Vivendo Buda


VIVENDO BUDA

Zuymyo Joshin Sensei
(Mestra Zen da escola Soto, superiora do templo “La Demeure Sans Limites”)

Esta noite, não vou falar de coisas extraordinárias, maravilhosas, mas apenas de como vivemos a vida cotidiana. De uma maneira diferente, para estarmos um pouco mais presentes, um pouco mais abertos na nossa vida.

Para explicar melhor, falarei sobre a vida do Buda. O que me interessa é a vida do ser humano, como vocês e eu. Nós sabemos que ele nasceu há 25 séculos, num pequeno reino ao norte do Nepal, onde seu pai era um rei. E sabemos que sua mãe morreu uma semana após o seu nascimento.

De acordo com o horóscopo, ele poderia se tornar um grande rei, que conquistaria o mundo, ou então o salvador de todos os seres. Seu pai preferiu acreditar na primeira hipótese, pois sendo um rei, queria um sucessor. Ele pertencia à classe dos guerreiros e queria um filho também guerreiro. Então, deu-lhe o nome de Sidarta, “o vencedor”. Um dia, veio à corte um velho mestre que confirmou a predição: Ele iria salvar todos os seres da vida e da morte. O rei começou a ficar muito preocupado e decidiu criar Sidarta dentro de um castelo, de forma que ele tivesse tudo que a vida pudesse lhe oferecer e, ao mesmo tempo, que ignorasse as coisas piores dela. Mas, com a idade de sete anos, Sidarta iria cumprir a primeira etapa de sua vida de meditação.

Era primavera. Segundo o costume local e da época, o senhor das terras foi fazer o primeiro corte na terra com o arado. Sidarta viu insetos e minhocas cortados pelo ferro do arado e como aqueles que ficavam feridos eram comidos por pássaros e animais predadores. Foi o primeiro encontro de Sidarta com a vida e a morte, misturados com a alegria e tristeza ao mesmo tempo. Diz o texto que ele foi sentar-se sob uma árvore e, mesmo sem saber, entrou em meditação. Isso apenas aumentou a inquietude do rei, que decidiu casar seu filho ainda bastante jovem, pensando que uma mulher e um filho o ligariam à vida leiga e isso evitaria que ele renunciasse ao mundo. Assim, aos 16 anos Sidarta casou-se com uma moça de um reino vizinho. Foram instalados pelo rei num pequeno palácio com todas as comodidades necessárias para uma vida tranqüila. Sua esposa deu à luz um filho que se chamou Raúla, que significa “a ligação”.

É nesse momento que acontece o episódio chamado “os quatro encontros de Buda”. Um dia, Sidarta partiu com seus servidores para visitar a cidade e encontrou no caminho um homem agonizante, com o corpo deformado pela dor, e perguntou o que vinha a ser aquilo. “Não é nada de extraordinário, é um homem doente. Todas as pessoas adoecem”, respondeu-lhe o servo. Sidarta retornou ao palácio muito pensativo. Na próxima vez que foi à cidade, encontrou no caminho um velho fraco que tinha perdido a visão. Perguntou ao servo o que era aquilo e o servo disse: “Nada de extraordinário. É um velho. Todas as pessoas serão velhas”. Mais uma vez, Sidarta voltou ao palácio pensativo. Na sua terceira visita viu passar um cortejo, onde as pessoas choravam. Eram os funerais de uma criança que iria ser cremada, e Sidarta perguntou, “O que é isso?” E o servo disse, “Nada de extraordinário, são os funerais de uma criança. Todas as pessoas morrem um dia”.

Finalmente, na sua última visita, ele passou por um monge errante que pedia esmolas. Sua face refletia um espírito tranqüilo. Ele caminhava com graça, sem medo e sem orgulho. Sidarta então percebeu que assim era quando se quebravam todos os elos e se compreendia o sofrimento. Resolver o problema da vida e da morte seria útil a si e a todos os outros. Penso que essas são etapas que todas as crianças e todos os jovens atravessam. O encontro com a morte. O desejo dos pais de proteger os filhos do sofrimento. Sidarta teve todas essas lembranças e todos esses sofrimentos atenuados. O rei, sabendo dessa consciência de seu filho, resolveu fazer mais e mais festas para que ele pudesse se alegrar.

