O base


A BASE
Sogyal Rinpoche

A BASE
Ouvimos sempre afirmações como esta: “A morte é o momento da verdade”, ou “A morte é o instante em que finalmente você se vê face a face consigo mesmo”. E vimos como aqueles que passam por experiências de quase-morte às vezes relatam que ao testemunharem a vida ser repassada diante de si fazem-se perguntas como: “Que fez você da sua vida? Que fez você pelos outros?” Tudo isso leva a um fato: na morte não podemos escapar de quem ou do que realmente somos. Gostemos ou não a nossa verdadeira natureza é revelada. Mas é importante saber que há dois aspectos do nosso ser que são mostrados no momento da morte: nossa natureza absoluta e nossa natureza relativa – como somos e como temos sido nesta vida.
Como já expliquei, na morte todos os elementos que integram o nosso corpo e mente vão sendo removidos e desintegram-se. À medida que o corpo morre, dissolvem-se os sentidos e os elementos sutis, vindo em seguida a morte do aspecto ordinário da mente com todas suas emoções negativas de raiva, desejo e ignorância. Finalmente, nada fica para obscurecer a nossa verdadeira natureza, uma vez que tudo o que anuviava a mente iluminada desapareceu. E o que se revela é a base primordial da nossa natureza absoluta, que é como um céu puro e sem nuvens.

Chama-se a isso o despontar da Luminosidade Base, ou “Clara Luz”, em que a própria consciência se dissolve no espaço todoabrangente da verdade. O Livro Tibetano dos Mortos diz sobre esse momento:

A natureza de tudo é aberta vazia e nua como o céu.
Vacuidade luminosa, sem centro nem circunferência:
o puro e desnudo Rígpa desponta.

Padmasambhava descreve a luminosidade da seguinte maneira:

A Clara Luz auto-gerada, que jamais, nem mesmo no princípio, teve nascimento,
É a filha de Rigpa, que por sua vez não tem pais- que extraordinário!
Essa sabedoria que a si mesma gerou e não foi criada por ninguém – que extraordinário!
Que nunca experienciou nascimento, e não tem nada em si mesma que poderia causar-lhe a morte – que extraordinário!
Embora obviamente visível, não há ninguém lá que a veja – que extraordinário!
Embora tenha vagado pelo samsara, nenhum mal a atingiu -que extraordinário!
Embora tenha visto o próprio estado búdico, disso não lhe adveio nenhum bem – que extraordinário!
Embora exista em todos e em toda parte, passou irreconhecida – que extraordinário!
E, no entanto você continua esperando conseguir, em outro lugar, algum outro fruto que não esse – que extraordinário!
Ainda que ela seja o mais essencialmente seu, você a procura em outra parte – que extraordinário!

Por que esse estado é conhecido como “Luminosidade” ou Clara Luz? Os mestres têm modos diferentes de explicar. Uns dizem que isso expressa a claridade irradiante da natureza da mente sua condição totalmente livre das trevas ou do obscurecimento: “livre da escuridão de desconhecer e dotada da habilidade de conhecer. Outro mestre descreve a luminosidade da Clara Luz como “um estado em que a distração é mínima”, porque todos os elementos, sentidos e objetos dos sentidos foram dissolvidos. O importante é não confundi-la nem com a luz física que conhecemos, nem com as experiências de luz que se desdobrarão em breve no próximo bardo a luminosidade que surge na morte é a radiância natural da sabedoria de nosso próprio Rigpa, “a natureza una, presente por todo o samsara e o nirvana”.
O surgimento da Luminosidade Base ou Clara Luz no momento da morte é a maior oportunidade para a liberação. Mas é essencial perceber em que termos é dada essa oportunidade. Alguns autores e estudiosos modernos da morte subestimaram a profundidade desse momento. Porque leram e interpretaram o Livro Tibetano dos Mortos sem o benefício das instruções orais e o treinamento que explicam plenamente seu sentido sagrado, eles o supersimplificaram tirando conclusões precipitadas. Uma das afirmações que fazem é a de que o surgimento da Luminosidade Base é a iluminação. Gostamos de identificar a morte com o céu ou a iluminação, porém mais importante do que essa identificação é saber que o momento da morte só oferece uma oportunidade real para a liberação se tivermos sido introduzidos à natureza da nossa mente, nosso Rigpa, e se o estabelecemos e estabilizamos através da meditação, integrando-o em nossa vida.

