem dar ouvidos a essas idéias. Uma percepção súbita e imprevista como um piscar de olhos, de que o sujeito e o objeto são um, levarão vocês a uma compreensão profundamente misteriosa e inefável; e com esta compreensão despertarão para a verdade do Zen.  Quando encontrarem alguém que, todavia não compreendeu ainda, devem abster-se de reivindicar algum conhecimento. Talvez estejam satisfeitos com sua descoberta do Caminho que leva à iluminação. No entanto, se deixarem persuadir-se por ele, não experimentarão satisfação alguma, porém sofrerão pesar e desilusão. O que tem a ver pensamentos semelhantes aos seus com o estudo do Zen? Embora quando obtiverem de sua parte algum “método” superficial não será outra coisa senão um dharma construído com o pensamento que nada tem a ver com o Zen. Assim Bodhidharma que esteve absorto em meditação em frente a uma parede; não procurou conduzir as pessoas a formarem opiniões. Como está escrito: “Retirar da mente inclusive os princípios que levam à ação é o verdadeiro ensinamento dos Budas, enquanto que o dualismo pertence à esfera dos demônios”. Nossa natureza verdadeira é algo que não se perde nunca, nem mesmo nos momentos dos erros, nem a obtemos no momento da iluminação. É a natureza do Bhutatathata, na qual não existe nem ilusão nem justa compreensão. Ocupa o vazio por toda a parte e é intrinsecamente da mesma substância da Mente Única. Como podem então, existir fora do Vazio os objetos criados por suas mentes? O vazio não tem em essência dimensões espaciais, nem paixões, nem atividades, nem ilusões, nem justa compreensão. Devem compreender com clareza que nele não existem coisas, nem homens, nem Budas; pois este vazio não contém nem a mais ínfima partícula de coisa alguma que possa observar-se espacialmente; que não depende de nada, nem a nada está apegado. Interpenetra tudo e sua beleza não tem mácula. É, enfim, o Absoluto, por si mesmo existente e não-criado. Como pode então, sequer ser assunto de discussão que o Buda Verdadeiro não tem boca, nem predica o Dharma? Ou, que o ouvir Verdadeiro não requer ouvidos? Pois quem poderia ouvi-lo? Eis aqui que é uma jóia de preço imensurável.

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ANEDOTAS

 27. Nosso mestre é original de Fukien; porém fez seus votos no monte Huang Po desse município, quando era ainda muito jovem 1. No centro da testa tinha uma pequena protuberância em forma de pera. Sua voz era suave e agradável, era de caráter modesto e plácido. Alguns anos depois de ser ordenado, durante uma viagem ao monte T’ien T’ai, encontrou-se com um monge, com o qual rapidamente sentiu uma intimidade de um velho amigo; então continuaram juntos sua viagem. Encontrando o caminho obstruído pelo transbordamento do rio da montanha nosso mestre apoiou-se em seu bastão e se deteve, ante o qual seu companheiro lhe rogou que prosseguisse.

– Não; vai você primeiro – disse o nosso mestre; e seu companheiro colocou a boiar o volumoso para-sol de palha que lhe servia de guarda-chuva e passou para a outra margem, então suspirou o mestre: – Permiti que esse indivíduo me acompanhasse, quando deveria tê-lo suprimido com um golpe de meu bastão! 2

1. Esta montanha foi onde o Venerável Hsi Yün recebeu o nome pelo qual é mais conhecido comumente até hoje em dia.

2. Esta anedota quer dizer que o outro monge estava exibindo poderes paranormais que nunca devem ser usados senão em casos de extrema necessidade.

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28. Uma vez, certo monge, ao despedir-se do mestre Kuie Tsung, lhe perguntou aonde se propunha ir. – Tenho intenção de visitar todos os lugares onde se ensinam os cinco gêneros de Zen – respondeu. – Ah! – Exclamou Kuie Tsung – , em outros lugares talvez existam cinco gêneros: aqui temos somente Um. Porém quando o monge inquiriu qual era este gênero, recebeu de repente um golpe. – Entendi, entendi! – gritou agitado. – Fala, fala! Esbravejou Kuei Tsung; porém quando o monge se dispunha a falar algo mais, recebeu outro golpe.

Logo após, o mesmo monge chegou ao monastério de nosso mestre e como Huang Po lhe perguntara de onde vinha, explicou que havia deixado recentemente Kuei Tsung.

– E que instruções recebestes dele – perguntou o mestre, e o monge referiu-se a história anterior.

Na próxima assembleia, o mestre tomou esta anedota como texto de sua lição e disse:

– O mestre Ma (Outro nome de Kuei Tsung) superava os Oitenta e Quatro Profundamente Iluminados. Todas as perguntas que as pessoas lhes faziam não valiam mais do que o lodo hediondo que satura um lamaçal. Kuei Tsung pode ser considerado mestre de grande valor.

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29. Nosso mestre assistiu uma vez uma assembléia na Oficina dos Comissários do Salão Imperial, a qual também assistia o imperador T’ai Chung na qualidade de sramanera (leigo). O imperador deu-se conta de que o nosso mestre entrava no salão de meditação e fazia uma tríplice saudação ao Buda, por esta razão perguntou:

– Se não temos de buscar coisa alguma do Buda, do Dharma e da Sangha, o que busca Vossa Reverência com tais prostrações?

– Embora nada espere do Buda, do Dharma, nem da Sangha, tenho por costume mostrar respeito dessa maneira.

– Porém de que serve isso? – insistiu o sramanera, ao dizer isso recebeu uma inesperada bofetada e exclamou – Oh, que rudeza!

– Como? – exclamou o mestre – Por que fazer distinções entre rudeza e refinamento? – e dizendo isso administrou outra bofetada, fazendo com que o leigo buscasse acomodação em outro lugar 1.

1. O fato de que Huang Po atreveu-se a esbofetear o imperador, o Filho do Céu, indica tanto o imenso prestígio pessoal do mestre como a total ausência de temor que resulta logicamente de uma firme convicção de que a vida é só um sonho. A complacência do imperador em aceitar os golpes sem revidar ou puni-lo, indica a profundidade de sua admiração pelo mestre!

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30. Durante suas viagens nosso mestre fez uma visita a Nan Ch’üan (seu superior). Um dia à hora de comer, tomou sua cuia e sentou-se em frente a Nan Ch’üan. Ao nota-lo ali, Nan Ch’üan curvou-se para recebê-lo e lhe perguntou: – Há quanto tempo Vossa Reverência segue o Caminho?

– Desde antes do começo da era de Bhisma Raja (praticamente um eternidade) – respondeu ao mestre.

– Verdade? – exclamou Nan Ch’üan- Parece então que o mestre Ma (Nan Ch’üan) tem aqui um digno neto – logo após nosso mestre foi embora em silêncio.

Uns dias depois, quando nosso mestre saía, Nan Ch’üan observou: – V. Reverência é um homem muito corpulento. Por que, então levar um guarda sol de tamanho tão ridículo? – O que! Ele contém um grande número de milhares de cosmos!1 – E o que tenho com isso? Perguntou Nan Ch’üan; porém o mestre fechou o guarda sol e foi embora.   

1.     Assim como a primeira parte da anedota implica coexistência com a eternidade, a segunda demonstra a coexistência com o Vazio. Quando o mestre se vai, implica que venceu a discussão. Nan Ch’üan reconhece a derrota com uma tríplice prostração.

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31. Outro dia nosso mestre se encontrava sentado na sala de chá quando se aproximou Nan Ch’uan para perguntar-lhe:

– O que quer dizer “uma clara compreensão íntima da natureza búdica resultado do estudo de dhyana e prajna?

– Quer dizer – respondeu-lhe nosso mestre – que de manhã até a noite não se deve confiar em coisa alguma.

– Mas, isso por acaso não é mais um conceito de Vossa Reverência sobre seu significado?

– Como iria eu ser tão presunçoso?

– Tenha em conta Vossa Reverência que muitas pessoas pagariam dinheiro contável e sonante por água de arroz; porém a quem se iria pedir algo por umas sandálias de palha como essas feitas em casa?

