O mahayana e o tratamento das emoções-transformação


TRANSFORMAÇÃO DAS EMOÇÕES


Vimos que a maneira de tratar as emoções conflituosas no hinayana consistia em rejeitá-las. No mahayana, ao contrário, esforça-se para transformá-las de maneira positiva.

Geralmente, contam-se seis emoções principais, repartidas em dois grupos de três. O desejo-apego, o ódio-aversão e a cegueira constituem a base sobre a qual se implantam as outras três: do desejo-apego nasce a possessividade, do ódio-aversão, o ciúme, da cegueira, o orgulho.

Essas seis emoções conflituosas estão relacionadas com os renascimentos nos diferentes
mundos, segundo sua predominância:

  • o ódio-aversão conduz ao renascimento nos infernos;
  • a possessividade, no mundo dos espíritos ávidos;
  • a cegueira, no mundo animal;
  • o desejo-apego, no mundo humano
  • o ciúme, no mundo dos semideuses;
  • o orgulho, no mundo dos deuses.

Em razão do renascimento em uma ou outra condição de existência, as emoções conflituosas são modificadas pelos atos positivos e negativos: os primeiros produzem as alegrias e as felicidades dos três mundos superiores (humanos, semideuses e deuses), os segundos provocam os sofrimentos dos três mundos inferiores (animais, espíritos ávidos e infernos).


GRADAÇÃO DAS EMOÇÕES


Podemos classificar as emoções conflituosas segundo a quantidade de sofrimento que provocam. Desse ponto de vista, o ódio-aversão aparece como o de consequências mais pesadas, já que causa as dores extremas dos infernos. Em segundo, vem a possessividade que provoca o renascimento no mundo dos espíritos ávidos, já que a cegueira – a estupidez, a incapacidade de compreender – conduz ao mundo animal. Em seguida, pode-se colocar o ciúme, causa do renascimento entre os semideuses, envolvidos em querelas e conflitos contínuos, sofrendo de uma insegurança permanente, resultado de seu desejo de ter o que os outros possuem, em particular os deuses.

O desejo-apego e o orgulho são as duas emoções conflituosas cujo predomínio conduz ao renascimento em mundos relativamente felizes, aqueles dos homens ou o dos deuses. Para que produzam esse resultado, é preciso, entretanto, que intervenham outros fatores.

Tomemos o exemplo dos deuses. Seu orgulho, isolado de qualquer contexto, leva-os a pensar: “Eu SOU forte, inteligente, alguém importante”. Foi preciso este orgulho, fortemente dominante com relação ao desejo, à cólera, ao ciúme etc., para renascer nesse mundo. Se, entretanto, os deuses gozam ali de todos os prazeres dos sentidos e de uma longa vida, é porque a esse orgulho foi acrescentado um forte potencial de karma positivo. A vida de um deus vai ser, portanto, essa mistura de orgulho e de prazer dos sentidos no qual as outras emoções só intervém muito pouco.

Da mesma maneira, uma predominância do desejo-apego origina a vida humana. Entretanto, ela será atenuada por outros fatores: um karma positivo anterior permitirá que seja feliz e longa, enquanto que um karma negativo anterior produzirá doenças, pobreza e numerosas dificuldades.

O desejo-apego não é em si mesmo um defeito, como também não é a causa direta de muitos atos negativos. Seu inconveniente é ser seguido de cólera, ciúme etc., que são muito nefastos.
Temos, então, seis emoções conflituosas fundamentais; mas elas não poderiam descrever toda a complexidade da situação. É por isso que consideramos numerosas ramificações que levam a um número total de 84 mil emoções conflituosas. Sua intervenção leva-nos a errar continuamente no samsara.

Buddha apresentou diferentes métodos para tratar essas emoções, conduzindo a diferentes estados de realização:

  • a rejeição, em vigor no pequeno veículo, permite atingir o estado de arhat;
  • a transformação, tratada pelo grande veículo, conduz ao estado de bodhisattva;
  • o simples reconhecimento, ensinado pelo vajrayana, leva ao estado de Buddha nesta própria vida.

As técnicas de transformação das emoções são diferentes sob o mahayana dialético ou o vajrayana. Iremos tratar aqui do primeiro, unindo a teoria à meditação.


REFÚGIO E BODHICHITTA


Considerando-se que nos situamos no contexto do mahayana, primeiramente devemos lembrar que não somente nós mesmos, mas todos os seres, são prisioneiros do samsara. Desejamos, portanto, obter para nós mesmos a libertação e a felicidade que resultam do mahayana, assim como a capacidade de ajudar os outros e conduzi-los a essa mesma felicidade. Dado que apenas as Três Jóias podem nos guiar nesse caminho, tomamos refúgio nelas do fundo do coração. Depois, geramos a mente do Despertar, a bodhicitta, pensando: “Para o bem de todos os seres, eu me exercitarei na transformação das emoções segundo o ensinamento do mahayana”.

No momento em que nós recitamos a fórmula de tomada de refúgio, pensamos que, no céu a nossa frente, estão os Buddhas, os bodhisattvas e os textos representando o ensinamento. Em sua presença, pensamos que nos mesmos e todos os seres, com confiança e respeito, prosternamo-nos e pedimo-lhes para nos proteger dos sofrimentos do samsara.