Ainda que a Luminosidade Base se apresente naturalmente a todos nós, muitos estão despreparados para a sua absoluta imensidão, a vasta e sutil profundeza da sua simplicidade desnuda. A maioria de nós simplesmente não dispõe de meios para reconhecê-la, porque não se familiarizaram durante a vida com o modo de obter esse reconhecimento. O que acontece, então, é que tendemos a reagir de modo instintivo com os nossos medos, hábitos e condicionamentos passados, todos os nossos velhos reflexos. Embora as emoções negativas tenham morrido para a luminosidade aparecer, os hábitos de muitas vidas ainda permanecem – escondidos no fundo da nossa mente ordinária; embora toda a nossa confusão morra na morte, em vez de nos rendermos e abrirmos para a luminosidade, retraímo-nos em nossos medos e ignorância, e instintivamente enfatizamos o nosso apego.

Isso é o que nos impede de verdadeiramente utilizar esse momento poderoso como uma oportunidade para a liberação. Padmasambhava diz: “Todos os seres viveram e morreram e renasceram incontáveis vezes. Vez após vez eles experimentaram a indescritível Clara Luz. Mas, obscurecidos pelas trevas da ignorância, vagam infinitamente num ilimitado samsara”.


A BASE DA MENTE ORDINÁRIA

Todas essas tendências habituais – resultado do nosso carma negativo – que nasceram da escuridão da ignorância, ficam acumuladas na base da mente ordinária. Sempre me pergunto qual seria um bom exemplo para ajudar a descrever essa base da mente ordinária. Pode-se compará-la a uma bolha de vidro transparente, uma fina película elástica, uma barreira quase invisível ou um véu que obscurece o todo da nossa mente; mas a imagem mais útil que me ocorre talvez seja a de uma porta de vidro. Imagine-se sentado em frente a uma porta de vidro que dá para o seu jardim, olhando através dela, fitando o espaço. Na aparência, não há nada entre você e o céu, pois você não vê a porta. Pode até dar com o nariz nela se se levantar e tentar atravessá-la pensando não haver nada. Mas se tocar o vidro verá imediatamente que há algo em que ficam suas impressões digitais, alguma coisa que se põe entre você e o espaço lá fora.

Do mesmo modo, a base da mente ordinária impede-nos de abrir caminho até a natureza da nossa mente – que tem qualidades similares às do céu – ainda que possamos vislumbrá-la. Como eu disse, os mestres explicam que há um perigo de os praticantes de meditação se equivocarem tomando a experiência da base da mente ordinária pela verdadeira natureza da mente. Quando descansam em estado de grande calma e quietude, podem estar descansando apenas na base da mente ordinária. É a diferença entre olhar para o céu de dentro de um domo de vidro e olhar para esse mesmo céu do lado de fora, ao ar livre. Precisamos deixar a base da mente comum para descobrir o ar fresco e puro de Rigpa, e deixá-lo entrar.
Assim, purificar essa barreira sutil, enfraquecê-la e rompê-la é o alvo ou propósito de toda a nossa prática espiritual, e também a real preparação para o momento da morte. Quando essa barreira desmoronou por completo, nada se interpõe entre você e o estado de onisciência.

A introdução à natureza da mente dada pelo mestre atravessa a base da mente ordinária, já que é através dessa dissolução da mente conceitual que a mente iluminada se revela explicitamente. Então, cada vez que repousamos na natureza da mente, a base da mente ordinária se torna mais fraca. Mas perceberemos que o tempo que podemos ficar no estado da natureza da mente depende por completo da estabilidade da nossa prática. Infelizmente, “os velhos hábitos custam a morrer”, e a base da mente ordinária retorna. Nossa mente é como o alcoólatra que pode abandonar o vício por algum tempo, mas que recai nele quando é tentado ou está deprimido.

Tal como a porta de vidro retém toda a sujeira da sua mão e dos seus dedos, também a base da mente comum reúne e armazena todo seu carma e seus hábitos. E assim como temos sempre que limpar o vidro, temos também que ficar purificando a base da mente ordinária. É como se o vidro fosse ficando mais fino à medida que o limpamos, como se surgissem buracos nele e por fim se dissolvesse no ar.