Ao ouvir isso nosso mestre permaneceu calado.

Mais tarde Wei Shan se referiu ao incidente a Yang Shan e lhe perguntou se o silêncio de nosso mestre colocava em evidencia sua derrota.

– Oh, não! – contestou Yang – É sabido muito bem que Huang Po tem a astúcia de um tigre.

– Em verdade a sua profundidade não tem limites – exclamou seu interlocutor 1.

1. Nan Ch’uan empregou um termo que era anátema para Huang Po: “conceito”. Seu silêncio foi profundamente significativo; implicava que o mestre jamais se entregava aos conceitos.

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32. Em certa ocasião nosso mestre pediu permissão para ausentar-se e Nan Shan lhe perguntou aonde ia.

– Vou apenas colher algumas verduras.

– Como vai cortá-las?

Nosso mestre puxou sua faca, em vista disso Nan Chuan observou:

– Bom; isso fica bem para um convidado; porém não para um anfitrião.

Nosso mestre mostrou sua apreciação com uma prostração 1.

1. Esta é uma anedota difícil de entender e interpretar… (que tal arriscar a sua interpretação?)

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33. Um dia apresentou-se ao nosso mestre um grupo de cinco noviços. Um deles, ao invés de fazer a costumeira prostração, permaneceu de pé e o saudou um tanto indiferentemente com um leve movimento de mãos juntas.

– Por acaso você sabe o que deve fazer para ser um bom cão de caça? – perguntou o mestre.

– Tem que farejar o rastro do antílope.

– E supondo que não deixe rastro, como seguirá então?

– Deverá seguir as marcas das pegadas.

– E se não houver marcas das pegadas, que deverá fazer?

– Todavia será possível seguir a pista do animal.

Porém que acontecerá se não houver uma pista sequer? Como se seguirá então?

– Nesse caso – disse o recém chegado – haveria certamente um antílope morto.

Nosso mestre não disse nada mais naquele momento; porém na manhã seguinte depois do seu sermão perguntou:

– Queira o monge da caça do antílope de ontem dar um passo adiante? – O monge assim fez e o mestre perguntou: – Ontem, meu caro amigo, ficaste sem nada dizer, como foi? – e como o monge não respondeu coisa alguma, continuou: – Ah, pode considerar-se como um monge verdadeiro; porém não é mais que um aprendiz de noviço 1.

1. A primeira observação de Huang Po implica que ele estava disposto a conceder ao recém chegado a igualdade demandada tacitamente por sua maneira comum de saudar, sempre que demonstra-se merecê-la. Somente quando o outro exibiu sua ignorância do Zen foi que o mestre decidiu dar-lhe uma reprimenda em público. O antílope, naturalmente, simboliza a Mente Única, a qual por ser inteiramente desprovida de atributos “não deixa pista”. Um antílope morto implicaria um estado de extinção.

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34. Uma vez, quando nosso mestre concluíra a primeira das assembléias cotidianas do monastério de K’ai Yuan, próximo a Hung Chou, encontrava-me casualmente no recinto do monastério. Pouco depois notei uma pintura mural, e interrogando o monge que estava a cargo da administração do monastério, inteirei-me de que era o retrato de um monge famoso.

– Verdadeiramente? – disse eu -, sim; vejo a semelhança a minha frente; porém onde está o homem representado? – Minha pergunta foi recebida em silêncio ; foi então que observei: – mas seguramente existem monges Zen aqui nesse templo, não? – sim – respondeu o administrador do monastério – Existe UM *.

Depois disso pedi uma audiência com o mestre e lhe repeti a recente conversação.

– P’ei Hsiu – exclamou o mestre.

– Sim Senhor! – disse respeitosamente.

– Onde está VOCÊ?

Compreendendo que não havia resposta possível a tal pergunta, apressei-me a rogar a nosso mestre que voltasse a sala e continuasse seu sermão.

(*). Esta profunda resposta tem duplo significado: “um” no sentido de Huang Po, e “UM” a não dualidade de todas as coisas.

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35. Quando o mestre voltou ao seu lugar na sala de reunião, começou dizendo 1:

– Vocês são semelhantes aos bêbados. Não sei como se arranjam para ficar em pé, estando tão tontos como estão. Vamos! Qualquer um morreria de rir ao vê-los. Tudo parece tão fácil que não sei por que tiveram que viver para ver um dia como esse. Não podem chegar a compreender que em todo o império de T’ang 2 NÃO EXISTEM “mestres versados” em Zen?

Nesse ponto um dos monges assistentes perguntou: – Como pode Vossa Reverência dizer isso? Nesse mesmo momento, como todos podem ver, estamos em frente a alguém que apareceu no mundo destinado a ser instrutor de monges e orientador de homens.

– Tenham em conta que não digo que não haja Zen – respondeu o mestre – Somente indiquei que não existem MESTRES.

Mas tarde Wei Shan referiu-se a esta conversação a Yang Shan e lhe perguntou o que significava, e este lhe disse: – Este cisne é capaz de extrair leite puro de uma mistura adulterada. É claro que ele não é um pássaro comum. – Ah! – respondeu o interlocutor -, Sim; a insinuação que fez foi muito sutil. 3

1.     Uma continuação do 34.

2.     China.

3.     A observação final do mestre insinua, entre outras coisas, a impossibilidade de ensinar Zen, o qual só pode ser devidamente apreendido por meio da compreensão intuitiva que surge em nós. O silêncio do administrador do monastério foi devido a que a existência de indivíduos, mestres Zen ou qualquer outra coisa, é completamente transitória. A absorção no Zen conduz a uma experiência de unidade em que “um” e “outro” já não são válidos. O UNO não é nem mestre de Zen nem nenhuma outra coisa.

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36. Um dia trouxe uma estátua de Buda e ajoelhando-me respeitosamente diante do mestre, lhe roguei que me outorga-se um título honorífico sagrado.

– P’ei Hsiu – exclamou.

– Sim, mestre?

– Como é que os nomes te preocupam?

O único que me foi possível fazer foi prostrar-me em silêncio.

Em outra ocasião aconteceu que lhe ofereci um poema que havia escrito. O tomou com as mãos; porém logo se sentando o empurrou para fora de seu alcance.

– Compreendes? – perguntou-me.

– Não mestre.

– Porém, por que não compreendes? Pensa um pouco. Se pudéssemos expressar as coisas assim, com papel e tinta, qual seria o propósito de uma escola como a nossa?

Meu poema dizia assim:

 Quando surgiu a intuição da Mente,

 O excelente aluno de pérola na testa

 permaneceu dez anos junto ao rio Chech’uan.

 Mas logo, qual cálice de um lotos transportado pelas ardilosas águas da vida fixou sua digna residência às margens do Chang.

 Milhares de discípulos seguiram seu caminho vindos à sua morada com ar draconiano trazendo

 das flores longínquas a fragrância;

 Servem a seu mestre com estrita observância,

 Acalmando da mente o contínuo vai e vem.

 Quem sabe qual deles

 – aspirantes a Budas –

 Resolverá o mistério do temor e das dúvidas,

 Com a inefável Transmissão do Zen?

 Nosso mestre logo respondeu com outro poema:

  A Mente é um oceano

 Sem praias ou ribeiras.

 Não é possível descrevê-la

 Com corretas palavras.

 As palavras são lótus

 De atrativas cores,

 Que eficazmente curam

 As dores menores.

 Eu, embora ocioso às vezes

 E mão sobre mão.

 Não foi por cultuar

 O vão palavrório

 Que a levei

 Até meu coração 1.