Uma noite, ao fim de uma festa com muitos músicos, dançarinas, cantores, Sidarta atravessou o salão onde as mulheres dormiam pelas almofadas e nos cantos da sala. Diante desses corpos fatigados, diante dessa evidência de vida e morte, decidiu deixar o palácio. Decidiu buscar o caminho que levasse ao fim do sofrimento. Ele tinha 29 anos. Anunciou sua partida ao pai e, pela última vez, foi ver sua esposa e filho que dormiam. Partiu com seu cavalo e um servo até a fronteira do reino de seu pai. Lá chegando, desceu do cavalo, cortou os próprios cabelos com a espada, retirou todas as suas jóias e armas, trocando também suas roupas com as de um caçador e, sem olhar para trás, entrou na floresta.

Ele sempre tinha vivido como um príncipe, de maneira extremamente comportada, e agora aprendera a viver fora, a dormir na chuva, a comer pouco. Uniu-se a um grupo de discípulos que faziam meditação. Ali ele aprendeu a fechar as portas da percepção do corpo e a entrar em estados profundos de concentração. Contudo, percebeu que ao sair da concentração o sofrimento continuava. Durante 3 anos ele visitou diferentes mestres e começou a dominar métodos de meditação cada vez mais profundos. Mas, sempre que terminavam os períodos de meditação, ele descobria que o sofrimento da vida e da morte permanecia.

Com seus outros cinco alunos, saiu em busca de umas cavernas onde passaram a viver em extremo ascetismo. Meditavam dia e noite, comendo apenas sete grãos de arroz por dia. Tentavam abandonar as necessidades físicas, pensando que se o corpo fosse livre o espírito se libertaria. A imagem de Buda desta época é mostrada como um verdadeiro esqueleto, mas ele sentia o sofrimento ainda presente. Um dia, meditando à beira de um rio, se deu conta de que havia perdido a alegria. A alegria da meditação, do vento que refrescava, do canto dos pássaros. Então percebeu que corpo e espírito eram um, e que torturando o corpo estava torturando o espírito. Decidiu buscar outro caminho.
Na manhã seguinte, tomou banho no rio e caminhou para a vila. Mas estava muito fraco. Deitou-se na estrada, sendo encontrado por uma jovem da vila que ia cuidar dos búfalos. Esta jovem deu-lhe um pouco de leite que acabara de tirar. Um menino que passava, deu ao Buda um punhado de ervas que colhera para os animais. Buda então tomou essas ervas e, usando-as como almofada, sentou-se sob uma árvore. Foi o local da iluminação.

Os amigos de Buda, vendo que ele tinha abandonado a vida ascética, resolveram partir. Sidarta, no entanto, pensava não ser necessário abandonar o mundo dos fenômenos. Não era preciso fechar-se na meditação, enquanto ao seu redor as árvores, as folhas, a natureza, enfim, o mundo eram a própria meditação. Então, o futuro Buda, o futuro “desperto”, decidiu continuar sua procura só, ao pé da árvore, ou morrer ali mesmo. Depois de 30 dias e 30 noites de meditação, ele entrou num estado mais profundo do que os que experimentara até ali. Na primeira parte da noite, ele reviu todas as suas vidas passadas. Elas somavam milhões e milhões de vidas. Neste processo, ele sentiu todas as dores, todas as penas, todas as alegrias de todos os homens. Na segunda parte da noite, viu universos incontáveis que surgiam, passavam e desapareciam. Percebeu, então, que a morte e a vida são a mesma coisa: aparências. Como o mar e as ondas. Milhares de vagas que se elevam e caem sem cessar. Mas qual a diferença entre as ondas e o mar?

Durante a lua cheia da primavera, quando a última das estrelas pastoras apareceu, ele atingiu o despertar completo, incomparável, compreendendo que havia experienciado a verdadeira natureza do nascimento e da morte. Assim, estendeu seu braço esquerdo em direção à terra até tocá-la e, invocando seu testemunho, disse: “Os muros desta prisão estão derrubados. Por inumeráveis vidas estive preso, mas doravante estes muros não mais serão erguidos. Eu não mais morrerei ou renascerei.” Após a iluminação, Buda continuou mais sete semanas sob aquela árvore, sabendo que atingiria sua meta e que não fora por nada que largara tudo. Sabia também que o caminho que encontrara seria muito difícil de ensinar, de ouvir, de compreender e de praticar.

