O vazio e a não-dualidade

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O VAZIO E A NÃO-DUALIDADE

 

O Ser/Não-ser, Vazio/Não-dualidade

Nas religiões, na Ciência e nas Filosofias.

Compilado e organizado por: Flávio Capllonch Cardoso/Karma Tenpa Dhargye

 

NAS  RELIGIÕES

 

 HINDUISMO

 ISHA UPANISHAD

 1) – BRAHMAN – A UNIDADE : Unidade de Deus e o Mundo   [versos 4-5]

O senhor e o mundo, ainda quando parecem distintos, não diferem na realidade um do outro, eles são um só Brahma.

O ÚNICO IMÓVEL

Brahma é a única realidade estável e eterna. É Uno porque não há nada mais, dado que toda existência e não-existência se trata dele. É estável e imóvel, porque movimento implica mudança no espaço e mudança no tempo, e Ele, ao estar além do espaço e do tempo, é imutável. Possui eternamente em si tudo o que é, foi ou sempre será e, portanto Ele não aumenta nem diminui. Esta além da causalidade e da relatividade e, portanto, em Seu ser não há mudança de relações.

MAIS VELOZ QUE A MENTE

O mundo é um movimento cíclico (samsara) da existência divina no espaço e no tempo. Sua lei e, em um sentido, seu objeto é a progressão; existe pelo movimento e se dissolverá por cessação de movimento. Mas a base deste movimento não é material; é a energia da consciência ativa a qual, por seu movimento e multiplicação em diferentes princípios [diferentes em aparência, iguais em essência], cria oposições de unidade e multiplicidade, divisões de tempo e espaço, relações e agrupamentos de circunstância e causalidade.

Todas essas coisas são reais na consciência, porém, somente simbólicas do ser, como se o imaginado por uma mente criadora fosse verdadeira representação de sí mesma, sem constituir-se em absolutamente real em comparação com ela mesma, ou real com um gênero diferente de realidade.

Porém a consciência mental não é o poder que cria o universo. Trata-se de algo infinitamente mais potente, veloz e livre de restrições que a mente. É a pura e onipotente auto-sapiência do Absoluto isenta de ataduras de qualquer lei da relatividade.

As leis da relatividade, sustentadas pelos deuses, são suas criações temporárias. Sua aparente eternidade é somente duração, incomensurável para nós, do mundo que eles governam. São leis que regulam o movimento e a mudança, não leis que liguem o senhor ao movimento. Os deuses, portanto, são descritos como correndo em seu deslocamento. Mas o senhor está livre e não lhe afeta seu próprio movimento.

A criação não é fazer, porém chegar-a-ser em termos e formas de existência consciente.

No vir-a-ser, cada indivíduo é Brahma diversamente representado e entrando em diversas relações com Aquele no rol da consciência divina; no Ser, cada indivíduo é todo Brahma.

Brahma, como o Absoluto ou o Universal, tem o poder de colocar-se atrás de Sí Mesmo narelatividade. (multiplicidade) (…)

O indivíduo pode até se considerar como eternamente diferente do Uno, ou se quiser, eternamente uno com Ele, porém ainda diferente, ou pode, em sua consciência, voltar inteiramente à pura Identidade. Porém nunca pode considerar-se como independente de certo gênero de Unidade, pois tal parecer corresponderia a uma verdade inconcebível no universo ou além dele. (…)

Essa coexistência, difícil de conceber para o intelecto lógico, pode experimentar-se mediante a identificação da consciência com Brahma.

Inclusive ao afirmar a Unidade, devemos recordar que Brahma está além de nossas diferenciações mentais e se trata de um fato que não condiz com o pensamento que discrimina, senão com o Ser que é Absoluto, Infinito, e que escapa a nossa discriminação.

Nossa consciência é representativa e simbólica; não pode conceber a coisa-em-si-mesma, o Absoluto, a não ser por negação, em uma espécie de Vazio, esvaziando de tudo quanto pareça conter o Universo, e tudo o que está aqui no espaço/tempo e além do espaço/tempo.

A idéia de uma meta final no movimento da Natureza mesma é ilusória. Pois Brahma é Absoluto e Infinito. Nada, dentro das aparências do universo, pode ser inteiramente Brahma enquanto consciência relativa; tudo é somente uma representação simbólica do Incognoscível.

 Todas as coisas já se realizaram em Brahma.