 1. O poema de Huang Po encerra a ideia de que a Transmissão somente pode recair naquele que recebeu uma experiência intuitiva condutora à percepção direta da Mente Única. Portanto, aqueles que passam seu tempo em discussões metafísicas ou intelectuais, o mestre não lhes dá senhas. (Sinais – informações)

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37. Nosso mestre disse:

– Os que desejam avançar no Caminho devem descartar primeiro o sedimento acumulado por ensinamentos heterogêneos. Devem, sobretudo, evitar a busca de alguma coisa objetiva ou apegar-se a qualquer coisa que seja. Logo após escutar as doutrinas mais profundas, devem comportar-se como se uma brisa ligeira lhes houvesse acariciado os ouvidos, como se uma brisa deleitosa houvesse passado em um abrir e fechar de olhos. Não devem de nenhuma maneira, tentar seguir tais doutrinas. Trabalhar de acordo com essas instruções é alcançar profundidade. A contemplação fixa dos Tathagatas entranha a mentalidade do Zen de alguém que deixou de lado a roda dos nascimentos e mortes para sempre. Desde os dias em que Bodhidharma não transmitiu outra coisa que a Mente Única, não houve outro Dharma válido. Assinalando a identidade da Mente e do Buda 1, mostrou como podemos transcender para formas mais elevadas de Iluminação. Não resta dúvida alguma de que não deixou atrás de si outro pensamento senão este. Se desejarem entrar usando nossa escola como entrada, este deve ser o único Dharma a seguir.

Se vocês pensam obter algo com mestres de outras doutrinas, por que razão vieram aqui?  Assim é que se disserem que têm a mais leve intenção de entregarem-se aos pensamentos conceituais, então suas intenções lhes tornarão presas dos demônios. Do mesmo modo a consciente inexistência de tal propósito e inclusive a consciência de que não têm a necessidade de tal propósito, será suficiente para jogá-los ao poder dos demônios. Porém não serão demônios externos; serão demônios criados por suas mentes mesmas. A única realidade que existe é o “Bodhisatva” cuja existência é totalmente não-manifesta, inclusive no sentido espiritual: o Sem Rastro. Se alguma vez chegarem a crer em algo mais que a pura existência transitória dos fenômenos, terão caído no grave erro conhecido da crença herética na vida eterna; porém, se ao contrário, tomam a vacuidade intrínseca dos fenômenos como indicando a mera vacuidade, então terão caído em outro erro: a heresia da extinção total 2.

 Assim, pois “o Mundo Triplo é tão somente Mente; as miríades de fenômenos são uma só Consciência” é o que se ensina àqueles que previamente sustentaram idéias ainda mais falsas e sofreram erros de percepção 3 ainda mais graves. De modo similar, o ensinamento de que o Dharmakaya 4 é algo que se alcança tão somente depois de realizar a completa Iluminação, tem somente por objeto converter os santos Theravadas, salvando-os dos erros mais graves. Tendo achado o Buda Gautama, que estas opiniões predominavam, refutou duas classes de idéias mal entendidas: a noção de que a Iluminação conduz a uma percepção da substância universal composta de partículas que alguns consideram grosseiras e outros sutis 5.

 Como é possível que Buda Gautama que negou qualquer opinião semelhante às mencionadas, pudesse haver originado as concepções presentes da Iluminação? Porém, como esses ensinamentos são ainda ensinados comumente, as pessoas se envolvem na dualidade de desejar a “luz” e de afastar a “escuridão”. Em sua ansiedade por buscar a Iluminação por um lado, e para escapar das paixões e da ignorância da existência corporal, por outro lado, concebem o Buda Iluminado e os seres sencientes não iluminados, como se fossem entidades separadas. A contínua propensão de usar tais conceitos dualísticos lhes conduzirão a posteriores renascimentos nas seis ordens de seres, vida após vida, eras após eras, para sempre.  E qual é a causa disso? A causa é a falsificação dos ensinamentos de que a fonte original dos Budas é a Natureza que existe por si mesma. Eu me permito assegurar-lhes que o Buda não reside na luz, nem os seres sensientes residem nas trevas, uma vez que a Verdade não permite tais distinções. O Buda não é poderoso, nem os seres sensientes são frágeis, pois a Verdade não dá lugar a tais distinções. O Buda não é iluminado nem os seres sensientes são ignorantes, pois a Verdade não permite distinções semelhantes. O que acontece é que vocês tomam ao seu cargo explicar o Zen!

 Tão logo alguém abre a boca, surgem os desatinos. As pessoas, ou bem falam dos ramos e fazem caso omisso das raízes, ou bem se esquecem da realidade do mundo “ilusório” e falam somente da Iluminação. Ou, de outro modo, fofocam sobre as atividades cósmicas que conduzem às transformações, enquanto descuidam a substância, da qual se originaram; na verdade, jamais encontrarão proveito algum nessas discussões.

 Digamos, pois, uma vez mais: todos os fenômenos carecem basicamente de substância própria, embora não possa dizer agora que sejam inexistentes: O carma produzido, nem por isso existe; o carma que se destruiu, nem por isso deixou de existir. Inclusive sua raiz carece de existência, pois tal raiz não é raiz. Além disso, a Mente não é Mente, já que, seja lá o que for o significado desse termo, está muito longe de ser a realidade que simboliza. A forma, igualmente, não é realmente forma, assim, pois se afirmo agora que não existem fenômenos e que não há Mente Original, começarão a compreender algo do Dharma intuitivo transmitido silenciosamente à Mente com a Mente. Posto que os fenômenos e os não fenômenos são uma mesma coisa, não há nem fenômenos nem não fenômenos e a única transmissão possível é a da Mente para a Mente.

 Quando verificam semelhante faísca de pensamento em suas mentes e a reconhecem como um sonho ou uma ilusão, então podem entrar no estado alcançado pelos Budas do passado (não é que os Budas do passado existam realmente nem que os Budas do futuro não tenham vindo ainda à existência). Sobretudo, não tenham desejos de converterem-se em um Buda; sua única motivação deve consistir, logo que a um pensamento seguir outro pensamento, em evitar apegar-se a algum deles. E não devem abrigar a mais leve ambição de ser um Buda aqui e agora. Ainda que surgisse um Buda diante de vocês, não pensem nele como se fosse iluminado ou estivesse “alucinado”, como se fosse “bom” ou “mau”. Apressem-se a se livrarem do desejo de apegarem-se a ele; pois isso os separará dele em um abrir e fechar de olhos. Não o agarrem de forma alguma. Não tentem detê-lo, pois nem milhares de fechaduras poderiam encerrá-lo, nem poderia ser atado com 10.000 metros de corda. Assim sendo, esforcem-se em afastá-lo e esquecê-lo.

 Agora esclarecerei com luz meridiana como deverão proceder para manterem-se livres desse Buda. Considerem a luz do Sol! Talvez digam que está próxima, no entanto, se a seguirem de mundo em mundo, nunca a colhereis em suas mãos. Então talvez a qualifiquem de longínqua; porém eis aqui que a estarão vendo diante de seus olhos. Sigam-na, e eis que se escapa de vocês; afastem-se e as alcançarão em qualquer lugar. Não podem possuí-la nem destruí-la. Desse exemplo podem deduzir o que acontece com a verdadeira natureza de todas as coisas e, de hoje em diante, não terão mais necessidade de se afligirem nem de se preocuparem com tais coisas.

 Muito bem, precavenham-se de ir dizendo que minhas recomendações de suprimir o Buda é profana, ou que a comparação do Buda com o Sol foi piedosa, como se eu tivesse oscilado de um ao outro extremo. Os adeptos de outras escolas ficarão então de acordo com vocês; porém a Escola do Zen não admitirá nem a profanação no primeiro caso nem a piedade no segundo. Nem consideraremos o primeiro caso como de acordo com os ensinamentos do Buda e o segundo como o que se poderia esperar de ignorantes seres sencientes 6.

 Assim, pois todo o universo visível é o Buda, e igualmente o são todos os sons; unam todos a um único princípio e todos os demais serão idênticos. Ao ver algo, vê-se tudo. Quando se percebe uma mente individual, se percebe todas as Mentes. Logre um vislumbre de um caminho e todos os caminhos estarão compreendidos em sua visão, pois não há em nenhuma parte coisa alguma que se encontre privada do Caminho. Quando seu olhar cai em um grão de poeira, o que vê é idêntico a todos os vastos sistemas de mundos, a todos os rios, e a todas as montanhas. Contemplar uma gota d’água é contemplar a natureza de todas as águas do Universo. Além disso, ao contemplar assim a totalidade dos fenômenos, se contempla a totalidade da Mente. Todos os fenômenos são intrinsecamente vacuidade e, no entanto, esta Mente com a qual se identificam não é meramente o “nada”. Com isso quero dizer que existe; porém de um modo que é muito maravilhoso para que nós o compreendamos. É uma existência que não é existência; uma não-existência que não obstante é existência. Assim é que este verdadeiro vazio, de certo modo maravilhoso, “existe” 7.