(meditação)

Ao final da recitação da tomada de refúgio, pensamos que os Buddhas e bodhisattvas emitem uma imensa luz que toca todos os seres e os purifica de seus erros e de seus véus. Depois, sentimos plenamente a graça recebida das Três Jóias e guardamos por um momento a mente em repouso.

(breve meditação)

Agora, lembramo-nos que todos os seres das três esferas e dos seis mundos foram nosso pai e nossa mãe em nossas vidas passadas. Todos cometem muitos atos negativos, causa dos sofrimentos, e experimentam o resultado disso. Pensamos que é preciso retirá-los do oceano de sofrimentos do samsara e trazê-los ao estado de Buddha e que, para fazer isso, iremos praticar a meditação do mahayana. Com esse pensamento recitamos a fórmula do desenvolvimento da mente do Despertar.

(meditação)


TRANSFORMAÇÃO DA CEGUEIRA


Tomemos agora a postura de meditação, as costas bem retas, e deixemos nossa mente em repouso. Nessa mente em repouso, o desejo-apego, o ódio-aversão, a possessividade, o ciúme e o orgulho estão inativos. Constata-se, entretanto, a presença da cegueira que é a base das outras emoções. Esta cegueira significa que não compreendemos as implicações de nossos atos e de nossa situação; significa também que, quando um pensamento ou uma emoção se produzem, nós não vemos, fora do simples sentir do pensamento ou da emoção, qual é a sua natureza e origem. Primeiramente, iremos meditar tomando por base essa cegueira.

A cegueira vem da ignorância (sct. avijya) fundamental. Ainda que sejam muito semelhantes, pode-se dizer que a ignorância é o fato de a mente nada perceber, e a cegueira, o fato de nada compreender. Podemos comparar essas duas noções à obscuridade, uma obscuridade sem lua, sem estrelas, sem vela, sem eletricidade.

Precisamos transformar essa cegueira e essa ignorância, essa “in-consciência”, em consciência. Para fazer isso, permanecemos simplesmente na vacuidade da mente, que possui de maneira inerente a capacidade de consciência. Quando um pensamento ou uma emoção se elevam, continuamos preservando nossa capacidade de percebê-los, de termos consciência deles. Permanecemos na consciência de nosso estado interior.

Essa meditação é muito fácil. Se a mente permanece na vacuidade, ficamos simplesmente conscientes dessa vacuidade. Quando um pensamento se produz, só temos que reconhecê-lo, sem querer interrompê-lo, mas também sem segui-lo. Depois, quando um outro pensamento se apresenta, de novo apenas reconhecemos sua presença. É extremamente simples.

(meditação)

A cegueira é não-conhecimento. Por esse processo, nós a transformamos em conhecimento, em consciência do que se passa. É muito fácil: a mente permanece simplesmente lúcida, consciente, seja da ausência de pensamentos, seja dos pensamentos que se produzem. Não há nada a rejeitar ou nada a produzir. A própria não-consciência se transforma em consciência.

(meditação)

Esta meditação, que pode ser feita regularmente, é semelhante à luz que afasta a obscuridade da qual falamos há pouco. Ela é um meio de desenvolver a paramita do conhecimento. (Mahaprajana paramita)


TRANSFORMAÇÃO DO DESEJO


Em segundo lugar, tomemos o desejo. Como podemos transformá-lo em experiência de felicidade? Tomemos o desejo sexual: ele ocorre ao vermos uma bela mulher ou um belo homem e provoca uma sensação agradável, ao mesmo tempo física e mental. A esta sensação vai se acrescentar um elemento complicador: a sede de possuir o objeto do desejo. Esta sede é um produto da cegueira que não vê que a primeira sensação agradável é suficiente. Faz acreditar que a posse também é necessária.

Supondo que um homem veja uma mulher bonita, o desejo faz com que ele experimente logo uma sensação física e mental agradável. Ao mesmo tempo, a cegueira provoca uma vontade de posse, da qual se espera que consolide a experiência de felicidade. No contexto da meditação que visa transformar as emoções, detém-se na sensação de felicidade produzida pelo desejo, sem considerá-la como uma coisa ruim, sem querer rejeitá-la. Fica-se consciente dessa felicidade, lucidamente, e ela é experimentada sem que se deixe levar pela sede que queria possuir o objeto.

Assim, a alegria proveniente do desejo não causa nenhum problema. Quando pensamos em alguém que amamos, eleva-se espontaneamente uma alegria interior e um bem-estar físico. Permanecemos simplesmente não-distraídos nessa sensação de alegria, sem sermos tomados pelas complicações devidas à sede de posse. O fato de permanecermos nessa sensação, faz com que ela cresça e leva-nos a um estado de felicidade natural. Meditar assim é extremamente benéfico.

Meditemos, então, agora, pensando em alguém ou em um objeto que nos atraia particularmente, depois, permanecemos na sensação agradável provocada por esse pensamento.