(…) A visão humana ou egoísta é a de um mundo de inumeráveis criaturas separadas, cada uma auto-existente e diferente das demais, cada uma procurando lograr o máximo proveito possível dos demais e do mundo, porém a visão divina, o modo como “Deus vê” o mundo, é Ele mesmo, como Ser único, que vive inumeráveis existências que são Ele mesmo.(…) O ser individual tem de mudar a visão humana e egoísta pela divina, suprema e universal, e viver nessa realização.

É necessário, portanto, ter o conhecimento da unidade, na equação, EU SOU ELE (So ham), e nesse conhecimento estender a existência consciente de si de modo tal que abarque toda a multiplicidade.

Este é o ideal duplo ou sintético do Isha Upanishad; abarcar simultaneamente Vidya e Avidya, o Um e os Muitos; existir no mundo, porém mudar os termos da morte pelos termos da imortalidade; ter a liberdade e a paz do Não-Nascimento simultaneamente com a atividade do Nascimento. (versos 9-14)

“Isha Upanishad“ – Ed. Kier – Sri Aurobindo

 

 

TAOISMO

  TAO TE KING

 O Tao que pode ser pronunciado

não é o Tao eterno.

O nome que pode ser proferido

não é o Nome eterno.

Ao princípio do Céu e da Terra  chamo NÃO-SER.

Dirigir-se para o Não-Ser  leva

à contemplação da maravilhosa Essência;

dirigir-se para o Ser leva

à contemplação das limitações espaciais.

Pela origem,  AMBOS SÃO UMA COISA SÓ,

Diferindo apenas  no nome.

Em sua Unidade, esse Um é mistério.

O mistério dos mistérios

é o portal por onde entram as maravilhas.

Pode se designar com o nome de “não-ser” ao mundo da essência e com o nome de “ser”, ao mundo dos fenômenos. O “não-ser” é então, o princípio do Céu e da Terra; o “Ser”, a origem de todos os Entes. Por isso, concentrando-nos sobre o “não-ser”, contemplamos os segredos da essência e, concentrando-nos sobre o “ser”, contemplamos a aparência externa, espacial, das coisas. Não se deve, no entanto, pensar que se trata de um mundo duplo, de um aquém e de um além. Ao contrário, a diferença reside apenas no nome. O nome de um é “ser”; o outro é “não-ser”. Mas, apesar da diferença dos nomes, trata-se de um único e mesmo fato: o obscuro segredo de cuja profundeza brotam todos os milagres1.

Quando o intelecto se defronta com o Vazio ele chega ao seu limite. Daí em diante a linguagem lógica, os conceitos, julgamentos de valor, não poderão mais ser usados. Para exprimir o inexprimível teremos de recorrer então às parábolas, contradições, e aos paradoxos. O Vazio, porém, não é somente o limite do pensamento humano, é também a porta para o transcendental.

[1] – TAO – TE  KING – Lao-Tzu – Trad. Richard Wilhelm [pag. 135]

 

BUDISMO

MAHA-PRAJNA-PARAMITA  

A MAIS ALTA E PERFEITA SABEDORIA

Assim, eu ouvi.

Certa vez, o Abençoado, juntamente com vários dos maiores Bodhysattvas e um grande número de bhikhus, se encontravam em Rajagriha, no monte Gridhrakuta. O Abençoado estava absorvido no samadhi e o nobre Avalokitesvara meditava sobre o profundo Prajna-Paramita.

O venerável Sariputra, influenciado pelo Abençoado, absorvido no samadhi, perguntou ao nobre Bodhysattva Avalokitesvara: – Se um homem ou uma mulher quisesse estudar o Prajna-Paramita, como podia fazê-lo?

O nobre Avalokitesvara respondeu: – Deve o homem ou a mulher primeiramente se livrar de todas as suas idéias egocêntricas. Deverá refletir: “Personalidade? O que é personalidade? Será uma entidade permanente ou será feita de substâncias impermanentes que desaparecem?”.

A personalidade é composta dos cinco agregados do apego:

A forma, a sensação, a percepção, as formações mentais e a consciência, que são, por natureza, desprovidas de natureza própria.

A forma é vazia de qualquer substância própria e o vazio não é diferente da forma; na realidade, a forma é o vazio.

A sensação é vazia de substância própria, o vazio não é diferente da sensação, nem a sensação é diferente do vazio; na realidade, a sensação é o vazio

A percepção também é vazia de substância própria, o vazio não é diferente da percepção, nem a percepção é diferente do vazio; na verdade, a percepção é o vazio.

As formações mentaistambém são vazias de substância própria, o vazio não é diferente das formações mentais, nem formações mentais são diferente do vazio; na verdade, as formações mentais são vazias.