 Segundo o que foi dito, nos é dado abarcar toda a vastidão dos universos com nossa Mente Única, ainda que sejam tão inumeráveis como os grãos de areia. Então, por que falar de “interior” e “exterior”? Tendo o mel a invariável característica da doçura, segue-se que todo o mel é doce. Falar de mel como doce e do mel como amargo seria um disparate. Como poderia ser tal coisa? Daí dizermos que o Vazio não tem interior nem exterior. O único que existe é o espontaneamente criado Bhutatathata (Absoluto). E pela mesma razão dizemos que não tem centro. O único que existe é o espontaneamente existente Bhutatathata.

 Assim, pois os seres sencientes são o Buda. O Buda é uno com eles. Ambos são constituídos inteiramente pela mesma “substância”. O universo fenomenal e o nirvana, a atividade e a imóvel placidez; todos são de uma e mesma “substância”. Acontece igualmente com os mundos e com o estado que transcende os mundos. Assim é; com os seres que passam pelos seis reinos da existência; os que experimentaram os quatro gêneros de nascimentos; todos os sistemas mundiais com suas montanhas e seus rios, a natureza de Bodhi e a da ilusão: todos eles são o mesmo. Ao dizer que todos estão constituídos pela mesma substância queremos dar a entender que seu ‘nome e forma’, sua existência e sua não existência são vazios. Os grandes sistemas de mundos, inumeráveis como as areias do Ganges, estão na realidade inseridos no vazio ilimitado único. Então, onde podem estar os Budas salvadores ou os seres sencientes a salvar? Quando a verdadeira natureza de todas as coisas que “existem”, é um “Tathata” idêntico (é o que é), como terão alguma realidade tais distinções?

 Se supuserem que os fenômenos se produzem por si mesmos, cairão na heresia de que as coisas têm uma existência própria e independente. Se, por outro lado, aceitam os ensinamentos de “anatma”, (sem eu, não-eu) este conceito os levará a fazer parte dos “Theravadas” 8.

 Vocês tentam medir todo o vazio metro a metro, centímetro a centímetro, e eu lhes repito que todos os fenômenos carecem de distinções de forma. Pertencem intrinsecamente ao estado de perfeita tranquilidade que se estende além da esfera das atividades produtoras das formas, de maneira que todas elas coexistem com o espaço e estão unidas com a realidade. Como não existem corpos que possuem forma verdadeira, falamos dos fenômenos como falaríamos do vazio; e, como a Mente carece de forma, falamos da natureza de todas as coisas como falaríamos do vazio. Ambos carecem de forma e ambos se denominam vazio. Além disso, nenhum dos numerosos ensinamentos tem existência fora de sua Mente Original. Todo esse perorar sobre Bodhi, o Nirvana, o Absoluto, a Natureza Búdica, o Mahayana, o Theravada e os Bodhisatvas e os demais é algo semelhante a tomar as folhas de outono por ouro. Usando o símbolo do punho fechado, quando se abre, todos os seres (tanto deuses como humanos) se darão conta que não há absolutamente nada dentro. Portanto, está escrito:

 Nunca jamais existiu coisa alguma.

 Onde poderá, então o pó se acumular? 9

  Se “não existiu jamais coisa alguma”, o passado, o presente e o futuro não têm nenhum significado. Por esta razão aqueles que buscam o Caminho devem penetrar nele subitamente, como uma facada. A completa compreensão desse fato deve acontecer previamente. Então, embora Bodhidharma tenha atravessado muitos países em seu caminho da Índia à China, encontrou somente um homem, o Venerável Ko, a quem pode transmitir em silêncio o sacramento da Mente, o Selo da sua Mente verdadeira. Os fenômenos, o Selo da Mente, do mesmo modo que esta é o Selo dos Fenômenos. Seja o que for a Mente, igualmente são os fenômenos: ambos são igualmente verdadeiros e participam igualmente da Natureza do Dharma, que pende no vazio. Quem quer que recebeu a intuição desta Verdade, se converteu em Buda e alcançou o Dharma. Não posso fazer por menos senão repetir que a Iluminação não pode ser agarrada, (alcançada, obtida, etc.) uma vez que o seu “corpo” não tem forma própria; nem tampouco mentalmente, pois a mente carece de forma; nem por sua natureza essencial, posto que tal natureza é a Fonte Original de onde ‘procedem’ todas as coisas, a Verdadeira Natureza de tudo quanto existe, a Realidade permanente, o Buda mesmo. Como é possível usar o Buda para apoderar-se do Buda? Usar a carência de forma para apoderar-se da carência de forma, sujeitar a mente valendo-se da mente, o vazio por meio do vazio, valer-se do Caminho para apoderar-se do Caminho? Na realidade não há nada para agarrar (perceber, alcançar, conceituar etc.); nem sequer o não agarrar se pode agarrar. Assim é que se diz: “Nada existe para alcançar”. Nós ensinamos simplesmente como compreender a Mente Original.

 Além disso, quando chega o momento da compreensão não pensem em termos de compreender, de não-compreender ou de nem compreender nem não-compreender, pois nenhum destes é algo que possa compreender-se. Este Dharma do Tathata, quando “se compreende”, “se compreende”, porém quem o “compreende” não tem mais consciência de havê-lo compreendido, e que o ignorante dele é consciente de sua incompreensão. Este Dharma do Tathata, agora são muito poucos os que chegaram a compreendê-lo, pois está escrito: “Quão poucos são os que, vivendo neste mundo, não perdem a noção de seu próprio ser!”, enquanto aqueles que procuram compreendê-lo mediante a aplicação de algum princípio especial ou mediante a criação de um ambiente particular, ou seguindo as Sagradas Escrituras, ou a uma doutrina, ou pela idade, ou com o tempo, ou mediante um nome ou palavra, ou por meio dos seis sentidos, em que se diferenciam de um boneco de madeira? Porém, se impensadamente aparecesse um homem que não formasse conceito algum baseado em um nome ou em uma forma, posso assegurar que tal homem poderia buscar-se, mundo após mundo, sempre em vão. A singularidade de sua existência lhe asseguraria a sucessão do patriarcado e conseguiria para ele a denominação de Filho Espiritual Verdadeiro de Sakyamuni: os agregados constituintes de seu ser teriam se desvanecido e ele seria o Único Eleito. Por isso está escrito: “Quando o rei alcança o estado búdico, os príncipes abandonam seu lugar para fazerem-se monges”. É difícil de interpretar essa sentença. Seu objetivo é ensinar-nos a abster-nos de buscar o estado búdico, posto que toda busca está destinada ao fracasso. Um orador gritando em cima de uma montanha, ao ouvir o eco de sua voz, talvez vá buscar sua origem no fundo do vale. Porém eis aqui que sua busca será em vão. Quando se encontrar no vale, o mesmo eco atrairá sua busca ao cume. Assim, podem passar milhares de renascimentos ou dez mil eras empenhado em encontrar a origem de tais sons. Inutilmente afrontará as turbulentas águas da vida e da morte. Melhor seria não produzir som nenhum; pois então não haveria eco: assim acontece aos moradores do Nirvana: não escutam; não conhecem; não produzem sons; não deixam marcas nem rastro: façam vocês o mesmo e apenas assim não estarão longe de serem vizinhos de Bodhidharma.

1. Absoluto

2. Como estamos compostos, na verdade, completamente pela Mente atemporal, a ideia de uma alma individual permanente e a de sua extinção total são igualmente falsas.

3. Na época de Huang Po havia uma seita chamada Wei Shih Tsung que sustentava que, embora nada existisse fora da consciência, esta última é em certo sentido uma substância e, por tanto “real”. Todavia existe.