(meditação)


TRANSFORMAÇÃO DA AVERSÃO


No mahayana, os meios de tratar o ódio-aversão são tão numerosos, quanto é forte a insistência sobre o amor e a compaixão. Vejamos simplesmente aqui como abordar o ódioaversão do ponto de vista da meditação.

Quando um forte acesso de cólera se manifesta, produz-se ao mesmo tempo na mente uma grande vivacidade, um grande vigor, como um raio que proporciona um possante dinamismo. Entretanto, mais uma vez, por causa da cegueira, esse vigor não é reconhecido; deixamo-nos levar pelas complicações que o acompanham. dirigidas ao objeto que suscitou nossa cólera: pensamos em prejudicar, bater ou matar. Contudo, a essência dessa cólera, longe de se situar na obscuridade, é uma grande claridade. É preciso, portanto, que olhemos essa essência, permanecendo sem distração nessa claridade. Assim operamos a transformação da emoção: a cólera é transformada em claridade.

Para realizar nosso exercício de meditação, pensemos agora cm uma pessoa ou uma situação que provoque nossa cólera. Sem seguir o movimento dessa cólera, permanecemos sem distração na claridade que a acompanha.

(meditação)

Assim, cada vez que se produzir em vocês um movimento de cólera ou de aversão, vocês podem permanecer na essência clara que a subentende, sem procurar rejeitar ou seguir a cólera, mas fixando-se em sua vivacidade. Desse modo a cólera se transformará em claridade.


TRANSFORMAÇÃO DO ORGULHO


“Sou melhor que os outros”, “sou muito inteligente; sou importante”: esses pensamentos característicos de um forte apego ao “eu” constituem o orgulho. Quando o orgulho se produz, permanece-se neutro diante dele, sem rejeitá-lo ou segui-lo, conservando simplesmente a mente nesse sentimento, sem distração; a partir de então esse orgulho, comparável a uma montanha, encontra-se naturalmente aplainado. O “eu” perde sua supervalorizaçâo.

(meditação)

Na medida em que aprendemos a meditar dessa maneira, as numerosas ocasiões em que oorgulho se eleva em nossa mente acabam sendo muito proveitosas, pois se transformam no suporte para o desenvolvimento da quinta paramita, a da concentração. Ao mesmo tempo, o orgulho, nascido da assimilação de um “eu”, quando se apaga pelo fato de olharmos sua essência. da lugar à percepção da ausência do eu.


TRANSFORMAÇÃO DA POSSESSIVIDADE


Todos nós somos marcados pelo conjunto das emoções conflituosas. Dentre elas, a possessividade, que se aplica ao nosso corpo, a nossa casa, a qualquer de nossos bens, está sempre muito presente e é muito forte. Qualquer que seja a forma que ela se apresente, podemos neutralizá-la pelo dom praticado em diferentes graus: o dom dos bens materiais é o primeiro grau, o dom de sua família é o segundo, o dom de seu sangue e de sua carne constitui a forma mais elevada. O mahayana oferece assim uma grande variedade de meios colocando em prática a generosidade para suplantar a possessividade.

Do ponto de vista da meditação, onde nos situamos agora, quando a possessividade se produz, nós a tratamos do mesmo modo que as emoções precedentes: sem segui-la ou rejeitá-la, permanecemos simplesmente no sentimento que é a sua base. Assim, a possessividade ordinária se tornará um sentimento de contentamento, neutro, do qual se apagará espontaneamente o caráter nocivo. Quando a possessividade desaparece, ela é automaticamente transformada em seu oposto: uma generosidade fundamental.


TRANSFORMAÇÃO DO CIÚME


O ciúme é comparável a um espinho: espeta não somente os outros, mas volta-se também contra aquele que o concebe, deixando-o muito incomodado e tornando-o infeliz. Cada vez que o ciúme se elevar, permaneçamos simplesmente fixados nele, sem segui-lo ou rejeitá-lo: ele se apaziguará automaticamente e não poderá “espetar”. Encontrará espontaneamente sua essência que é a paz interior. Assim, o ciúme é transformado em paz, ao mesmo tempo que, do ponto de vista das seis paramitas, ele se encontra associado à quarta, a diligência.

Dessa forma, vimos brevemente como abordar as seis principais emoções conflituosas por meio da meditação. Entretanto, é à transformação das três primeiras – desejo-apego, ódio-aversão e cegueira – que é necessário se dedicar primeiramente. Assim, o desejo-apego será transformado em felicidade vazia, o ódio-aversão em claridade vazia e a cegueira em conhecimento. Isto mostra como este tipo de meditação sobre as emoções é benéfico. As três emoções de base são para nós a fonte mais abundante de atos negativos, de problemas e de sofrimentos; por isso, é necessário abordá-las em primeiro lugar. As outras três – possessividade, orgulho e ciúme – são apenas corolários.
Todas as emoções conflituosas vêm da mente. Para concluir, permanecemos um momento na vacuidade da mente, depois dedicaremos o mérito deste ensinamento e desta prática ao bem-estar de todos os seres.

(meditação)

Vancouver, junho de 1982.

Print Friendly, PDF & Email

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *