A consciência natural

As aparências e a mente existem como o fogo e o calor

– ORGYENPA, citado em Mahamudra: The Ocean of Definitive Meaning, traduzido para o inglês por Elizabeth M. Callahan

Meus professores descreveram essa clara luz da mente como auto-iluminada¬ como a chama de uma vela, que é tanto uma fonte de iluminação quanto a pró¬pria iluminação. A clareza é parte da mente desde o começo, uma consciência natural. Você não pode desenvolvê-la do mesmo modo como, por exemplo, de¬senvolve seus músculos fazendo exercícios físicos. A única coisa que você pre¬cisa fazer é reconhecê-la, notar o fato de que você é consciente. Claro, o desafio é que a clareza, ou a consciência natural, é uma parte tão integral da experiência cotidiana que é difícil reconhecê-la. É como tentar enxergar seus cí¬lios sem usar um espelho.
Então, como você conseguirá reconhecê-la?
De acordo com o Buda, você medita – apesar de não necessariamente da forma que a maioria das pessoas entende.
O tipo de meditação da qual falamos aqui é, mais uma vez, uma espécie de “não-meditação”. Não há necessidade de se concentrar ou visualizar nada. Alguns de meus alunos chamam isso de “meditação orgânica: meditação sem aditivos”.
Em outros exercícios que meu pai me ensinou, a forma de começar é sen¬tar-se com a coluna ereta, respirar normalmente e, aos poucos, permitir que a mente relaxe. “Com sua mente em repouso”, ele instruía os alunos na pequena sala de aulas no Nepal, “permita-se conscientizar-se de todos os pensamentos, sentimentos e sensações que passam por ela. E, à medida que você os observa passar, apenas pergunte a si mesmo: ‘Há alguma diferença entre a mente e os pensamentos que passam por ela? Há alguma diferença entre o pensador e os pensamentos que ele percebe?’ Continue observando seus pensamentos com essas questões em mente por cerca de três minutos e então pare”.
Então, todos nós ficamos lá sentados, alguns inquietos, outros tensos, mas todos concentrados em observar nossas mentes e perguntando-nos se havia algu¬ma diferença entre os pensamentos e o pensador que pensa os pensamentos.
Como eu era apenas uma criança, e a maioria dos outros alunos eram adul¬tos, eu naturalmente achava que eles estavam tendo muito mais êxito do que eu. Mas, à medida que observava esses pensamentos sobre minha própria incapacidade passando pela minha mente, me lembrava das instruções e algo curioso acontecia. Por apenas um momento, eu vislumbrava que os pensa¬mentos sobre não ser tão bom quanto os outros alunos eram apenas pensamen¬tos e os pensamentos na verdade não eram realidades fixas, mas movimentos da mente que os estava pensando. É claro que, assim que vislumbrava isso, a percepção passava e eu voltava a me comparar com os outros alunos. Mas aquele breve momento de clareza era profundo.
À medida que meu pai explicava depois que terminávamos, o propósito do exercício era reconhecer que na verdade não havia diferença entre a mente que pensa e os pensamentos que provêm da mente. A própria mente e os pensa¬mentos, emoções e sensações que surgem na mente, permanecem nela e nela desaparecem são igualmente expressões da vacuidade – isto é, a possibilidade infini¬ta de algo ocorrer. Se a mente não é uma “coisa”, mas um evento, então todos os pensamentos, sentimentos e sensações que ocorrem no que consideramos ser a mente são da mesma forma eventos. Conforme começamos a pensar na ex¬periência da mente e dos pensamentos como inseparáveis, como duas faces da mesma moeda, começamos a captar o verdadeiro significado da clareza como um estado de consciência infinitamente expansível.
Muitas pessoas acham que a meditação significa atingir algum estado ex¬traordinariamente vívido, bem diferente de qualquer coisa que já vivenciaram antes. Elas, mentalmente, pressionam a si mesmas, pensando: “Preciso atingir um nível mais elevado de consciência… Deveria estar vendo algo maravilhoso, como luzes nas cores do arco-íris ou imagens de domínios puros… Eu deveria estar brilhando no escuro”.
Isso é chamado de tentar com muito afinco e, acredite no que digo, já fiz isso, da mesma forma como muitas outras pessoas que conheci ao longo dos anos.