4. O corpo do Absoluto.

5. Estas opiniões, que se dizem refutadas por Buda parecem ser similares à nova teoria científica de que a matéria do Universo é matéria mental. Essa teoria tem certa semelhança superficial com a doutrina de Huang Po: porém embora seja sem dúvida um avanço sobre a concepção materialista do século passado, se detêm muito antes da verdade tal como entende o zen.

6. Essa passagem toda é uma advertência contra um dos mais difíceis tipos de dualismo que deve ser evitado: o dualismo contido ao conceber o Buda ou Nirvana como separados de si mesmos e do samsara.  A tentativa de apagar o Buda não é mais ímpia que a tentativa de matar uma imagem de pedra, uma vez que ambos são impenetráveis a esse desígnio.

7. Esta passagem manifesta a perfeita identidade da calma sem igual do Nirvana com o inquieto fluir do universo fenomenal.

8. Anatma quer dizer: nenhum ente que se chame ego existe verdadeiramente a não ser a Mente Única, que compreende todas as coisas e lhes dá sua única verdadeira realidade.

9. Refere-se à famosa quadra de Hui Neng em seu Sutra da Plataforma, onde ele refuta toda dualidade.

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38. P: Tenha a bondade de instruir-me no que se refere à passagem dos sutras em que se nega a existência da Espada do Tathata no Tesouro da Realidade 1.

R: O Tesouro da Realidade é a natureza do Vazio. Embora todos os vastos sistemas dos mundos do Universo estejam contidos nele, nenhum deles tem existência fora da Mente. É mencionado também com o nome de Tesouro do Bodhisatva do Grande Vazio. Se o classificamos como existente ou como não-existente, ou como nem um nem outro, de qualquer maneira vem a ser como um simples chifres de carneiro 2. É como um chifre de carneiro no sentido de ser o modelo de suas ineptas buscas.

1.     A Espada do Tathata é um meio para a iluminação; o tesouro da Realidade é o Bhutatathata, o Absoluto considerado como a Fonte de todas as coisas.

2.     Os chifres de carneiro simbolizam as paixões e ilusões.

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39. P: Porém, Por acaso não existe uma Espada da Verdade, pois está escrito: “O Príncipe empunhou a Espada da Verdade do Tesouro da Realidade e partiu disposto a empreender suas conquistas”?

R: O Príncipe que empunhou a Espada é apenas uma expressão equivalente ao verdadeiro filho espiritual do Tathagata; porém se você diz que levou a espada, da a entender que ele subtraiu algo do Tesouro. Seria um disparate falar de se levar algum fragmento da Natureza do Vazio, que é a Fonte e origem de todas as coisas. Parece que se você reteve algo, não foi mais que uma coleção de chifres de carneiro.

40. P: Quando Kashyapa recebeu do Buda Gautama a transmissão da iniciação búdica, empregou palavras na transmissão posterior?

R: Sim.

P: Então, como se aventurou a fazer a transmissão com palavras, inclusive ele deveria ser incluído entre os que têm chifres de carneiro.

R: Kashyapa obteve uma compreensão direta da Mente original; então, ele não é um desses com chifres de carneiro. Quem quer que obtenha a compreensão direta da mente do Tathagata, vindo assim a compreender a verdadeira identidade do Tathagata e a perceber sua aparência real e a sua forma, pode falar aos demais com a autoridade do verdadeiro filho espiritual do Buda. Porém, eis aqui que Ananda, embora tendo servido ao mestre vinte anos, não podia perceber mais que a aparência e forma exteriores e foi, portanto, admoestado por Buda com estas palavras: “Os que concentram inteiramente sua atividade em ajudar o mundo não podem escapar de pertencer àqueles de chifres de carneiro 1.

1. Em algumas escolas budistas, o interesse principal é colocado em obras de caridade e compaixão; no Zen, a nobreza do coração e dos atos são pré-requisitos para os seguidores do Caminho, porém não fazem parte do Caminho para a liberação.

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41. P: Que quer dizer a passagem: “Manjushri estava de pé frente a Gautama com a espada desembainhada”?

R: Os “Quinhentos Bodhisatvas” alcançaram o conhecimento das suas vidas passadas e descobriram como haviam construído seu carma anterior. Trata-se de uma fábula em que os “Quinhentos” representam os cinco sentidos. Por causa do seu conhecimento do carma anterior, trataram de buscar objetivamente o Buda, a condição de Bodhisatva e o Nirvana. Essa foi a razão pela qual Manjushri tomou a espada Bodhi e a usou para destruir o conceito de um Buda tangível e é por isso que o conhecemos como o destruidor de virtudes humanas.

P: O que é que a Espada significa na realidade?

R: Significa compreender a Mente sem fazer nenhum conceito ou juízo.

P: Assim, pois a Espada empregada para destruir o conceito de um Buda tangível é alcançar a Mente. Porém, se nos é possível por um fim a tais conceitos por esses meios, como é possível destruí-los realmente?

R: Devemos usar a sabedoria que provém do não dualismo para ultrapassar a mentalidade dual formadora de conceitos.

P: Supondo que os conceitos sobre algo perceptível e da Iluminação como algo a encontrar, possam ser destruídos desembainhando a Espada da Sabedoria Indiscernível, onde precisamente se encontra essa espada?

R: Como a Sabedoria Indiscernível destrói a percepção e seu oposto, deve necessariamente pertencer também ao Imperceptível 1.

P: O conhecimento não pode ser usado para destruir o conhecimento nem a espada para destruir a espada2.

R: A espada destrói na verdade à espada: destroem-se mutuamente; e fica a não-espada para que você a apreenda. O conhecimento destrói na verdade o conhecimento: um conhecimento invalida o outro conhecimento e então permanece o não-conhecimento para que você o apreenda. É como se mãe e filho perecessem juntos 3.

1. Não compreensível, não apreensível.

2. O interrogante parece ter forjado um paradoxo aos quais Huang Po era aficionado, talvez como uma indicação de algum suposto avanço para a verdade.

3. O conhecimento transcendental invalida o conhecimento relativo, porém o primeiro se descobre que não é conhecimento no sentido comum, pois vemos que o conhecedor e o conhecido são UM.

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42. P: O que se quer dar a entender com a expressão “ver a Natureza da Mente”?

R: Quer dizer que a Natureza e sua percepção da mesma são uma e a mesma coisa. Não há algo que esteja além dela. A Natureza e a audição dela são uma e mesma ‘coisa’: não pode ser utilizada para ouvir algo que está acima dela. Se você formar um conceito da verdadeira natureza de qualquer coisa, enquanto visível ou audível, dará lugar à formação de um dharma de distinção. Hei de repetir que o percebido não pode perceber. Por acaso seria possível implantar uma cabeça sobre a sua cabeça? Darei um exemple para tornar mais claro o que quero dizer. Imagine umas pérolas soltas no fundo de uma tigela, umas grandes outras pequenas. Cada uma delas ignora por completo a existência das outras e nenhuma delas causa a menor obstrução às demais. Durante o período de sua formação não disseram: “Agora estou no período formativo”; e quando começarem a decair não dirão: “Agora estou em decadência”. Nenhum dos seres nascidos nas seis formas de vida mediante os quatro gêneros de geração são exceção a essa regra.  Os Budas e os seres sencientes não têm percepção uns dos outros. Os quatro graus dos adeptos do Theravada suscetíveis de entrar no Nirvana, não percebem nem são percebidos pelo Nirvana. Os adeptos do Theravada que alcançaram as “três etapas da santidade” e que possuem “as dez características de excelência”, nem percebem nem são percebidos pela Iluminação. O mesmo acontece com todos os demais até o limite do fogo e da água, ou até a terra e o firmamento. Estes pares de elementos não se percebem uns aos outros. Os seres sencientes não entram no Dhamadhatu 1 nem os Budas saem dele. No Dharmata 2 não existem idas nem vindas, nem existe coisa alguma perceptível. Assim sendo, a que vem este falar de “eu vejo”, “eu ouço”, “eu tenho uma intuição por efeito da Iluminação”, “ouço o Dharma dos lábios do Iluminado” ou dos Budas que aparecem no mundo para predicar o Dharma? Katyayana foi repreendido por Vimalakirti por empregar essa mentalidade perecível pertencente ao estado do efêmero para transmitir a doutrina da verdadeira existência da matéria.