Hesitou em ensiná-lo e foi refletir diante de um lago onde se viam flores de lótus. Algumas dessas flores estavam sob a água, outras na superfície e outras acima da superfície. Pensou, então, que a compreensão dos seres humanos era semelhante a essa imagem: há os que estão prisioneiros das ilusões, os que procuram a verdade e os que encontraram o caminho. E então, resolveu voltar a Benares para ensinar. Mas, quando seus amigos o viram, disseram, “Lá vem Sidarta, que traiu, que rompeu os seus votos. Não vamos cumprimentá-lo, não vamos fazer nenhuma homenagem à sua chegada”. Ao se aproximar, porém, a figura de Sidarta era tão radiante, sua aparência tão majestosa, que eles não puderam se impedir de levantar e oferecer-lhe uma bebida. Buda disse-lhes: “Não mais me chamem Sidarta, sou o Buda, o desperto”. Daria aí seu primeiro ensinamento, que se chamou a “primeira volta do Darma”.
Qual é esse ensinamento, qual é a dificuldade nesse ensinamento, qual significado pode ter para nós agora, depois de 25 séculos? Até aqui é como uma história. Uma história de contato. De contato com a vida, com o sofrimento e a morte. Todas as crianças passam por isso e, em seguida, todas as pessoas se tornam “sérias”. Não se tem mais tempo para questionamentos, para pesquisas científicas. Passa-se a ter responsabilidades. É preciso ganhar dinheiro, avançar na vida social, ocupar-se da família. É o que chamamos de senso de responsabilidade e seriedade. Eu penso que Buda tinha um grande senso de responsabilidade, mais amplo que o nosso. Era um senso não limitado ao seu reino, às suas coisas, à sua mulher e filho. Seu senso de responsabilidade considerava todos os seres. O ponto central era a compreensão de nascimento e morte. Ele observava exatamente aquilo que tentamos não ver: que nascemos e vamos morrer. Nada do que fizemos ou temos, nenhuma das pessoas que amamos poderá nos seguir depois da nossa morte. Durante toda a vida construímos, mas sobre o vazio, pois tudo está em permanente mudança.
As civilizações, as eras, nós mesmos, tudo é impermanente. Nosso rosto, nossos amores e paixões mudam.

Externamente, vemos alternância de saúde, doença, guerra e paz. Tentamos construir um refúgio, mas não é possível, pois a morte já está em nós mesmos. Mas isto não quer dizer que se vá viver irresponsavelmente: “Bom, se é assim, nada tem importância”. Pelo contrário, reconhecer isso é reconhecer que todos os seres humanos vivem as mesmas experiências. Repartimos as mesmas condições.

A vida é breve, as coisas mudam e desejamos ser felizes. Não importa a que raça pertençamos, não importa em que tempo estamos. Sempre procuramos a felicidade e fugimos do sofrimento. Este é nosso ponto básico. Mas aí as coisas se complicam porque para alcançar minha felicidade, talvez eu seja obrigada a empurrar ou derrubar alguém de seu lugar. E, em seguida, serei alvo de retaliação. Logo, não sendo assim tão simples, o que é essa felicidade?

O primeiro discurso do Buda se chama “As Quatro Nobres Verdades”. A primeira delas é a verdade do sofrimento. Todos conhecem o sofrimento. O sofrimento físico, a doença, a velhice, o sofrimento psicológico. Mas o texto diz que um dos sofrimentos também é “estar perto de quem não amamos e longe das pessoas que amamos”. Há um sofrimento ainda mais sutil, que é aquele ligado à mudança, à impermanência. Se as coisas externas mudam e nós mudamos, nada é permanente. Nada tem continuidade, nem o nosso sentimento, nem aquilo que procuramos: há sempre uma ligeira inquietude. Ainda que estejamos completamente felizes e a situação se apresente como a melhor possível, sempre há, no fundo, a idéia de que tudo pode mudar… como um pequeno ponto negro numa grande superfície branca. Então, tentamos bloquear as coisas. Tentamos alcançar segurança, mesmo sabendo que é provisória.

