Interior e exterior no Zen

ZEN-BOLEADO

EL KOAN ZEN – Toshihiko Izutsu

Se analisarmos “a experiência ZEN” (quer dizer, a realização do estado de iluminação), em termos de relação entre interior e exterior nos deparamos com duas possibilidades teóricas:

 1 – O interior se converte em exterior, ou exteriorização do mundo interior.

 2 – O exterior se converte em interior, ou interiorização do mundo exterior.

1. No primeiro caso, quer dizer, na exteriorização do mundo interior. (que se refere à expressão tão corrente de que “o homem se converte no objeto”, realiza-se rapidamente uma experiência, o próprio “eu” perde sua identidade existencial e funde-se inteiramente no “objeto exterior” com o qual se identifica. O ser humano se converte em flor. O homem se converte em bambu. Esta experiência não se fundamenta, no entanto, como experiência autêntica zen, senão quando o ser humano chega a perceber em sua própria consciência que essa flor ou que esse bambu com os quais se identificou contém o mundo total do Ser. Nesse estado, o “eu” se estende até os últimos limites do universo. Quer dizer, que já não é um “eu” como entidade independente: já não é um sujeito frente a um mundo objetivo.

2. No segundo caso, na interiorização do exterior, o que até agora foi considerado como “exterior” ao nosso “ser” é subitamente vivenciado como interior à mente. Então, tudo quanto se experimenta e se observa no chamado mundo “exterior” é percebido como uma operação da mente, sua autodeterminação em particular. Todo acontecimento “exterior” é percebido como acontecimento “interior”.

O ser humano sente que, mente e corpo tornaram-se totalmente transparentes, e que perderam sua opacidade existencial, que enfrentava e se colocava diante de tudo quanto viesse de ‘fora’. Sente-se a si mesmo (segundo a expressão do mestre Han Shan, do séc. XVI) como um grande todo que ilumina, infinitamente lúcido e sereno’. Sua mente é como um espelho que engloba tudo, no qual as montanhas, os rios e a terra com toda a sua beleza e esplendor da natureza encontram-se livremente refletidos. Desse modo, o ‘mundo exterior’ recria-se em uma dimensão diferente e se converte em paisagem ‘interior’. Em semelhante estado, a mente do ser humano deixa de ser a mente individual de uma pessoa. Isso é que o budismo designa como a Natureza da Mente.

 VISÃO ZEN DO SER

 Agora nos encontramos em condições de examinar as duas possibilidades teóricas de interpretação do que poderíamos chamar a experiência Zen, ou a visão Zen do Ser, formada pela exteriorização do interior, em primeiro lugar, em segundo, pela interiorização do exterior. Eu qualifico estes dois caminhos, aparentemente opostos, como possibilidades teóricas, posto que elegendo tanto um como outro, o resultado será sempre o mesmo. Desembocaremos numa mesma visão do Ser tanto de um modo como de outro. No entanto, de um ponto de vista histórico, alguns mestres Zen adotaram a primeira destas vias, enquanto outros escolheram a segunda. Comecemos, então, pela exteriorização do interior.

Em um contexto Zen, a exteriorização do interior começa com a perda da consciência do “ego” no homem que entra em contato com um objeto “exterior”. Ao perder a chamada consciência do ego – sujeito empírico – segundo o budismo, responsável pelo obscurecimento de nossa visão espiritual – o ser humano se perde no objeto. “O homem faz-se objeto”, podemos expressar-nos com o princípio Zen corrente: “O homem se converte em bambu”, por exemplo, ou o “o homem se converte em flor”. Dôgen escreve em uma passagem muito conhecida de sua obra Shôbôgenzô:

  “A ilusão consiste em criar um ego-sujeito e a trabalhar através dele sobre os objetos. A iluminação, ao contrário, consiste em deixar que as coisas atuem sobre nós e nos iluminem… Contemplando uma determinada coisa, façamos com que todo nosso corpo-mente se integre no ato; façamos o mesmo escutando um som [de tal modo que nosso ego possa perder-se e fundir-se na coisa vista ou ouvida]. Então e somente então, estaremos em condições de captar a realidade em sua “aseidade” primeira. Nossa compreensão espiritual da coisa não será a de um espelho refletindo a imagem de algo tal como a lua se reflete na superfície da água [posto que o espelho e a coisa refletida por ele, a água ou a lua, seguem sendo sempre duas entidades que conservam cada uma sua própria identidade]. Na unificação espiritual de nós mesmos e de algo, ao contrário, se um dos dois se manifesta, o outro desaparece totalmente, fundido-se no primeiro. [O que quer dizer que na situação aqui tratada o “eu” desaparece completamente e somente algo se manifesta].

