Madhyamaka


A Visão do Caminho do Meio

Ao enfocarmos o tema Madhyamaka, ou U-ma, como é chamado em tibetano, devemos primeiro compreender seu significado.
A palavra U-ma significa “O Meio”. É assim chamada porque evita os extremos contidos nas noções de existência e “ausência de existência [1]”.
O real significado de Madhyamaka é a visão direta e frontal que não resvala para qualquer extremo; uma visão que, a princípio, é muito difícil de ser alcançada. Os comentários sobre a Madhyamaka são feitos justamente devido a, originalmente não possuirmos tal visão. As instruções sobre a “reta visão” foram inicialmente ensinadas pelo Budha Shakyamuni e posteriormente, comentadas por vários mestres iluminados. Os tratados destes comentaristas são apontados como “Os comentários sobre a Madhyamika” (Madhyamika Shastras).
Os ensinamentos dados a seguir, dizem respeito a tais comentários.
O ensino é dado de modo a permitir que os discípulos possam compreender a “Natureza Fundamental da Realidade”, praticar o caminho da realização e, assim, alcançar a liberdade sobre o sofrimento.

OS TRÊS GIROS DA RODA DO DHARMA

O Budha apresentou a “Visão do caminho do Meio” muitas vezes, de maneiras diferentes, as quais se acham sumarizadas nos “Três Giros da Roda do Dharma”. Ele ensinou primeiramente em Sarnath, pouco após sua iluminação, a um grupo de seres que não tinham nem grande energia, nem mentes expansivas. Ministrou-lhes as “Quatro Nobres Verdades”: ensinou que toda existência comum é sofrimento, que tal sofrimento resulta de nosso próprio carma e que este carma é gerado através do condicionamento degradado de nossas próprias mentes.
A mente degradada, afirmou, provém de nosso apego à noção de uma individualidade, ou ego. Assim, o Budha demonstrou a natureza sofredora da existência no mundo e suas causas. Em seguida, mostrou a possibilidade da liberação do sofrimento ao alcançarmos o Nirvana.
Para se alcançar o Nirvana, não é suficiente ter inclinação moral, ou o sentimento de poder alcançá-lo: deve-se estar compelido a praticar o caminho a fim de atingir a completa cessação das degradações e do conseqüente sofrimento; cessação esta que é o Nirvana. Neste contexto, “o caminho” significa contra-agir ao apego à noção de ego e auto-existência.
Assim procedendo, podemos nos livrar das degradações de nossas mentes, da necessidade de gerar carma e, desta forma, sermos dispensados da necessidade de gerar carma e, desta forma, sermos dispensados da necessidade de continuadas passagens pelo mundo.
No “Primeiro Giro da Roda do Dharma”, o Shakyamuni não ensinou especificamente a Vacuidade, embora tenha sugerido indiretamente.
A ausência de ego que ele proclamou naquela oportunidade não era a ausência de individualidade num sentido último, mas no sentido mais simples de que não existe nenhum ego, ou auto-natureza, permanente e solidamente individual.
Posteriormente, em Rajgir, ele transmitiu o “Segundo Giro da Roda do Dharma”, os ensinamentos a respeito da ausência de características fundamentais. Ensinou-nos as dezesseis modalidades de Vacuidade: as aparências externas são vazias, o mundo interior dos pensamentos é vazio; tanto as coisas externas quanto internas, em conjunto, são vazias; e, assim por diante, em dezesseis estágios. Desta maneira, ele demonstrou que não existe nenhum ego, não apenas no sentido comum, mas, ainda, que nenhuma realidade inerente pode ser encontrada em coisa alguma, seja lá onde investiguemos.
Mais tarde, em Sravasti, Budha ensinou o “Terceiro Giro da roda”, no qual revela que a Vacuidade não é meramente vazia, mas dá origem a todos os fenômenos e é continuamente expressiva. Este terceiro giro inclui lições sobre a “Fonte dos Tathágatas2” (Tathágata Garba), o ensinamento básico sobre o qual a filosofia da Escola “Mente Única” ou escola “Somente Consciência” (Vijnanavada) foi fundada.
A distinção entre o segundo e o terceiro giros é que, nos ensinamentos de Rajgir, o Budha pregou a Vacuidade como sendo uma função da aparência, isto é, a mais alta qualidade da aparência (a sua falta de verdadeira existência), enquanto que, em Sravasti, ensinou-nos a Vacuidade como uma espécie de fundação a partir da qual tudo é expresso.
Os três Giros, então, compõe o ensinamento da “Visão Correta”.
Budha ensinou também, muitos métodos para o reconhecimento da Natureza Fundamental e para a prática do caminho segundo os ensinamentos do Mahamudra (Supremo Gesto) e as lições sobre Maha Sandhi, ou Dzogchen (A Grande Perfeição), métodos para a prática e alcance da realização, os quais não diferem do enfoque da Visão do Caminho do Meio (Madhyamaka).
O “Primeiro Giro da roda do Dharma”, o primeiro ensinamento sobre as Quatro Nobres Verdades, etc, geralmente diz respeito ao Hinayana.
Os ensinamentos do “Segundo Giro”, sobre os dezesseis aspectos da Vacuidade, etc, foram desdobrados por Nagarjuna no seu Prajna Nama Mula Madhyamaka Karika e, mais tarde, por Chandrakirti no Madhyamaka Vatara, por Shantirakshita no Madhyamaka Lankara e por Aryadeva nas Quatrocentas Estrofes Sobre a Madhyamaka. Estes quatro comentários (shastras) clarearam a visão da Vacuidade, bem como da Verdadeira Natureza da fenomenalidade.
Maitreinatha deu a Asanga cinco comentários em versos sobre o “Terceiro Giro da Roda do Dharma”, referentes à “Fonte dos Tathágatas” e Asanga fez comentários sobre tais versos. A partir dessas explicações, se deriva a linhagem de visão do “Terceiro Giro”.
A explicação da Vacuidade de acordo com o “Segundo Giro”, os ensinamentos de Nagarjuna, Aryadeva, etc, são chamados em tibetano de Rangtong, o que, basicamente, significa que toda aparência é vazia.
A explicação da Vacuidade de acordo com o “Terceiro Giro”, o ensinamento de Asanga, é conhecido como Shentong, que significa que a Vacuidade em si mesma não é meramente vazia, mas expressa as qualidades búdicas.
Os verdadeiros meios para se chegar ao reconhecimento da Natureza Fundamental não são diferentes nos dois sistemas. A única distinção diz respeito apenas à maneira pela qual a Vacuidade é explicada.