Há uma outra forma de sofrimento. O sofrimento da frustração. Imaginem que desejamos muito alguma coisa, algo material, uma situação ou uma pessoa. Se não pudermos obter isso, vem a frustração. Porém, se há possibilidade de conseguirmos, então vivemos de esperanças. Quando não se tem o desejado, pensamos que, se o tivéssemos, tudo ficaria perfeito e seríamos felizes. Finalmente, quando vemos nosso desejo realizado, em geral perde-se o encanto e o objeto do nosso desejo torna-se menos belo e brilhante que quando estava distante. Aquilo parecia ouro, agora é como uma pedra amarelada. Por outro lado, outras situações também trazem sofrimento, como pensar que se obtivermos o que queremos tudo ficará perfeito. E assim vamos nos repetindo. Essa é a nossa procura por felicidade. Isto não quer dizer que simplesmente exista sofrimento no mundo, mas que nossa própria forma de buscar a felicidade cria sofrimento.

Estar sempre correndo atrás de nossos desejos e fugindo de algo que possa nos alcançar pelas costas é muito estressante. É uma grande perda de energia. Então, qual a origem desse sofrimento? Buda conseguiu distinguir três causas: a avidez, a raiva e a ignorância. Vocês já viram um bebê quando está mamando? Ele o faz com uma avidez extraordinária, e é preciso que assim seja. Se não fosse assim, ele não poderia sobreviver. A dificuldade é que isso continua. O “eu quero, eu quero” conduz à luta contra outras pessoas que querem a mesma coisa. Então surge a raiva. Se não temos aquilo que queremos, se há recusa, nossa cólera vai longe, desde palavras ásperas até a guerra.

Mas a raiz de tudo é a ignorância, a ignorância da interdependência. Imaginamos um “eu” que quer obter alguma coisa e os “outros” que também desejam a mesma coisa, e então nos separamos. E quando nos separamos, criamos um território para nós mesmos. Passamos a defendê-lo e os outros tornam-se inimigos potenciais. Então, vamos enfileirando muros cada vez mais espessos e altos para nos proteger, de tal forma que nem sol nem vento conseguem penetrar. Vestimos uma armadura para a guerra de todos os dias. Contudo, com o peso cada vez maior desta armadura, em breve não conseguimos mais nos mover. Já não se pode dançar com a vida, com as coisas que chegam.
Temos medo de nós mesmos. Temos medo uns dos outros, das nossas emoções e do nosso interior. O medo passa a ser o centro de nossa vida.
A ignorância é isto. É estar cortado, separado dos outros e de si mesmo. Perdemos a unidade profunda com o mundo exterior e conosco mesmo.

A prática é esta: É estar aqui. É voltarmos ao primeiro instante, quando podíamos estar completamente aqui. Antes de fugirmos para as lembranças, os projetos, etc. Estar tranqüilamente no centro de tudo que existe, sem véus, sem separações com respeito à felicidade e ao sofrimento. A isto nós chamamos não-ego, não-sofrimento.
Não que o sofrimento exterior não exista. É que aceitamos o que existe.
Então, o que é ser livre? É fazer ou ter tudo que queremos em nossa avidez? Ou é estar livre destas ilusões que nos atacam sem cessar?

Compreender essa unidade, essa interdependência, é reconhecer que os outros desejam as mesmas coisas que nós. Eles têm a percepção de felicidade. Sofrem pela mesma razão que nós. Este é o início da compaixão.
Há uma história zen sobre a interdependência. É a história de uma pessoa que obteve autorização para visitar o inferno e o paraíso. Chegando no inferno, ela viu pequenos seres com pequenas cabeças e corpos enormes, e que tinham ligadas às mãos varinhas como as que os chineses usam para comer. Todos se debatiam para alcançar a comida, mas não conseguiam levá-la à boca, pois as varinhas eram muito compridas. O visitante viu então a avidez, o desejo pela comida na face daquelas pessoas.
Em seguida, foi ao paraíso e lá encontrou as mesmas pessoas, com as mesmas cabecinhas e grandes corpos, com as mesmas varinhas ligadas nas mãos. Porém, cada uma utilizava a sua varinha para alimentar a pessoa à sua frente, e todas as faces estavam tranqüilas.

Isto é a interdependência entre as pessoas.

Às vezes eu me pergunto quantos minutos por dia é possível viver sem estar em relação com os outros. Nós estamos em relação com muitas pessoas que estão mortas, através do que nos deixaram. Também estamos em relação com muitas outras coisas, como a eletricidade, o microfone, os automóveis, as profissões… Eu seria completamente incapaz de inventar a eletricidade, mas posso utilizá-la quando preciso.