Agora, instruir-se no caminho de Budha não significa mais que instruir-se ante o próprio Ser. Instruir-se diante do Ser, por sua parte, somente significa esquecer-se. Esquecer o próprio ego significa unicamente ser iluminado pelas coisas “exteriores”. E ser iluminado pelas coisas não é diferente de apagar as diferenças entre os nossos chamados egos e as chamadas outras coisas”.

    Está claro que uma identificação espiritual profunda com todas as coisas da natureza é precisamente o que caracteriza a exteriorização do interior, tal como chega a ser vivida sob a forma de uma total imersão do “ego” humano num objeto – imersão tão completa que o termo “objeto” perde sua base semântica. No domínio mais limitado do prazer estético, esta espécie de identificação é normalmente vivida quando, por exemplo, se escuta intensamente uma bela música.

Música tão profundamente escutada que não mais a escutamos, pois que nós mesmos somos a música enquanto dura…”                                        

 [T.S.Elliot: Four Quartets]

    Tal como observa acertadamente William Johnston: “Neste intenso momento, tão característico, a música é sentida tão profundamente que já não existe uma determinada pessoa que a escuta nem a música escutada: já não há um ‘eu’ oposto à música; há simplesmente música, sem sujeito nem objeto”. Em outras palavras, o universo inteiro está cheio de música, émúsica.

Porém perder-se a si próprio e “converter-se em” música, em bambu, em flor ou no que for, não constitui de modo algum uma experiência Zen no seu sentido pleno. Quando nos encontramos no estado de total unidade com o “objeto”, o que então acontece, enquanto totalmente absortos na contemplação de algo, é que estamos unicamente nas portas do Zen. Falando com propriedade, tal estado ainda não é o Zen, porém pode nos levar a uma coisa muito singular. A iluminação, segundo a tradição do Zen, ainda esta longe de sua realização.

Suponhamos que encontro-me contemplando intensamente uma flor. Suponhamos que, nesta situação, me perco a mim mesmo e penetro na flor, da maneira indicada acima. Do ponto de vista do Zen este não é o último estágio desta disciplina. O Zen me pede que siga além, até alcançar o que a terminologia tradicional designa como o estado anterior à distinção sujeito-objeto. Que dizer, que minha imersão na flor deve cumprir-se até o ponto em que não reste absolutamente nada da consciência de mim mesmo, nem sequer da consciência da flor. Este estado de unificação absoluta, que é, psicologicamente falando, uma espécie de “presença”, implica o total desaparecimento da flor, ou da música, igualmente ao total desaparecimento do “eu”. Em semelhante estado, não há nenhuma flor, nem música, do mesmo modo não há nem rastro do “eu”. O que aqui se atualizou realmente é Algo absolutamente indiferenciado e indivisível: uma “pura consciência” sem sujeito e objeto.

Porém nem sequer aqui se encontra o último estágio. Para que haja uma experiência de iluminação, o ser humano deve despertar desta consciência pura. O Algo absolutamente indiviso se divide novamente em “eu” e, por ex.: em flor. E no preciso momento desta divisão, a flor emerge de modo súbito como Flor Absoluta. É uma Flor que se abre em uma atmosfera essencialmente diferente daquela na qual se abre uma flor comum. E, no entanto, ambas são uma só e única flor. É exatamente esta situação a qual evoca Dôgen quando aponta que “a montanha e os rios (tal como aparecem no estado de iluminação) não devem ser confundidos com as montanhas e os rios  comuns, embora sejam as mesmas montanhas e rios que contemplamos sempre”.