A consciênciatambém é vazia de substância própria, o vazio não é diferente da consciência, nem a consciência é diferente do vazio; portanto na verdade, a consciência é vazia.

Assim sendo, Sariputra, todas as coisas que têm  a natureza do vazio não têm nem princípio nem fim. Eles não são culpados, nem sem culpa; eles não são perfeitos nem imperfeitos. No vazio não há forma, nem sensação, nem percepção, nem consciência.

Na realidade não há olhos, nem ouvidos, nem nariz, nem língua, nem sensibilidade do contato, nem mente. Não há visão, audição, olfato, gustação, tato, nem processos mentais, nem objetos desses processos mentais, nem conhecimento, (consciência) nem ignorância. Não há destruição dos objetos ou cessação do conhecimento, nem cessação da ignorância. [não há substância própria]

Na Realidade [Absoluto] não existem as Quatro Nobres Verdades: não há Dor, nem causa da Dor, nem cessação da Dor, nem Nobre Caminho que leva à cessação da Dor. Não há  decadência ou morte, nem destruição da noção de decadência e morte. Não há o conhecimento do Nirvana, não há obtenção do Nirvana, nem não-obtenção do Nirvana.

Porque não há obtenção do Nirvana? Porque o Nirvana é o domínio do “não-pensar”. Se o ego ou a personalidade fosse uma entidade permanente, não se poderia alcançar o Nirvana. Somente porque a personalidade é constituída de elementos impermanentes que se desintegram, essa personalidade pode alcançar o Nirvana. Enquanto o homem estiver à procura da mais alta e perfeita Sabedoria, ele estará ainda habitando o domínio da consciência objetiva. No mais profundo Samadhi, tendo transcendido a consciência objetiva, ele também ultrapassa a discriminação e o conhecimento; transcendendo as garras do medo, “ele” já estará se deliciando no Nirvana.

A perfeita compreensão e a paciente aceitação disso é a mais alta e perfeita Sabedoria – Prajna-Paramita. Todos os Budhas do passado, presente e futuro, tendo alcançado o mais alto Samadhi, se encontram na realização da Suprema Sabedoria.

Assim sendo, Sariputra, todos deveriam procurar a auto-realização da Suprema Sabedoria – Prajna-Paramita, da Verdade Transcendental, que realiza o fim de todos os sofrimentos, a Verdade que é eternamente verdadeira.

Ó Prajna-Paramita! Verdade Transcendental que se estende ao agitado oceano da vida e morte, leva contigo em segurança todos os teus seguidores para a outra margem, para a Iluminação.

Ouçam o mantra, o Grande Misterioso Mantra:  “Vá, vá em segurança à outra margem, ó Prajna-Paramita! Que assim seja!”

 Tadyata Om Gate, Gate, Parasamgate, Bodhi, SOha

 Segundo Nagarjuna, o vazio (sânsc. shunya) é a ausência de uma essência [própria], de uma existência inerente (sânsc. svabhava). A ausência de uma essência não significa que os fenômenos não existam, e sim que eles são destituídos de “existência própria”, de uma “natureza própria”, e que eles “existem” apenas em dependência de causas, partes e condições (originação dependente ou pratitya samutpada). O nirvana (incondicionado) e o samsara (condicionado) seriam igualmente vazios.

O surgimento interdependente dos fenômenos é a vacuidade e vice-versa. É como olhar os dois lados de uma mesma moeda. O vazio de existência por si mesmo [existência inerente] significa que o mundo que alucinamos, cheio de objetos e pessoas independentes e permanentes, não existe. Isso não quer dizer, porém, que nada existe e que podemos ficar histéricos ou explodir de energia nervosa. Essa é, normalmente, a reação exagerada que temos quando nossa mente toca pela primeira vez o espaço absoluto, mas ainda não compreende ou não aceita essa realidade. O que existe são coisas, pessoas e objetos surgidos interdependentemente, transformando-se e funcionando momento após momento segundo a lei do karma. A lei do karma não é uma coisa mística, mas uma análise precisa da transmutação da energia e dos fenômenos, que parece ter alguma semelhança com as leis de conservação da energia da física moderna.

(T.Y.S. Lama Gangchen, Ngelso)

Pelo enfoque da Escola da Visão do Caminho do Meio, a Escola Madhyamaka, não há qualquer apego a qualquer conceito sobre a natureza absoluta, essencial. Em nenhuma experiência dos agregados há algo verdadeiramente real. Se examinarmos a natureza básica da realidade, não encontraremos nada que constitua a sua essência, mas isto não implica num mero nada.