Neste momento, no meu templo, há uma horta e nela trabalham pessoas que necessitam obter seu alimento. Eu poderia pensar que com algum dinheiro poderia comprar legumes, mas como não sei plantar, se não fossem essas pessoas talvez eu não tivesse nenhum alimento pois não posso comer dinheiro.
Não sei se realmente poderíamos viver um só minuto sem essa dependência. Em todo planeta necessitamos do ar, do sol, do vento e da chuva.

Na França, há um mestre zen vietnamita que diz que se você é poeta, nesta folha de papel poderá ver todo o universo. Aqui nesta folha de papel há o sol, que fez nascer e crescer as árvores, o vento, a chuva, o lenhador que cortou a árvore, a comida que este lenhador comeu, todas as pessoas que prepararam esta comida, todas as pessoas que trabalharam para fazer este papel, os que o venderam na livraria. Todo o universo está na folha de papel. É isto a interdependência.

Nós chamamos isto, nos textos, de a rede de Buda. Como na rede de pesca, onde cada linha está interligada uma com a outra, quando se corta uma parte, toda a rede se desfaz.
Compreender isso é encontrar a origem de nosso sofrimento. Perceber que quando machucamos alguém é a nós mesmos que estamos machucando.

Mestre Dogen, fundador do Soto Zen, escreveu que apenas os loucos pensam que é necessário colocar antes de tudo as suas próprias necessidades. O sábio vê que não há diferença entre ele e os outros. Mas, é claro, os outros são sempre o problema. Quando se está só tudo vai bem. Quando se está só é fácil pensar que somos as pessoas mais gentis e maravilhosas do mundo. Os outros nos atrapalham o tempo todo. São obstáculos entre nós e o que gostaríamos de ter. De modo geral, é assim que pensamos.

Há a história de um eremita que estava numa caverna sentado por anos e anos. Lá ele atingiu um samadi muito profundo, e um dia, por alguma razão, teve de ir à cidade. Quando chegou lá, havia muita gente e alguém pisou no seu pé. Ele ficou furioso. É isso, sempre são os outros que atrapalham nossa prática, interferindo em nosso caminho espiritual. É justamente a compreensão de nosso sofrimento que está exposta nas Quatro Nobres Verdades.
A terceira nobre verdade fala sobre a possibilidade de colocar um fim no sofrimento. Não é impossível. Não é uma meta idealizada. Muitas vezes o Buda foi comparado a um médico, comparado a quem conhece a doença, que descreve os sintomas e que dá o remédio para curá-la.

Como ser justo na vida cotidiana?

É importante nesse caminho a adequada utilização da palavra, porque penso que intuitivamente sabemos quando algo é ou não é justo.

Muitas vezes isso fica muito claro, por exemplo, quando vocês estão com amigos e dizem algo inconveniente, que talvez fosse melhor não ter dito. Naquele momento pareceu mais interessante chamar a atenção, aparentar saber mais que os outros ou ser o primeiro a dizer aquilo, mas, no fundo, sabíamos que não era a melhor coisa a ser dita. Não era justo.

Justo significa adaptado à situação. Uma maneira de manter a atenção sobre a nossa vida a cada momento. Sobre como ela é e não como gostaríamos que fosse. Há, então, um tipo de manipulação interessante. Tentamos empurrar as pessoas e as coisas para exercer o nosso desejo. Então dizemos: “Ah, se essa pessoa pudesse fazer assim ou assado, se pudesse ser mais gentil…” mas se ela não age como desejamos, ficamos enraivecidos. E certamente os outros estão fazendo o mesmo conosco… O estudo das Quatro Nobres Verdades pode nos fazer compreender comportamentos de nossa vida cotidiana. Porém, isso é teórico, uma elaboração mental.

Muitas vezes compreendemos que deveríamos mudar em alguns aspectos. Nosso caráter, nossa maneira de ser. É muito difícil mudar. É por isso que a prática budista está baseada na meditação. Sidarta é o exemplo. Há muitas falsas idéias sobre a meditação. Primeiro, vou lhes dizer o que a meditação não é. Não é um refúgio para nos apartar dos outros, do mundo. Não é alcançar um pequeno paraíso com nuvenzinhas e pequenos anjos que pulam por todo lado. Não é sentar para olhar o próprio umbigo, nem para fazer um estudo psicológico de si mesmo, nem para ter tempo de cuidar de tudo que deve ser feito durante o dia. Não é relaxamento. Praticar meditação é estar preparado para olhar aquilo que está dentro de nós, nossa cólera, medo e frustração.