Nada pode apresentar melhor e do modo mais típico do Zen o processo da instauração desta visão Zen do mundo do que as reflexões já citadas do mestre Ch’ing Yüan17:

Há trinta anos atrás, antes que este velho monge começasse a praticar o Zen, contemplava uma montanha como se fosse uma montanha e um rio como se fosse um rio.

   Tive a sorte de encontrar mestres iluminados e pude alcançar assim certo grau de despertar. Em tal estado, quando contemplava uma montanha, já não era uma montanha! E, quando via um rio, não se tratava de um rio!

   Agora me encontro em um estado de quietude última. Do mesmo modo que nos meus primeiros anos, vejo uma montanha simplesmente como uma montanha e um rio simplesmente como um rio.

Aqui temos a visão da realidade característica do Zen e claramente descrita em três estágios:

 1.   O estado inicial, correspondendo a experiência do mundo que tem um ser humano comum, na qual o conhecedor e o conhecido estão claramente diferenciados um do outro como duas entidades separadas e onde uma montanha, por ex., é vista pelo “eu” que percebe como uma coisa objetiva chamada montanha.

 2.   O estado intermediário, corresponde ao descrito como estado de identificação absoluta, de unificação total; estado espiritual anterior a distinção do sujeito-objeto. Neste estado, o chamado mundo exterior se despe de sua solidez ontológica. E inclusive a expressão: “eu vejo uma montanha” é num sentido rigoroso uma afirmação errônea, posto que não há mais um “eu” que vê, nem uma montanha a ser vista. Se existe algo aqui, é a presença absolutamente indivisa de Algo que se ilumina eternamente, como universo total. Em tal estado, uma montanha não é seguramente uma montanha: a montanha é irreconhecível a não ser que se tome como não-montanha.

3.   O estado final, de liberdade e de quietude infinitas, em que o Algo indiviso se divide em sujeito/objeto em meio à unidade primordial, a qual permanece intacta apesar da aparente dissociação sujeito/objeto. Resulta disso que o sujeito e o objeto se separam um do outro e, ao mesmo tempo estão fundidos um no outro, porque a separação e a fusão são um só e mesmo ato de Algo originalmente indiviso. Deste modo, no instante mesmo em que o “eu” e a montanha saem do Algo, fundem-se um no outro formando uma entidade: essa coisa única que se coloca como Montanha Absoluta. E, no entanto, essa Montanha Absoluta, escondendo em si mesma uma natureza complexa, tal como mostramos, não ésomente uma simples montanha. Assim é a natureza da exteriorização do interior, tal como se entende no contexto Zen.

Examinemos agora o processo inverso, quer dizer, a interiorização do exterior, pelo qual o mundo da Natureza (o chamado mundo exterior) se interioriza e se coloca enquanto paisagem “interior”. Como apontei anteriormente, o acontecimento espiritual subjacente é o mesmo em ambos os casos. Como poderia ser de outro modo?  Não é possível existirem duas experiências Zen tão diametralmente opostas. Através de sua história, o Zen tem sido sempre único, porém produziu formas divergentes nos níveis teóricos, quanto aos modos pelos quais o ser humano pode realizar a experiência da iluminação e quanto ao que sucede imediatamente depois. A interiorização do exterior não é diferente, neste sentido, à exteriorização do interior.

Nesta última, a nota dominante era uma identificação profunda do ser humano com as coisas da natureza. A fórmula base era: o ser humano perde seu “eu”, morre para si mesmo, se funde em algo exterior, logo perde de vista a coisa exterior para renascer finalmente sob a forma desta coisa exterior particular, como manifestação concreta do mundo inteiro do Ser.  O homem, em resumo, se converte na coisa e é a coisa mesma; e, sendo a coisa, “é o Todo”.

No caso da interiorização do exterior, ao contrário, o ser humano experimenta subitamente que aquilo que pensava ser exterior a si mesmo é na realidade interior. O mundo não existe fora de mim; está em mim mesmo, sou eu mesmo. Tudo aquilo que o ser humano havia imaginado até este instante desenvolvendo-se no exterior de si mesmo se produziu, realmente, no espaço interior. Porém como compreender esse espaço interior? Será a mente humana um espaço interior no qual todas as coisas existem e se produzem como coisas interiores e acontecimentos interiores? Esta questão levanta diretamente o problema da Mente tal como é concebida pelo Zen.

O célebre “kôan” da flâmula batida pelo vento, de Hui-Nêng, é uma clara ilustração do tema.

Um dia Hui-Nêng escutava uma leitura sobre o budismo em um dos templos, quando se levantou subitamente um vento que começou a tremular a flâmula da porta do templo. Então teve lugar o incidente relatado no “kôan”:

   Quando estava ali o Sexto Patriarca, o vento começou a tremular a flâmula. Dois monges se puseram a discutir sobre o fato. Um deles apontou: “Olha! A Flâmula se agita!”, o outro respondeu: “Não! É o vento que se agita!”.

Discutiram interminavelmente sem poder chegar a conclusão alguma. Bruscamente, Hui-Nêng pôs fim a estéril discussão dizendo: “Não é o vento que se agita, nem tampouco a flâmula. Queridos irmãos, são vossas mentes que se agitam”. Os monges se calaram.

    Em meu modo de ver, aqui temos o caso mais claro de interiorização do exterior. O vento sopra na mente. A flâmula tremula na mente. Tudo sucede na mente. Nada fica no exterior da mente. A flâmula balançando ao vento deixa de constituir um acontecimento que sucede no mundo exterior. O acontecimento inteiro (e, implicitamente, o universo inteiro) se interioriza e se representa como constitutivo do espaço interior. De fato, a estrutura da interiorização de que se trata não é tão simples como possa parecer àqueles que lerem este “koan” sem conhecimento prévio do ensinamento Zen. Tratemos de esclarecer a coisa de um ângulo um pouco diferente.

No mesmo Wu Men Kuan encontra-se uma passagem na qual Chao Chu perguntou a seu mestre Nan Ch’üan quando ainda era um noviço: Qual é o Caminho? (Quer dizer, a Realidade Absoluta?); o mestre respondeu: “A mente comum: esse é o Caminho”. Desta célebre fórmula, o mestre Wu Mên deu uma interpretação poética em seu comentário ao “koan”.

 As flores perfumadas na primavera,

a lua prateada no outono, a brisa fresca no verão,

 a branca neve no inverno.

Se a mente não se perturba ante questões banais,

cada dia será um instante feliz na vida dos homens.

    Qual será, pois, essa mente comum na qual se abrem as flores na primavera, na qual brilha a lua no outono, na qual sopra uma brisa refrescante no verão e a neve branqueia no inverno? Esses dados característicos das quatro estações são apresentados por Wu Mên como uma paisagem interior da “mente comum”, o mesmo que o tremular da flâmula era para Hui-Nêng o tremular interior da mente.

Está claro, em primeira instância, que a “mente” de que se trata aqui é a do ser humano em estado de iluminação, a mente iluminada. A mente “comum” de Nan Ch’üan não é, neste sentido, uma mente realmente comum. Ao contrário. Longe de constituir a consciência empírica da substância-ego normalmente designada com esta palavra, o que se entende por mente comum é a Mente (chamada tecnicamente de não-mente\Natureza da mente), que se realiza em um estado espiritual anterior à distinção sujeito/objeto, ou que transcende a essa distinção; a mente comum em lugar de ser apenas nossa consciência empírica. É a Realidade, o fundamento mesmo do Ser, eternamente presente em nós mesmos.

Um fato insólito que concerne a esta mente é que não funciona nem pode funcionar de modo concreto como nossa consciência empírica. A mente é uma realidade noumênica2 que funciona unicamente no fenomênico. Precisamente neste sentido Nan Ch’üan a chama de mente comum. E a flâmula, o desabrochar das flores na primavera, podem ser vistos como acontecimentos interiores também e unicamente neste sentido, nada existe, de fato, fora da mente, nem nada acontece fora da mente. Tudo quanto existe como fenômeno no chamado mundo exterior não é mais que uma forma que manifesta a Mente, o nous3. Isso é o que nós entendemos sob o termo “mente” com M maiúscula.