Não faz muito tempo conheci uma pessoa que estava causando problemas a si mesma por tentar com afinco demais. Eu estava no aeroporto de Delhi es¬perando para embarcar em um vôo para a Europa, quando um homem me abordou e perguntou se eu era um monge budista. Respondi que sim. Então, ele me perguntou se eu sabia como meditar e, quando respondi afirmativa¬mente, ele indagou: “E como é sua experiência?”
“Boa”, respondi.
“Você não acha difícil?”
“Não”, eu disse. “Não muito”.
Ele suspirou. “A meditação é tão difícil para mim”, ele explicou. “Depois de quinze ou vinte minutos, começo a sentir tonturas. E, se tentar ir além dis¬so, algumas vezes chego a vomitar”.
Eu disse que me parecia que ele ficava tenso demais e que talvez devesse tentar relaxar mais enquanto estivesse praticando.
“Não”, o homem retrucou. “Quando tento relaxar, a tontura é ainda pior”. O problema parecia incomum e, como ele parecia estar genuinamente in¬teressado em encontrar uma solução, sugeri que se sentasse na minha frente e meditasse enquanto eu o observava. Depois que ele se acomodou na cadeira, seus braços, pernas e peito ficaram muito tensos. Seus olhos cresceram, uma careta terrível se espalhou pelo seu rosto, suas sobrancelhas subiram e até suas orelhas pareciam querer sair da cabeça. Seu corpo estava tão tenso que ele co¬meçou a tremer.
Só de observá-lo, achei que eu também começaria a ficar tonto, então dis¬se: “Tudo bem. Por favor, pode parar”.
Ele relaxou os músculos, a careta sumiu de seu rosto e seus olhos, orelhas e sobrancelhas voltaram ao normal. Com ansiedade, ele me olhou em busca de aconselhamento.
“Tudo bem”, eu disse. “Agora vou meditar enquanto você me observa como eu o observei”.
Eu me sentei como normalmente faço, com minha coluna ereta, meus músculos relaxados, minhas mãos repousando gentilmente em meu colo e olhando para frente sem nenhuma pressão ou tensão específica enquanto re¬pousava minha mente prestando pouca atenção ao momento presente. Obser¬vei o homem me olhando da cabeça aos pés, dos pés à cabeça e novamente da cabeça aos pés. Então, saí da meditação e disse a ele que era assim que eu meditava.
Depois de um momento, assentiu com a cabeça e disse: “Acho que en¬tendi”.
Então, ouvimos o anúncio de que nosso vôo estava pronto para o embar¬que. Como ficaríamos em seções diferentes do avião, embarcamos separada¬mente e não o vi durante todo o vôo.
Depois que aterrissamos, eu o vi novamente entre os passageiros que esta¬vam desembarcando. Ele acenou para mim e, enquanto se aproximava, disse: “Sabe, tentei praticar como você me ensinou e consegui meditar durante o vôo inteiro sem sentir tontura. Acho que finalmente entendi o que significa relaxar na meditação. Muito obrigado!”
Com certeza, é possível ter experiências vívidas quando você tenta com muito afinco, mas os resultados mais típicos podem ser agrupados em três ti¬pos diferentes de experiências. O primeiro é que a tentativa de se conscientizar de todos os pensamentos, sentimentos e sensações que se precipitam pela mente é exaustiva e, como resultado, você pode ver sua mente ficando cansada ou embotada. O segundo é que a tentativa de observar todos os pensamentos, emoções e sensações gera um senso de agitação ou inquietação. O terceiro é que você pode descobrir que sua mente fica totalmente vazia: cada pensamen¬to, emoção, sentimento ou percepção que você observa passa tão rapidamente que ilude sua consciência. Em cada um desses casos, você pode razoavelmen¬te concluir que a meditação não é a experiência incrível que você imaginou que pudesse ser.
Na verdade, a essência da prática da meditação é abrir mão de todas as suas expectativas sobre ela. Todas as qualidades de sua mente natural – paz, abertura, relaxamento e clareza – estão presentes em sua mente de qualquer maneira. Você não precisa fazer nada diferente. Você não precisa mudar ou al¬terar sua consciência. Tudo o que você precisa fazer ao observar sua mente é reconhecer as qualidades que já possui.

Do livro: A ALEGRIA DE VIVER de Mingyur Rinpoche
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