Posso assegurar que todas as coisas sempre estiveram liberadas da sujeição desde o princípio mesmo 3. Então, por que aventurar-se a explicá-las? Por que tentar purificar o que nunca foi profanado?

Por essa razão está escrito: “O Absoluto é Tathata; como poderíamos conceitua-lo”? Vocês, todavia concebem a Mente como existente ou não existente, como pura ou impura, como algo que têm de estudar como se estuda um fragmento de conhecimento categórico, ou como um conceito. Qualquer dessas definições é suficiente pra fazer-nos retroceder à interminável roda de renascimentos e de mortes. O homem que percebe as coisas trata sempre de identificá-las para agarrá-las. Quem usa a mente dessa forma, suporá com certeza que o progresso procede por etapas. Se vocês são desse parecer, estão longe da verdade como a Terra do céu. A que vem falar de “conhecer nossa própria natureza”?

1.     Absoluto.

2.     Natureza do Absoluto.

3.     Quer dizer, que nunca perderam realmente sua identidade com o Absoluto.

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43. P: Vossa Reverência diz que nossa natureza original e o ato de conhecê-la são um e o mesmo. Isto pode ser assim tão somente com a condição de que essa natureza seja totalmente indiferenciada. Como explica, pois, que ainda supondo que não existam objetos verdadeiros a perceber, vejamos, no entanto, o que está próximo a nós e não nos seja dado ver o que se encontra longe?

R: isso se deve a uma falta de compreensão criada por suas próprias ilusões. Não se pode arguir que a Natureza Universal contém de fato objetos verdadeiros, fundando-se na suposição de que a expressão “nenhum objeto verdadeiro a perceber” seria verdadeira se não houvesse nada do gênero que denominamos perceptível. A natureza do Absoluto não é nem perceptível nem imperceptível; o mesmo acontece aos fenômenos. Porém para quem descobriu sua Natureza Verdadeira, como é possível que exista um lugar ou um objeto separado dela? Assim, as seis formas de vida que provêm dos quatro gêneros de nascimento, juntamente com os grandes sistemas universais com seus rios e montanhas são todos da mesma substância da nossa própria natureza. Por isso diz-se: “A percepção de um fenômeno é a percepção da Natureza Universal, uma vez que os fenômenos e a Mente são Um e o mesmo”. Apenas porque nos apegamos às formas externas que chegamos a ‘ver’, a ‘ouvir’, a ‘sentir’, a ‘cheirar’, a ‘saborear’ e a ‘conhecer’ as coisas como entidades individuais. A percepção verdadeira estará além de suas possibilidades enquanto entregarem-se à estas satisfações 1.

 Por tais meios vocês estariam entre os seguidores das doutrinas Theravada e Mahayana, correntes que confiam na percepção profunda para chegar à verdadeira compreensão. Portanto, vêem o que está perto e deixam de ver o que está longe; porém ninguém que está bem encaminhado pensa assim. Eu lhes asseguro que não existe “interno” e “externo” nem “próximo” nem “longe”. A natureza fundamental dos fenômenos se encontra em vocês; porém, vocês não vêem sequer isso; e assim, continuam falando de suas inabilidades para ver o que está longe. Que significado poderiam obter de tudo isso?

1.     Argumenta-se que, embora existam entes individuais no sentido superficial, eles nunca perdem sua unidade fundamental.

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44. P: Que orientação de conduta nos oferece V. Reverencia para aqueles de nós que acham isto muito difícil de compreender?

R: Não tenho coisa alguma a oferecer.  Nunca tive nada que oferecer aos demais. É por deixar que certas pessoas lhes guiem por falsos caminhos que estão sempre buscando intuição e tentando compreender? Não é por ventura um caso de mestres e discípulos que caem todos na mesma embrulhada insolúvel? O único que necessitam recordar são os seguintes preceitos:

1º. Aprender a não ser completamente receptivos para com as sensações causadas pelas formas externas, diminuindo assim seus corpos da receptividade ao externo.

2º. Aprender a não prestar atenção alguma à distinção entre isto e aquilo, originada por suas sensações, evitando assim suas mentes de distinções inúteis entre um e outro fenômeno.

3º. Cuidar de não fazer distinções quanto a sensações agradáveis e desagradáveis, evitando assim suas mentes de vans discriminações.

4º. Evitar avaliar as coisas, poupando assim sua mente da cognição seletiva.

Um só momento de pensamento dualístico é suficiente para arremessar-nos na cadeia dos doze elos interdependentes 1. É a ignorância [1º. Elo] que faz girar a roda da vida, criando assim a cadeia interminável de causas e efeitos cármicos. Esta é a lei que governa nossa vida inteira até a época da velhice e morte. [12º. Elo]2

A este respeito diz-se que Sudhana, depois de buscar Bodhi em vão em cento e dez lugares, dentro da duodécima esfera da causalidade, encontrou por fim Maitreya o qual o enviou a Manjusri. Manjusri representa a sabedoria, que aponta aqui a nossa ignorância primordial sobre a realidade. Se, conforme um pensamento sucede ao outro, continuamos buscando a sabedoria fora de nós mesmos, haverá um processo contínuo que surge, que se extingue e que é substituído por outro. E essa é a razão pela qual, vocês, monges, seguem experimentando o nascimento, a velhice, a doença e a morte, acumulando carma com seus efeitos correspondentes; que são o “vir-a-ser” e a extinção dos “cinco agregados” ou, melhor dizendo, “os cinco skandas”. Então, se pudessem evitar a formação de cada pensamento particular, então fariam com que se desvanecessem os Dezoito Reinos dos Sentidos 3. Quão digna de um deus seria sua recompensa e quão exaltado conhecimento seria despertado em suas mentes! Semelhante mente poderia chamar-se a cabeça do Tathagata. Porém enquanto permanecerem perdidos em atrativos, condenarão seus corpos a serem cadáveres, ou como se expressa às vezes, a serem corpos sem vida habitados pelos demônios!

 

  • 1.     Os 12 Elos da Originação Interdependente – A Roda da Vida

2.     Não se nega aqui o livre arbítrio, pois seu emprego adequado pode romper a cadeia causal, princípio aceito por todas as escolas budistas.

3.     Os 6 sentidos + os 6 objetos dos sentidos + as 6 consciências relativas aos sentidos = Os dezoito Dhatus.

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45. P: Vimalakirti mora no silêncio. Manjusri oferece loas. Como é possível que tenham ultrapassado realmente a Entrada da Não-Dualidade?

R: A Entrada da Não-Dualidade é a Mente Original de vocês. A fala e o silêncio dizem, são conceitos relativos, nada se manifesta. Foi por isso que Manjusri ofereceu loas.

P: Vimalakirti permaneceu calado. Isso quer dizer que o som está sujeito a cessação?

R: A fala e o silêncio são a mesma coisa. Não existe distinção entre eles. Por isso está escrito: “Nem a natureza verdadeira nem a raiz do ouvido de Manjusri estão sujeitos a cessação”. Assim o som da voz de Tathagata é imperecível e não é possível que haja algo que se possa descrever como o tempo antes que começou a predicar ou o tempo depois que cessou de predicar. A predicação do Tathagata é idêntica ao Dharma que ensinou, uma vez que não há distinção entre predicação e o predicado; assim como tampouco existe entre os vários fenômenos e os corpos revelados e glorificados do Buda, dos bodhisatvas, dos sravacas, dos sistemas do mundo com suas montanhas e rios, ou com a água, os pássaros e tudo mais. A predicação do Dharma é ao mesmo tempo vocal e tácita. Embora alguém fale durante todo o dia, nem uma só palavra é falada. Assim sendo, somente o silêncio é próprio do Essencial.

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46 P: É verdade que aos sravacas 1 é dado somente desfazer sua forma na esfera do sem forma que todavia pertence ao Mundo Triplo transitório, e que são incapazes de unir-se completamente a Bodhi?