Pela nossa prática vamos estabilizando a natureza da mente mais e mais, até que ela deixa de ser simplesmente a nossa natureza absoluta e torna-se a nossa realidade de todo dia. Com o desenvolvimento desse processo, nossos hábitos se dissolvem e a diferença entre meditação e vida cotidiana diminui. Aos poucos você se torna alguém que pode caminhar diretamente para o jardim através da porta de vidro, sem obstrução. E o sinal de que a base da mente ordinária está enfraquecendo é que aumenta a nossa possibilidade de repousar, com cada vez menos esforço, na natureza da mente.

Quando surge a Luminosidade Base, o ponto crucial será o quanto fomos capazes de repousar na natureza da mente, de unir a nossa natureza absoluta da mente com a nossa vida cotidiana, e de purificar nossa condição ordinária no estado de pureza primordial.


O ENCONTRO DA MÃE COM A FILHA

Há um meio de nos prepararmos integralmente para reconhecer o surgimento da Luminosidade Base no momento da morte. É através do mais alto nível de meditação – como expliquei no capítulo 10, “A Essência Mais Profunda” – em que se dá a fruição completa da prática do Dzogchen. É a chamada “União de Duas Luminosidades”, também conhecida como “Fusão das Luminosidades Mãe e Filha”.

A Luminosidade Mãe é o nome que se dá à Luminosidade Base. Essa é a natureza fundamental e inerente de tudo, subjacente a toda nossa experiência e que se manifesta em toda sua glória no momento da morte.

A Luminosidade Filha, também chamada Luminosidade Caminho, é a natureza da nossa mente que, se introduzida pelo mestre e reconhecida por nós, podemos estabilizar pela meditação e integrar de maneira cada vez mais completa em nossa ação na vida. Quando a integração é completa, o reconhecimento é integral e ocorre a realização.

Ainda que a Luminosidade Base seja nossa natureza inerente e a natureza de tudo, nós não a reconhecemos e ela se mantém como se estivesse oculta. Gosto de pensar na Luminosidade Filha como uma chave que o mestre nos dá para auxiliar-nos a abrir a porta do reconhecimento da Luminosidade Base, sempre que surge a oportunidade.

Imagine que você tem de encontrar uma mulher que chega de avião. Se não tem idéia de como ela é, pode estar no aeroporto e ela passar direto por você sem que se encontrem; mas se vir uma fotografia dela e a mantiver firme na memória, você a reconhecerá tão logo se aproxime.

Uma vez que a natureza da mente foi introduzida e você a reconhece, tem a chave para reconhecê-la novamente. Mas da mesma forma que precisa conservar a fotografia com você, e continuar olhando para ela repetidas vezes a fim de ter a certeza de reconhecer a pessoa que vai encontrar no aeroporto, precisa também continuar aprofundando e estabilizando seu reconhecimento da natureza da mente através da prática regular. Então, esse reconhecimento fica tão arraigado em você, passa de tal modo a fazer parte de você, que a fotografia já não é mais necessária; quando encontrar a pessoa o reconhecimento será espontâneo e imediato. Desse modo, depois de continuada prática do reconhecimento da natureza da mente, quando no instante da morte surgir a Luminosidade Base você estará pronto para reconhecê-la e fundir-se com ela – tão instintivamente, dizem os mestres do passado, quanto uma criancinha correndo para o colo da mãe, como velhos amigos se encontrando ou um rio desaguando no mar.

E, no entanto isso é extremamente difícil. A única maneira de assegurar esse reconhecimento é estabilizar e aperfeiçoar agora, enquanto estamos vivos, a prática de fundir as duas luminosidades. Isso só é possível ao longo de uma vida inteira de treinamento e empenho. Como dizia meu mestre Dudjom Rinpoche, se não praticamos a fusão das duas luminosidades agora, e de agora em diante, não se pode afirmar que o reconhecimento acontecerá de forma natural por ocasião da morte.

Como de fato fundimos as luminosidades? Essa é uma prática muito profunda e avançada, e aqui não é a ocasião de explicá-la. Mas o que podemos dizer é isto: quando o mestre nos introduz na natureza da mente, é como se a nossa visão tivesse sido restaurada, pois estivemos cegos em relação à Luminosidade Base que está em tudo. A introdução do mestre abre em nós um olho de sabedoria com que podemos ver claramente a verdadeira natureza de tudo o que surge, a natureza luminosa – a Clara Luz – de todos nossos pensamentos e emoções. Imagine que nosso reconhecimento da natureza da mente torna-se, depois de estabilizada e aperfeiçoada a prática, como um sol constantemente resplandecente. Pensamentos e emoções continuam a surgir; são como ondas de escuridão. Mas, a cada vez que as ondas encapelam-se e encontram a luz, dissolvem-se de imediato.