IMPERMANÊNCIA, CARMA E VACUIDADE

Em geral, se considerarmos nossa própria experiência, concluiremos que temos corpo, sentimentos, idéias, impulsos e consciência. Ao examinarmos tais agregados, verificaremos que nenhum deles é permanente. Nossos corpos, por exemplo, eram muito pequenos quando nascemos e foram crescendo gradualmente. Estão envelhecendo agora e, eventualmente, se deteriorarão e perecerão.
Assim, podemos facilmente ver que o corpo – e, similarmente, os sentimentos, etc – são impermanentes.
Existem muitas idéias diferentes acerca de como nascemos dentro desta modalidade de estrutura impermanente.
Alguns pensam que há um indivíduo onipresente que a tudo conduz, fazendo com que as pessoas nasçam aqui ou ali, nesta ou naquela forma. Outros sentem que forças externas ao mundo produzem os nascimentos em lugares diferentes e sob várias condições.
O Budismo, porém, propõe uma teoria absolutamente distinta. De acordo com o Budismo, tudo ocorre devido ao carma que nós próprios geramos.
Nasci no Tibet devido à força do carma gerado em vidas anteriores. Todos vocês nasceram no Ocidente devido ao carma gerado em existências passadas. Nós nascemos numa época de particular instabilidade, devido ao poder do nosso carma.
Assim, embora eu tenha nascido mo Tibet, meu carma produziu meu nascimento numa época em que as condições lá eram muito instáveis e me forçaram a vir para a Índia. Similarmente, embora vocês tenham nascido no Ocidente, as condições do carma os trouxeram até aqui. Nosso nascimento e várias condições a que nos submetemos são um produto do próprio carma.
A razão para a geração de todas estas formações cármicas, que trazem à tona nossa situação existencial, é que, mentalmente, estamos continuamente agindo a partir de impulsos degradantes – de agressão, desejo, orgulho, inveja, ciúme, etc.
Temos agido impulsivamente porque temos nos mantido apegados à noção de individualidade, de auto-existência.3 Esta falsa suposição de um ego nos tem compelido de uma a outra condição, conduzindo-nos ao sofrimento. Somente poderemos nos libertar desta continua situação compulsiva pelo reconhecimento e compreensão da realidade, na qual não há a suposição de um ego.
Ao considerarmos a Natureza Fundamental, podemos ver que ela deve sempre ser justamente como é. O fato de não reconhecermos a Natureza da Realidade, devido à nossa ignorância, em absoluto pode afetá-la. A Natureza Fundamental da Realidade tem sido como é desde os primórdios dos primórdios.
Já que podemos estar enganados quanto à Natureza da Realidade, indagamos: “Após reconhecermos a Natureza da Realidade, seria possível voltarmos novamente ao equívoco e recairmos em falsa compreensão?”
Tal não é possível, uma vez que, vagar novamente pelo engano, requereria o impulso básico da ignorância. Teria de haver alguma espécie de sentimento segundo o qual a Vacuidade se mostrasse insatisfatória, ou irreal. Mas, tendo realmente reconhecido a Vacuidade, descobrimos que isso não ocorre.
A experiência da Vacuidade é plena de felicidade perene, é contínua e brilhantemente a expressão das qualidades búdicas. Através da experiência da Vacuidade, nos libertamos dos sofrimentos do samsara e não resta qualquer impulso que nos leve novamente a vagar em meio às percepções do falso entendimento. Quando, por uma vez que seja, tivermos realmente reconhecido tal Natureza Fundamental, passamos a nos situar além da possibilidade de reversão, sejam quais forem as pressões exercidas pelas condições ou pelos amigos.
Se a Natureza Fundamental estivesse sujeita a alterações, poderia então haver alguma perda de realização. Mas, isso é um absurdo. É ridículo pensar em uma Natureza Fundamental que, por si mesma, seja passível de transformações.