A estrutura da Mente assim entendida é de uma natureza aparentemente contraditória; por um lado, é inteiramente diferente da consciência empírica, por outro lado se identifica completa e indissoluvelmente à consciência empírica. A fórmula de Nan Ch’üan: “a mente comum: esse é o Caminho”, se refere precisamente a esse último aspecto da Mente.

Há um antigo adágio Zen que diz:

 “As montanhas, os rios, a terra, tudo quanto existe, tudo que acontece, tudo, sem a mínima exceção, é vossa própria mente”.

     Comentando esta afirmação, o mestre Musô faz a seguinte reflexão: “Há monges que têm a tendência em crer que determinadas atividades cotidianas, como comer, beber, lavar as mãos, trocar de roupa, ou ir dormir, são atos profanos que nada tem a ver com a prática Zen; esses monges pensam que não praticam seriamente o Zen senão quando estão sentados com as pernas cruzadas em meditação”.

Segundo o mestre Musô cometem um grave erro, “porque reconhecem coisas fora da mente”, quer dizer, porque crêem que o mundo existe fora da sua “própria” Mente. São seres que ainda não compreenderam o verdadeiro sentido da sentença: “As montanhas, os rios e a terra são vossa própria mente”. Em outros termos, ignoram totalmente a natureza da Mente que está em ato em todos os momentos nas mentes “comuns” dos seres humano individuais”.

  Um monge perguntou certo dia ao mestre Chao Chu: “Que espécie de coisa é minha mente?”.

 Chao Chu respondeu perguntando ao monge: “Fizeste a tua refeição?”

 O monge disse que sim.

 Então Chao Chu lhe ordenou: “Então vá lavar a cuia!”.

    O monge tem fome e come. Quando termina lava a cuia. Chao Chu lhe indica como a Mente está em ato nessas atividades naturais e banais.Em cada uma das mente ocupadas nos afazeres mais comuns, a Mente está sem dúvida nenhuma em ato. A “mente comum” é, desse modo, o lugar energético espiritual infinito, lugar de uma energia que, uma vez descartada sua tendência individualista, pode estender-se instantaneamente por todo o Universo.

Do ponto de vista dos mestres experimentados como Nan Ch’üan e Chao Chu, a mente comum é simplesmente uma mente comum. Porém guarda em seu bojo a presença da Mente. É a mente comum que experimentou a não-mente. Dito de outra forma, a mente comum não é nossa consciência empírica tal como nos é dada a princípio, porém a mente comum realizada depois da experiência efetiva da iluminação. Os velhos alfarrábios Zen abundam em exemplos que demonstram até que ponto os principiantes se viam em dificuldades para compreender isto.

Um monge pediu um dia ao mestre Chang Sha: “Como é possível transformar (quer dizer interiorizar) as montanhas, os rios e a grande terra, para reduzir tudo à minha própria mente?”.

Chang Sha respondeu: “Como é possível, efetivamente, transformar as montanhas, os rios e a grande terra para reduzir tudo a minha própria mente?”.

O monge confessou: “não vos compreendo”

    No célebre “mondô” que acabamos de inserir, o monge põe em dúvida a validade do refrão Zen: “Todas as coisas são Mente”. Fazendo isso, adota a posição do realismo mais ingênuo. Aos seus olhos, a Mente é a mente comum, é a consciência empírica, dirigida para as montanhas e os rios como para objetos exteriores a si mesmo. A resposta de Chang Sha é uma questão puramente retórica, que significa que para ele é absolutamente impossível trazer o mundo exterior ao espaço interior de tal mente (separada, própria). O monge, portanto, nunca poderia compreender.

O fato de que a mente, no sentido que entende Chang Sha, não seja em si mesmo um mundo interior, oposto ao mundo exterior, está claramente sublinhado neste célebre mondô:

 

   Um monge perguntou a Chang Sha: “Que espécie de coisa é minha mente?”

Chang Sha lhe respondeu: “O universo inteiro é tua mente”.

