O preço da prática



O preço da prática

Texto de Charlotte Joko Beck,
extraído do livro”Sempre Zen

Quando achamos nossa vida desagradável ou insatisfatória, tentamos nos livrar desse incômodo por meio de vários mecanismos de escape sutis. Com tais tentativas, estamos tratando nossa vida como se houvesse um mim e uma vida fora de mim. Enquanto tratamos nossa vida dessa forma, faremos com que todos os nossos esforços se dirijam ao encontro de algo ou de alguém que cuide de nossa vida por nós. Podemos procurar por um amante, um mestre, uma religião, um centro — algum lugar, alguém ou alguma coisa que resolva nossa dificuldade por nós. Enquanto virmos nossa vida desse modo dualista, estaremos nos enganando e acreditaremos que não é preciso pagar preço algum por uma vida realizada. Todos partilhamos essa desilusão em graus variáveis; e isso só nos leva a uma vida de torturas.

Conforme nossa prática prossegue, a decepção passa a ser confrontada e, aos poucos, vamos entendendo (horror dos horrores!) que temos um preço a pagar pela liberdade. E ninguém, a não ser nós mesmos, nunca poderá pagá-lo. Quando me dei conta dessa verdade, levei um dos maiores choques de toda minha vida. Enfim, um dia compreendi que apenas eu posso pagar o preço da realização e do percebimento. Ninguém mais, ninguém mais mesmo, pode fazê-lo por mim. Até que compreendamos essa dura verdade, continuaremos resistindo à prática. Mesmo depois de a termos visto, nossa resistência prosseguirá, embora não tão intensa. É difícil sustentar o conhecimento em sua plena potência.

Quais são algumas das maneiras pelas quais podemos nos esquivar ao pagamento desse preço? A principal delas é nossa constante má vontade em tolerar nosso próprio sofrimento. Pensamos que podemos nos esquivar dele ou ignorá-lo, ou dissolvê-lo em nossas idéias, ou persuadir outra pessoa a removê-lo em nosso lugar. Acreditamos ter o direito de não sentir a dor que está em nossa vida. Esperamos e planejamos com ardor que alguém — nosso marido ou esposa, o amante, o filho — cuide da dor por nós. Tal resistência mina nossa prática: "Não sentarei esta manhã; apenas não sinto vontade"; "Não estou indo participar de um sesshin; não gosto do que ocorre lá"; "Quando fico com raiva, não consigo controlar minha língua. Por que não consigo?". Cedemos em nossa integridade, quando é doloroso mantê-la. Desistimos de um relacionamento que já não satisfaz mais nossos sonhos. Por trás de todas essas evasões está a crença de que os outros têm de nos servir; os outros têm de organizar a bagunça que fazemos.
Na realidade, ninguém — mas ninguém mesmo — pode vivenciar nossa vida por nós. Ninguém pode sentir por nós a dor que a vida nos traz de modo inevitável, O preço que devemos pagar para crescer está sempre bem diante de nossa vista; e nunca teremos uma prática real, enquanto não nos dermos conta do quão pouco interessados estamos em pagar o preço que for. Infelizmente, enquanto estivermos na manobra da esquiva, estaremos nos impedindo a percepção do deslumbramento do que a vida é e do que nós somos. Tentamos apegar-nos a pessoas que pensamos ter poder para mitigar nossa dor por nós. Tentamos domina-las, mantê-las conosco, e até enganá-las para que se incumbam de nosso sofrimento. Contudo, é preciso reconhecer, não há almoço grátis, tampouco donativos. Uma jóia de grande valor nunca é um donativo. Devemos conquistá-la, através de uma prática perseverante e consistente.
Devemos conquistá-la a cada momento, e não apenas no "lado espiritual" de nossa vida. De que modo cumprimos nossos compromissos para com terceiros, de que modo os servimos, se fazemos ou não o esforço de atenção que é preciso a cada variado momento da vida; tudo isso é pagar o preço da jóia.

Não estou falando sobre estruturar um novo conjunto de ideais a respeito de "como eu deveria ser". Refiro-me a alcançar a integridade e a plenitude de nossa vida através de cada ato que executamos, de cada palavra que pronunciamos. Do ponto de vista comum, o preço que deve ser pago é enorme; quando visto pela óptica da clareza, não existe preço algum: é, de fato, um privilégio. Quanto mais cresce nossa prática, mais compreendemos esse privilégio.

Nesse processo, descobrimos que a dor dos outros e a nossa não são mundos separados. Não é "minha prática é minha prática e a sua é a sua", pois, quando estivermos verdadeiramente abertos para nossas próprias vidas, abriremo-nos para toda a vida. A desilusão da separatividade diminui, conforme pagamos o preço da prática atenta. Superar essa decepção é perceber que, com a prática, não estamos só pagando o preço por nós, mas por todos os outros no mundo. Enquanto nos ativermos à nossa separação — minhas idéias a respeito do que sou, do que você é, e do que preciso e quero de você — essa distância em si significa que ainda não estamos pagando o preço da jóia. Pagar o preço quer dizer que devemos dar o que a vida exige que seja dado (o que não pode ser confundido com a indulgência, com consentir com as próprias fraquezas). Talvez tempo, ou dinheiro, ou bens materiais; às vezes é não dar essas coisas, se for melhor assim. O esforço da prática é sempre ver o que a vida exige que lhe demos, em contraste com o que desejamos pessoalmente dar; e isso não é fácil. Essa árdua prática é o pagamento exigido, se desejamos encontrar a jóia.

Não podemos reduzir nossa prática apenas ao tempo que empregamos no zazen, embora ele seja crucial. Nosso treino — pagar o preço — deve ocorrer vinte e quatro horas por dia.

Quanto mais nos dedicarmos a esse esforço no transcorrer do tempo, cada vez mais conseguiremos valorizar a jóia que é nossa vida. Mas se continuarmos a remoer nossa vida como se ela fosse um problema, ou se investirmos nosso tempo tentando escapar a problemas (que são imaginários), a jóia permanecerá sempre oculta.

Conquanto oculta, a jóia está sempre presente, mas nunca a veremos a menos que nos disponhamos a pagar seu preço. Descobrir essa jóia é no que consiste a vida. Quantos estão dispostos a pagar o preço?


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