À medida que desenvolvemos mais e mais essa habilidade de reconhecer, ela se torna parte da nossa visão cotidiana. Quando somos capazes de trazer a realização da nossa natureza absoluta à experiência do dia-a-dia, temos maiores possibilidades de reconhecer a Luminosidade Base no momento da morte.

A prova para saber se temos ou não essa chave será o modo como vemos nossos pensamentos e emoções no instante em que surgem; se tivermos a capacidade de penetrá-los diretamente com a Visão e reconhecer a sua natureza luminosa inerente, ou se obscurecemos essa natureza com as nossas reações instintivas habituais.

Se a base da nossa mente comum está completamente purificada é como se tivéssemos destruído o depósito do nosso carma e assim esvaziado o suprimento cármico dos futuros renascimentos. Entretanto, se não pudemos purificar a nossa mente por completo, ainda teremos resíduos de hábitos passados e tendências cármicas estocados nesse depósito de carma. Sempre que se materializarem condições favoráveis eles se manifestarão, impulsionando-nos para novos renascimentos.


A DURAÇÃO DA LUMINOSIDADE BASE

A Luminosidade Base surge; para um praticante, ela dura o quanto ele puder repousar, atento, no estado da natureza da mente. Para a maioria das pessoas, no entanto, ela não dura mais que um estalar de dedos, e para alguns, dizem os mestres, “o tempo que se gasta para fazer uma refeição”. A vasta maioria não reconhece em absoluto a Luminosidade Base, e em vez disso mergulha num estado de inconsciência que pode prolongar-se por até três dias e meio. É então que a consciência finalmente deixa o corpo.

Isso levou ao costume tibetano de evitar que o corpo seja tocado ou perturbado por três dias após a morte. É especialmente importante no caso de um praticante que pode ter-se fundido com a Luminosidade Base e estar repousando no estado da natureza da mente. Lembro-me, no Tibet, do cuidado que todos tinham em manter uma atmosfera de paz e silêncio em torno do corpo, particularmente no caso de um grande mestre ou praticante, de maneira a não causar a menor perturbação.

Mas também era freqüente não mexer o corpo de uma pessoa comum antes de passados os três dias, já que nunca se sabe se uma pessoa é ou não realizada, e é incerto o momento em que a consciência se separou do corpo. Acredita-se que se ele for tocado em determinado lugar – por exemplo, ao aplicar-se uma injeção – a consciência pode ser desviada para esse ponto. Então, a consciência do morto pode sair pela abertura mais próxima, ao invés de pela fontanela, levando a um renascimento infeliz.

Alguns mestres insistem mais que outros nessa questão de deixar o corpo em paz por três dias. Chadral Rinpoche, um mestre tibetano do tipo Zen que viveu na Índia e no Nepal, respondia a pessoas que argumentavam que um cadáver podia cheirar mal se mantido em clima quente durante tanto tempo: “Não como se tivesse de comê-lo, ou tentasse vendê-lo”.

Assim, num sentido estrito, é melhor fazer autópsias e cremações após três dias de espera. Nos dias de hoje, no entanto, já que pode não ser prático ou possível manter um corpo por esse tempo sem movê-lo, pelo menos deve-se fazer a prática de Phowa antes que ele seja tocado.


A MORTE DE UM MESTRE

Um praticante realizado continua no reconhecimento da natureza da mente no momento da morte e desperta na Luminosidade Base quando ela se manifesta. Ele ou ela pode permanecer nesse estado até por vários dias. Alguns praticantes e mestres morrem eretos e sentados na postura de meditação, e outros na “postura do leão adormecido”. Além de seu perfeito equilíbrio, ocorrem outros sinais que mostram que está repousando no estado de Luminosidade Base: há ainda um certo colorido e algum brilho no seu rosto, o nariz não afunda, a pele permanece macia e flexível, o corpo não enrijece, diz-se que os olhos conservam um brilho suave e compassivo e ainda há um calor no coração. Toma-se grande cuidado em não tocar o corpo do mestre e faz-se silêncio ao seu redor até que saia desse estado de meditação.



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