Tudo o que fechou nosso coração a nós mesmos e aos outros. Meditar é um longo trabalho, física e moralmente doloroso. Pode ser mesmo aborrecido, mas é absolutamente necessário. às vezes utilizamos uma comparação: Não podemos ver através de um copo com água lamacenta, devido às impurezas em suspensão. Se colocarmos o copo tranqüilamente sobre a mesa, aos poucos as impurezas vão decantando e a água vai ficando límpida, pura e transparente. Da mesma forma, nosso espírito está constantemente agitado com projetos, desejos, contentamentos, descontentamentos e recordações. É impressionante nossa primeira meditação, quando vemos tudo isso em nossa cabeça.

Nos textos clássicos, o espírito é comparado a um macaco. O macaco é muito interessante de ser observado. Ele pega um objeto, olha, larga, pega um outro, larga… Está sempre em movimento, nunca pára. Pode ser lúdico observá-lo assim, mas se imaginarmos o macaco conosco durante as 24 horas do dia, seria muito cansativo. Contudo, nós fazemos a mesma coisa. Nossa mente não repousa. Aí está a importância da meditação.

É preciso prestar atenção, pois começamos, evidentemente, com a idéia de nos tornarmos uma pessoa melhor. Vamos deixar de sofrer, vamos estar em harmonia com as demais pessoas. Começamos logo por nossos desejos. Não são desejos materiais, são desejos espirituais. Além disso, temos a consciência tranqüila, pois dizemos: “Ah, que pessoa maravilhosa, que ser espiritual estou me tornando”. Mas a meditação, o zazen, não é isso. É apenas estar lá, sentado. Mesmo sendo desagradável. Só quando estamos enraizados em nós mesmos é que podemos formar uma relação apropriada conosco e com os outros. Uma relação direta, não afetada por nossos sonhos e ilusões. É como uma roda. É necessário um ponto fixo para que a roda possa girar.
Todas as vias espirituais oferecem um caminho. É preciso fazer uma escolha e segui-la com determinação. Não é necessário para isso tornar-se monge. Não é necessário seguir o ensinamento búdico a ponto de deixar a família, os bens, mas será necessário abandonar muitas coisas no caminho, para que possamos avançar mais levemente, sem transportarmos tanto “peso”.
Gosto muito da idéia de dançar. Dançar com a vida, levemente, em cada instante.
Um samurai muito bonito, com sua grande espada, seu uniforme, vai ao encontro de um monge zen e lhe diz: “Ensine-me o Darma do Buda, diga-me o que é o inferno e o que é o paraíso”. O pequeno monge olha para o samurai de alto a baixo e pergunta: “O que queres que te ensine? Olhe para você mesmo, veja o que você parece. Não é sequer um samurai com esta espada enferrujada”. – O samurai, ouvindo isso, sacou a espada pronto para cortar a cabeça do monge, que lhe diz: “Aqui se abrem as portas do inferno.” O samurai compreende e guarda a sua espada. O monge então lhe diz: “Aqui se abrem as portas do paraíso”.

Não podemos sempre dizer que as coisas estão lá fora, no exterior. É necessário voltar-se para si mesmo. A nossa prática não é uma prática egoísta. Eu realmente penso que tornando mais leve nosso sofrimento, estamos diminuindo o sofrimento de todo o mundo.

É por isso que o ensinamento de 25 séculos do Buda é sempre atual, condizente com nossa vida de hoje. Por isso tornei-me uma monja. Quando comecei a praticar a meditação, pensei: “É a coisa mais importante do mundo”. Fui então para o Japão. Procurei um templo e um mestre. Quando os encontrei, raspei a cabeça e me tornei monja. Fiquei vários anos nesse templo e recebi de meu mestre o selo da transmissão “mestre-discípulo”, conforme a tradição.
Meu mestre me pediu que voltasse a meu país, a França, e abrisse um mosteiro onde pudesse repassar o que recebi. Ali chegam pessoas leigas para viver, em retiros de alguns dias, uma semana, um mês, a vida de um monge zen: meditação e trabalho.

Depois vim para a América Latina, como fez meu mestre, e é a oportunidade que tenho de falar, de dar este ensinamento. Estou muito contente de estar aqui esta noite. Há um poema zen que aprecio muito e que diz: “Como a andorinha que voa no céu, completamente livre”. Este é o ensinamento. Muito obrigada.