   O monge: “Se assim fosse, não teria onde ficar”.

Chang Sha: “Ao contrário, esse é precisamente o lugar onde deves te colocar”.

   O monge: “Qual é, pois, o lugar onde devo colocar-me?”.

   Chang Sha: “Um imenso oceano! A água é profunda, insondavelmente profunda”.

   O monge: “Isso ultrapassa minha compreensão”.

   Chang Sha: “Olha os peixes! Grandes ou pequenos, movem-se por toda parte, como querem”.

    Há uma fundamental carência de compreensão entre o monge e Chang Sha. Porque o monge fala da mente como de sua própria consciência individual, empírica, enquanto que Chang Sha fala da Mente. Em lugar de acentuar a identidade dos fatos da mente empírica e da Mente cósmica, o mestre as distingue intencionalmente uma da outra e tenta fazer com que o monge tome consciência e que considere sua própria mente como Algo que é como um imenso oceano, de insondável profundidade, no qual os peixes, grandes ou pequenos – quer dizer, tudo quanto existe – tem seu lugar e gozam de infinita liberdade.

O mestre Hung Chih expressa a mesma idéia de forma poética:

 A água é límpida, transparente até as profundezas,

os peixes nadam lentamente nela com prazer.

Imensos são os céus, espaço sem limites,

os pássaros voam longe, muito longe.

Igualmente o mestre Dôgen:

 Os peixes na água!

Nadam e nadam, sem alcançar jamais os limites da água.

Os pássaros no céu!

Voam e voam sem alcançar jamais os limites do céu.

    Nada poderia descrever com mais beleza que estas palavras a paisagem interior da Mente. Unicamente na dimensão metafísica da Mente podem ser descritas “as montanhas, os rios e a grande terra” como presentes “no interior da mente”. Porque toda coisa singular é, de certo modo, um aspecto ou outro da Mente, todo acontecimento é acontecimento da Mente. Essa é a interiorização do exterior, tal como compreende o Zen.

Para terminar, devo chamar novamente a atenção sobre o que sublinhei no princípio: O problema do interior e do exterior não é, apesar de tudo, mais que um pseudo-problema, do ponto de vista Zen. Uma vez feita a distinção entre interior e exterior, o problema de sua relação recíproca pode – ou deve – desenvolver-se em termos de exteriorização do interior e de interiorização do exterior. Porém não há nenhuma distinção deste tipo, falando propriamente; a distinção mesma é ilusão. Permita-me citar novamente um koan:

 Um monge perguntou certo dia ao mestre Chao Chu:

 “Quem é Chao Chu?”

E Chao Chu respondeu: “Porta Este, porta Oeste, porta Norte, porta Sul”.

Quer dizer: que Chao Chu está totalmente aberto. Todas as portas da cidade permanecem abertas e nada fica escondido. Chao Chu se situa exatamente no centro da cidade, quer dizer, no centro do universo. As portas que em outras ocasiões foram levantadas para separar o interior do exterior estão agora abertas de par em par. Não há interior, não há exterior.

   Somente Chao Chu, que é transparência pura.

Notas:

 1.    Aseidade: Qualidade ou caráter do ser que tem em si mesmo a causa e o princípio do próprio ser.

  1. Noûmeno: Realidade inteligível, essência, oposta a realidade sensível, fenômeno.

3.    Noûs:

a) para o filósofo grego Anaxágoras (499 a.C.-428 a.C.), princípio cósmico inteligente, eterno e ilimitado, capaz de ordenar os elementos materiais (as homeomerias) que compõem o universo

b) no platonismo e aristotelismo, faculdade humana capaz de captar verdades fundamentais por uma via intuitiva, em oposição aos limites apresentados pelo pensamento meramente calcado na ciência e na discursividade puramente intelectual.

c) na escolástica, o intelecto, faculdade intuitiva de conhecimento capaz de alcançar a realidade divina de forma mais efetiva do que estaria ao alcance da mera discursividade racional.

Extrato do livro: El Kôan ZEN – Ensayos sobre el Budismo Zen – Toshihiko Izutsu

Versão: Flávio Shunya

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