R: Assim é. Toda forma implica matéria. Os monges mencionados são somente hábeis em desfazer-se das opiniões e atividades mundanas, por meio da qual escapam das ilusões mundanas e das aflições. São incapazes de se unirem completamente à Bodhi; desta forma existe ainda o perigo de que os demônios os arranquem do interior mesmo da órbita de Bodhi. Sentados no isolamento das florestas em que moram, percebem muito vagamente a Mente Bodhi. Enquanto os que fizeram votos de chegar a serem bodhisatvas e já estão em Bodhi dos Três Mundos, não rechaçam nem retém coisa alguma. Como não retêm, é vão tentar encontrá-los em algum plano; como não rechaçam, os demônios se esforçam em vão em encontrá-los.

Não obstante, com o mais leve desejo de apegarem-se a isto ou aquilo forma-se rapidamente um símbolo mental, símbolos que por sua vez dão lugar a todas as “escrituras sagradas” que conduzem a regressão de experimentar as várias classes de renascimento. Seja, pois, sua concepção simbólica do vazio, já que então o ensinamento Zen se tornará patente. Saiba tão somente que será necessário evitar todo simbolismo de qualquer gênero que seja, pois este evitar “assinala” o Grande Vazio, no qual não há nem unidade nem multiplicidade: o Vazio que não é realmente vazio, o Símbolo que não é símbolo. Então os Budas de toda a vastidão de sistemas do universo se manifestarão com um raio; vocês reconhecerão as hostes de revoltados e contorcidos seres como meras sombras. Continentes tão inumeráveis, como átomos de pó, parecerão aos seus olhos como gotas d’água no vasto oceano. Para vocês, as mais profundas doutrinas se assemelharão não mais que a sonhos e ilusões. Reconhecerão todas as mentes como Uma e contemplarão todas as coisas também como Uma, inclusive os milhares de livros sagrados e os milhares de piedosos comentários. Todos eles não são mais do que sua Mente Única. Tão logo deixem de ir às apalpadelas em busca das formas, poderão ser suas todas as verdadeiras percepções. Eis aqui o que está escrito: “No Tathata da Mente Única os vários meios para a iluminação são apenas sombrios ornamentos”.

1. Monges Theravadas que não aceitam os ensinamentos sobre o vazio do Prajna Paramita, e seguem estritamente os ensinamentos dos sutras.   

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47. P: Porém que acontecerá se me comportei como Kaliraja, fatiando os membros de homens ainda vivos?

R: Os sábios bem-aventurados martirizados por ele são representações da sua própria Mente, enquanto Kaliraja simboliza essa parte de vocês que se esforça por buscar. Esse comportamento tão inferior chama-se leviandade para obter vantagem pessoal. Se vocês estudantes do Caminho, que não fazem nenhum esforço para viver virtuosamente, não querem mais do que fazer um estudo de tudo que percebem, em que serão diferentes dele? Permitindo que o olhar se detenha na forma, arrancam os olhos do sábio que vocês mesmos são. E quando se detêm para escutar um som, cortam os ouvidos de outro sábio; e assim sucede com os demais sentidos e com a cognição, pois as suas várias percepções ficam mutiladas.

P: Quando enfrentamos qualquer sofrimento com ‘sábia paciência’ e evitamos com resignação todas as percepções mutiladoras da mente, certamente não pode ser a Mente Única quem sofre, posto que esta não está sujeita a suportar a dor.

R: Você é daqueles indivíduos que forçam o impróprio em moldes conceituais tais como o conceito de “sofrer pacientemente” ou o conceito “não buscar nada fora de si mesmo”, com o que se violentam a si mesmo.

P: Quando os bem-aventurados sábios foram desmembrados estavam consciente de sua dor? E, se entre eles não haviam entidades capazes de suportar sofrimento, quem era ou o que sofria?

R: Se não sofres dor alguma agora, para que serve adicionar todos esses toques de sinos? 1

1.     Esta brusca resposta pode também significar: “Por que vir a esta assembléia para estudar a liberação Zen, a menos que a frustração pela vida samsárica seja penosa para você?”

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 48. P: O Buda Dipamkara alcançou a intuição da realidade em um só período de quinhentos anos ou não?

R: Não há porque alcançá-la em semelhante período. Não devemos esquecer que aquilo que chamamos “alcançar a intuição” não implica nem afastar-se da vida diária nem buscar a Iluminação. É preciso que entenda que os períodos de tempo carecem de existência real; a consecução da realização da intuição vital não ocorre nem dentro nem fora do período de quinhentos anos.

P: Não é possível por acaso alcançar a onisciência, mediante a qual, todos os conhecimentos do passado, do presente e do futuro nos sejam conhecidos?

R: Não existe absolutamente nada a alcançar.

P: Quão longo é o ciclo de quinhentos yugas?

R: Tal período seria suficiente para você chegar a ser um sábio liberado. Pois quando o Buda Dipamkara alcançou seu conhecimento do Dharma não havia na realidade nem um grão sequer de alguma coisa para alcançar.

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49. P: Nos sutras é ensinado que o enfrentamento das paixões e ilusões produzidas durante milhões de kalpas é suficiente para obter-se o Dharmakaya, ainda que sem a necessidade da vida monástica. O que quer dizer isto?

R: Embora pratiquem os meios de alcançar a Iluminação durante três milhares de kalpas, mas sem perder a crença em algo realmente adquirível, ainda estarão afastados de seus objetivos tantos kalpas quanto o Ganges tem de areia. Porém se por uma percepção direta da verdadeira natureza do Dharmakaya, a compreenderem em um momento, terão alcançado a mais elevada meta que se ensina nos Três Veículos. Por quê? Porque a crença de que é possível obter-se o Dharmakaya, pertence às crenças das escolas que não compreendem a verdade.

50. P: Se ao perceber um fenômeno obtenho uma imediata compreensão do mesmo, será esta equivalente à compreensão do significado obtido por Bodhidharma?

R: A mente de Bodhidharma penetrava além do vazio 1.

P: Então, os objetos individuais na verdade existem?

R: A existência de objetos como entidades separadas ou como entidades não separadas, tanto uma como a outra são conceitos dualísticos. Como disse Bodhidharma: “Existem entidades separadas e não existem; porém ao mesmo tempo estas entidades não são nem uma nem outra, pois a relatividade é transitória”. Se vocês, discípulos, não ultrapassarem os limites dos ensinamentos ortodoxos errôneos, por que querem ser chamados de monges Zen? Só posso exortá-los a aplicarem-se somente ao Zen e não buscar aqui e acolá métodos equivocados, que só tem por resultado a multiplicidade de conceitos. Quem bebe água sabe bem se está quente ou fria. Tanto sentados como caminhando, devem se abster do ciclo de renascimentos.

1. Não é suficiente ver todas as coisas como sombras flutuantes. Além do vazio está o Grande Vazio, no qual existe fluxo e, no entanto ele não é fluxo. “A montanha é uma montanha. A montanha não é uma montanha. Mas finalmente uma montanha é uma montanha!”.    

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51. P: Se o Buda repousa agora realmente na tranquilidade sem igual, além da multiplicidade das formas, como é que seu corpo produz vinte e uma sariras como relíquias?

R: Se na realidade acreditas nisso, é porque confundes as relíquias transitórias com as verdadeiras.

P: Existem realmente as chamadas sariras, ou são por acaso os méritos acumulados pelo Buda?

R: Não existem semelhantes coisas. Não são méritos.

P: Então, por que está escrito: “As relíquias do Buda são etéreas e sutis; as de ouro são indestrutíveis?” O que Vossa Reverência diz sobre isso?

R: Se vocês têm tais crenças por que se dizem estudantes Zen? Podem por ventura imaginar a existência de ossos no Vazio? A mente de todos os Budas estão reunidas no Grande Vazio. Que ossos esperam encontrar ali?

P: Porém suponhamos ter visto verdadeiramente, o que acontece então?

R: Acontece que o que viram é apenas o produto de seus próprios pensamentos errôneos.

P: Teria Vossa Reverência alguma dessas relíquias? Tenha a bondade de ensiná-la.

R: Uma verdadeira relíquia seria difícil de vê-la. Para encontrá-la teria de triturar o poderoso monte Sumeru até torná-lo um pó finíssimo, sem outro instrumento que suas próprias mãos.