A falta de uma realidade palpável, não obstante, permite a expressão contínua de todos os tipos de experiências. Ao investigarmos a Natureza Última, descobrimos que não há qualquer característica fundamental, realidade essencial, palpável, ou qualquer realidade verdadeira, absoluta, o que significa que todas as coisas são “vazias”.

No entanto, a Vacuidade não é distinguível da aparência dos fenômenos que experimentamos. Os fenômenos não são separáveis da Natureza Fundamental e, assim, nossa experiência básica do mundo é, na verdade, tão somente a “Vacuidade Fundamental”, ou a falta de Realidade Última de todas as coisas [Formas da vacuidade].

Desta forma, a “Verdade Relativa” (sobre o modo como as aparências e experiências funcionam) e a “Verdade Absoluta” (sobre a natureza fundamentalmente vazia e sem realidade constatável nas coisas) são inseparáveis, não são duas coisas diferentes, mas um todo integrado.  [Os fenômenos são o vazio, e o vazio são os fenômenos. O vazio e as formas se interpenetram]

Este é o ponto de vista básico da Escola Madhyamaka conforme explicado pelo Sábio Nagarjuna e é a descrição do verdadeiro ponto de vista de um Iluminado sobre a Realidade.

Há várias maneiras de se alcançar este ponto de vista: atingindo-o por estágios, entendendo-o todo de uma só vez, reconhecendo-o por meio de metáforas, etc. Meramente descrevi aqui, em termos gerais, qual é a natureza deste ponto de vista.  […]

Segundo a perspectiva da Madhyamaka, a verdade do sofrimento, a verdade da fonte do sofrimento, bem como dos atos de comer, de dormir e de praticar quaisquer atividades corriqueiras mundanas, são todos igualmente desprovidos de qualquer realidade intrínseca. Ocorrem através de surgimentos condicionados sem possuírem qualquer Realidade Fundamental, seja lá qual for. Somente em assim sendo o caso, pode o mundo tal qual o experimentamos surgir, já que se existisse alguma Realidade Fundamental relativa a este mundo, ou, se a Vacuidade fosse algo completamente diferente da nossa experiência usual, não haveria nenhuma maneira pela qual qualquer experiência pudesse ter ocorrido inicialmente. A Vacuidade Fundamental não é isolada de nossa experiência corriqueira, nem é em hipótese alguma divorciada das Quatro Nobres Verdades e do Caminho da Libertação do Sofrimento. Agora, todas estas formas de surgimento condicionado, conforme demonstramos por meio das Quatro Perícias da Madhyamaka – O Pequeno Diamante, etc. – não possuem nenhuma Realidade Absoluta. Não obstante, surgem como se verdadeiramente lá estivessem, exatamente como o elefante, em nosso sonho, parece realmente lá estar. Mas, se examinarmos as condições do mundo, se examinarmos de que forma aparecem, se examinarmos como produzem fruição, e procurarmos pela Qualidade Essencial, constataremos que, de qualquer um destes pontos de vista, as coisas não possuem nenhuma realidade intrínseca – tudo ocorre devido a determinadas causas e condições. Este ponto de vista é desenvolvido em maiores detalhes por Nagarjuna no Prajna Nama Mula Madhyamaka Karika. Da mesma forma como uma pessoa trancada em uma prisão não tem nenhum jeito de escapar exceto se abrir a porta, também nós, que caímos sob os domínios do sofrimento, não temos como nos livrar exceto através da compreensão, através do reconhecimento da Natureza Fundamental da Realidade: a Vacuidade. O reconhecimento da Natureza Fundamental da Realidade é por vezes chamado de “Os Três Fatores Libertadores”, quais sejam:

(1)Que nenhuma fonte real pode jamais ser descoberta;

 (2) Que as condições resultantes não tem nenhuma natureza verdadeira intrínseca; e,

 (3)O reconhecimento da qualidade essencial vazia de todas as aparências.

Pela apreensão da verdade destes três fatores, podemos alcançar a compreensão e podemos nos libertar do samsara. Esta visão suprema da Vacuidade une, invisivelmente, a Verdade Relativa e a Verdade Absoluta. Quer dizer, a Vacuidade apontada pela Escola Madhyamaka não é uma nulidade em branco, não é uma mera ausência de qualidades, muito embora, em uma análise final, ela seja indescritível. A Vacuidade é uma potencialidade total na medida em que dá vazão a todos os surgimentos e a todas as aparências que ocorrem aos seres sensoriais. É a visão integrada dos níveis convencional e último que precisa ser obtida a fim de se alcançar a Realização.