Por exemplo, seria absurdo pensar que não havia nenhuma auto-existência na individualidade no ano passado, mas que, agora, temos todos um ego auto-existente.
Podemos facilmente constatar que a Natureza Fundamental é inalterável e que não pode haver reversão após a Iluminação, o estado de Bhuda, o Estado de Ser Desperto.
Há muitos exemplos ilustrativos de como o estado de Budha é impermeável a todos os obstáculos e interferências conforme as histórias das vidas anteriores de Budha.
Um Bodhisatva certa vez nasceu como um rei chamado Mahadatta. Tinha alguma visão interior da Vacuidade e tal se expressava por um grande impulso de dar. Assim, Mahadatta estava sempre distribuindo coisas, fazendo grandes donativos, dando esmolas aos pobres, etc.
Certo dia, durante uma refeição, percebeu um mendigo tentando obter esmolas e imediatamente ordenou ao criado que lhe desse algum alimento. No entanto, antes que o criado pudesse alcançar a porta, o mendigo já se afastara. Então o próprio Mahadatta ergueu-se subitamente e, empunhando seu prato de comida, precipitou-se porta afora para dá-lo ao mendigo.
Enquanto tentava alcançar o mendigo, experimentou uma visão demoníaca: repentinamente se viu diante de um inferno muito quente, onde os habitantes sofriam grandemente. De um dos lados deste inferno havia um demônio que parecia infringir o sofrimento naqueles seres. Este, percebendo-o, perguntou a Mahadatta se ele sabia por que aqueles seres estavam sofrendo. Mahadatta respondeu que não tinha idéia, mas que, certamente, sofriam terrivelmente. O demônio, então, disse que todos aqueles seres haviam degradado as linhagens de suas famílias ao esbanjar o patrimônio e o árduo trabalho de seus ancestrais. Por assim terem procedido, haviam nascido no inferno.
Mahadatta parou e refletiu sobre isto por um minuto e, então, inquiriu ao demônio:
“Os bens que foram distribuídos ajudaram as pessoas que os receberam?”
A esta pergunta só uma resposta é possível: se doarmos algo, ajudamos alguém e, assim, respondeu o demônio.
“Naturalmente, aquilo que foi dado ajudou em muito aos beneficiários, mas causou aos doadores o nascimento no inferno”.
Mahadatta, então concluiu:
“Se as coisas que dou ajudam as pessoas, mas podem me levar ao inferno, então continuarei a distribuí-las. Se for para o inferno por ajudar aos outros, está tudo muito bem comigo”. E a visão do demônio desapareceu.
Esta história mostra que, com a percepção da Vacuidade, nenhum obstáculo pode jamais prejudicar o entendimento básico de uma pessoa.
Quanto ao verdadeiro significado da Vacuidade, os seres estão impossibilitados de reconhecer a “Verdadeira Natureza” devido as suas formas de obscurecimento, que são:

1 – O obscurecimento das degradações, tais como o apego, a aversão e a ignorância.

2 – O obscurecimento conceitual, a discriminação artificial com relação ao sujeito, ao objeto (e a conexão entre eles)

Com o fim de purificar-nos com relação a estes dois tipos de obscurecimentos e reconhecermos as Duas Verdades (a verdade convencional e a Verdade Última), devemos conceber a falta de realidade da individualidade e a falta de realidade dos objetos cognoscíveis.

Do livro: “A PORTA ABERTA PARA A VACUIDADE”
Venerável Kenchen Thrangu Rimpoche – Ed. Bodigaya

Notas

1 – Não-Ser.

2 – Tathágata: aquele que encontrou a Verdade. Tathata = Verdade, – ágata = alcançar, chegar.

3 – Auto-existência, existência inerente, existência absoluta, auto-natureza, natureza própria, etc, em geral são meras expressões para referir-se a um modo de existência (teórico-hipotético) de um objeto ou fenômeno que existe “em si mesmo”, isoladamente, absolutamente, independentemente de qualquer outro objeto ou fenômeno.

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