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52. O mestre disse: Somente quando sua mente deixar de insistir em alguma coisa, seja o que for, você chegará a compreender o verdadeiro caminho do Zen. Poderia expressá-lo assim: o método dos Budas floresce na mente que se encontra completamente livre dos pensamentos conceituais, enquanto comparações entre isto e aquilo dão nascimento a legiões de demônios. Recorde finalmente, que desde o primeiro até o último, nem o mais ínfimo grão de coisa alguma perceptível existiu nem nunca existirá jamais.

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53. P: A quem o Patriarca transmitiu silenciosamente o Dharma?

R: O Dharma não foi transmitido a ninguém. 1

P: Então por que o segundo Patriarca pediu a transmissão a Bodhidharma?

R: Se vocês sustentarem que algo foi transmitido, darão a entender que o segundo Patriarca alcançou a Mente ao buscá-la, porém por mais longa que seja a busca, não poderão jamais chegar à Mente; assim é que voltarão novamente à roda da vida e da morte!

1. O Dharma sempre existiu em nossa própria Mente; o que falta é somente o seu reconhecimento e a sua compreensão.

54. P: O Buda penetrou completamente a escuridão da ignorância primordial?

R: Sim. A escuridão Primordial é a esfera na qual todos os Budas alcançam a Iluminação. Assim, podemos chamar a própria esfera onde recrudesce o carma de Bodhimandala 1. Todo grão de areia, toda aparência está Unida com a Realidade Atemporal e Imutável. Onde quer que seu mapa (GPS) o leve você se encontrará sempre dentro do Santuário da Iluminação, embora nada seja perceptível. Eu asseguro que quem compreender a verdade de que: “Não há nada a alcançar”, já se encontra no sacrário onde reconhecerá sua Iluminação.

P: A ignorância primordial é brilhante ou escura?

R: Não é nem uma nem outra. Os dois termos são duais. A ignorância primordial não é simultaneamente nem brilhante nem escura; e o que se quer dar a entender pelo termo não brilhante 2 é a Luminosidade Original que encontra-se além das distinções entre brilhante e escuro. Esta afirmação única basta para dar dor de cabeça a maior parte das pessoas 3.  Por isso é que dizemos que o mundo está cheio de enganos ocasionados pelos fenômenos transitórios que nos rodeiam.

Embora seguindo o exemplo de Shariputra, todos nós, mesmo dando um nó nos nossos miolos para descobrir os meios de liberação, não lograríamos nada comparável à penetração da sabedoria e onisciência com que os Budas transcendem o espaço. Não pode haver discussão sobre esse ponto. Uma vez, quando o Buda Gautama tinha medido três mil kiliocosmos, apareceu de repente um Bodhisatva que o superou de uma só tacada. E, no entanto, inclusive aquela tacada prodigiosa não bastou para abarcar a amplitude de um poro da pele de Samantabhadra! Agora muito bem, qual é consecução mental que lhes habilita a estudar o significado desse fato?

P: Porém se tais coisas são impossíveis de apreender, por que se escreveu: “Ao retornar a nossa Natureza Original transcendemos a dualidade; porém os meios relativos constituem muitas portas para chegar à verdade?”.

R: Retornamos a Nossa Natureza Original além da dualidade, que é também na verdade a natureza real do universo da escuridão primordial 4, que é ao mesmo tempo a Natureza Búdica. Os “meios relativos que formam muitas portas” referem-se aos Sravacas que sustentam que nosso universo está sujeito ao vir-a-ser e a extinção, aos Pratyekas Budas que, embora admitindo a infinitude de seu passado, o consideram sujeito a futura destruição; por isso, tanto uns como outros se aplicam inteiramente aos meios de superá-lo 5. Porém os Budas verdadeiros se deram conta de que o devir e a destruição do mundo senciente são ambos Unos com a atemporalidade 6. Em um sentido diferente não existe devir nem cessar. Dar-se conta disso tudo, significa estar verdadeiramente Iluminado. Assim, pois o Nirvana e a Iluminação são uma e a mesma coisa.

Quando o lótus se abriu e o Universo ficou revelado, surgiu a dualidade do Absoluto e do mundo senciente; ou, melhor dizendo, o Absoluto se manifestou em dois aspectos que, tomados conjuntamente, compreendem a pura perfeição. Estes dois aspectos são a inalterável realidade e a forma em potência. Para os seres sencientes existem os pares de opostos tais como vir-a-ser e cessar, juntamente com todos os demais. Portanto, precavenham-se de se apegar apenas a um desses pares. Aqueles que em sua inocência procuram alcançar o estado búdico e detestam o mundo senciente, blasfemam por isso contra todos os Budas do Universo. Os Budas ao se manifestarem no mundo empunham a pá de ferro para livrarem-se de todo o cascalho dos livros de metafísica e dos sofismas.

Meu conselho é que descartem todas as suas ideias precedentes sobre estudar ou perceber a Mente. Quando as tiverem descartado, já não se encontrarão perdidos entre sofismas. Considerem o processo como consideram a descarga do esterco.

Sim, meu conselho é que renunciem a qualquer indulgência ao pensamento conceitual e aos processos intelectuais.  Quando tais coisas não lhes atrapalharem mais, reconhecerão sem falta a Iluminação Suprema. De maneira nenhuma façam distinções entre o Absoluto e o relativo (o mundo senciente). Como verdadeiro discípulo da Ts’ao Hsi Zen (a escola de Huang Po) não façam distinções de nenhum gênero. Desde os tempos mais remotos, os Sábios ensinaram que a atividade mínima é a entrada no seu Dharma; assim, pois que nenhuma atividade seja a entrada do meu Dharma, que é a Entrada da Mente Única; porém que todos que cheguem a esta entrada, temam entrar. Eu não ensino a doutrina da extinção. Poucos são os que compreendem isso; porém aqueles que compreenderem serão os únicos destinados a serem Budas. Guardem esta gema como um tesouro!

1.     Um santuário onde podemos reconhecer a Iluminação.

2.     Avidya, ignorância primordial.

3.     A palavra que significa em chinês escuridão primordial ou avidya se compõe de dois caracteres que querem dizer: “não” e “brilhante”

4.     Samsara.

5.     Como se fossem um ente completamente separado do Nirvana que eles buscam.

6.     Reconhecem a identidade de “um momento” e “para sempre”. A atemporalidade.

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55. P: Porém como podemos evitar cair no erro de fazer distinções entre uma coisa e outra?

R: Dando-nos conta de que, embora tenham comido durante todo dia, nem um só grão passou em seus lábios; e que um dia de viagem não lhes adiantaram nem um só passo; e mesmo assim, abstenham-se de maneira contínua das noções tais como “eu” e “outro”. Não permitam que os acontecimentos de suas vidas diárias lhes prendam; porém não fujam deles. Somente trabalhando assim merecerão o titulo de “Liberado”.

Nunca permitam confundir as aparências exteriores com a realidade. Evitem o erro de pensar em termos de passado, presente e futuro. O passado desvaneceu-se; o presente é um momento fugaz; o futuro ainda não chegou. Quando praticarem o controle mental1, sentem-se em posição apropriada, permaneçam perfeitamente tranquilos, não permitam que o mais leve movimento de suas mentes os inquietem.  Somente isto é o que se chama “liberação 2”.

Sejam diligentes! Trabalhem com diligência! Entre milhares que tentam ultrapassar o Portal, somente uns três, talvez cinco, logram ultrapassá-lo. Se não levarem em conta minhas advertências, seguramente a calamidade lhes fará companhia. Por isso está escrito:

“Aplica-te nesta vida a alcançar a liberação, ou sofrerás morte após morte, kalpas após kalpas”.

1.    Dhyana ou zazen.

2. Da carga da sempre renovada existência transitória.   

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56. O mestre passou a maior e melhor parte de sua vida nesta montanha durante o reinado de T’ai Chung (847-859) da dinastia T’ang. O imperador Hsüan Tsung lhe outorgou o título de mestre de Zen, Destruidor de Toda Limitação. O templo erigido em sua memória é conhecido com o nome de “Torre do Carma Espaçoso”.

Fim

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