Este campo supremo de Visão Interior, o Dharmadhatu, ou Espaço Básico de todos os Dharmas, é freqüentemente apontado como sendo a Mãe de Todos os Budhas e Bodhisatvas, pois exatamente como uma mãe dá nascimento às crianças, igualmente a Visão Interior da Natureza Fundamental produz todos os seres iluminados do passado, do presente e do futuro. A Natureza Fundamental da Vacuidade e Aparência Integrais é similar, muito parecida, como o interior de um espaço vazio e, embora tenhamos tentado descrevê-la nos ensinamentos precedentes, é basicamente indescritível no que toca a impossibilidade de predicados (ou de construções conceituais) serem a ela aplicados: transcende a todas as afirmações lógicas. Se permanecermos na consciência meditativa com respeito a esta Sabedoria Não-Discriminativa, além de qualquer possível concepção e, saindo de nossa meditação, reconhecermos todos os dharmas como sendo ilusões, sonhos, ou reflexões, os quais aparecem, mas não possuem nenhuma realidade fundamental, desenvolveremos confiança na Visão Reta, a Natureza Integral das Duas Verdades. Tal é a grande ferramenta do conhecimento transcendente, a Perfeição da Sabedoria, o Prajna-Paramita.

“A Porta Aberta para a Vacuidade” – Kenchen Thrangu Rinpoche – Ed. Bodigaya

M. Eckhart cita Sto. Agostinho: “A alma tem uma porta celestial para penetrar na natureza divina, onde algumas coisas são reduzidas ao vazio”. Evidentemente temos de esperar que a porta celestial se abra ante as nossas repetidas batidas ou incessantes pancadas, quando se é “ignorante no saber”, “insensível no amor”, “escuro na luz”.

Tudo vem dessa experiência fundamental, e somente quando ela é compreendida é que penetramos no reino do vazio onde a divindade mantém nossas mentes discriminatórias  inteiramente “reduzidas ao vazio”. 2

Para entrar em contato com essa “fonte” e saber o que ela é, (para ver minha própria face antes mesmo que eu tenha nascido), tenho de mergulhar no “Grande Vazio do Tao Absoluto”.3

[2,3] – Mística Cristã e Budista – Suzuki

O que pensam os cristãos de “o divino núcleo de absoluta quietude” ou de “o simples núcleo que é o deserto tranqüilo em que não se insinuam quaisquer distinções”?  M. Eckart está de perfeito acordo com a doutrina budista do Shunyata, [VAZIO], quando sustenta a idéia da divindade como “puro nada”, [ein bloss niht]. 4

Realmente, o que foi criado não tem realidade; “Todas as criaturas são puro vazio”, todas as coisas foram feitas por ele e, sem ele, nada do que foi feito, se fez. [João, 1,3]

O imperador Wu era um bom estudante da filosofia budista e desejava que o primeiro princípio fosse elucidado por Bodhidarma o grande mestre vindo da Índia. O primeiro princípio consiste na identidade do Ser e do Não-ser, além da qual os filósofos não podem ir. O imperador imaginou se esse bloqueio não poderia, de algum modo, ser rompido por Bodhidarma. Daí sua pergunta. Bodhidarma sabia que qualquer resposta que desse seria decepcionante. Então respondeu as questões; “Que é a Realidade? Que é a Divindade?”  “A vasta Vacuidade, sem nada Santo dentro dela”.

[4,5] – Mística Cristã e Budista- Suzuki

Uma passagem do “Prajnaparamita-Hridaya-Sutra” bastante impregnada da idéia de “Shunyata”. “Assim ó Shariputra, todas as coisas têm o caráter do vazio”.

À pergunta “como pode o indivíduo estar sempre com Budha?”. Obteve a seguinte resposta de um mestre Zen: “Não tenhais perturbações na mente. Sede perfeitamente sereno com relação ao mundo objetivo. Permanecer assim todo o tempo, num vazio absoluto e calmo, é o caminho para a união com Budha7”.

[6,7] – Introdução ao Zen Budismo – Suzuki

PRODUZIR O VAZIO

No Taoísmo o trabalho integral para consumar a essência e a vida se encontra incluído na expressão “PRODUZIR O VAZIO”. Encontrar o elixir espiritual, para passar da morte à vida. Em que consiste este elixir espiritual? Significa: Permanecer sempre sem finalidade. O segredo profundo do “banho”, que é o mais profundo do nosso ensinamento, é limitado desse modo ao trabalho de fazer VAZIO O CORAÇÃO. Com isso se tranqüiliza o coração. O que aqui revelei com palavras é fruto de muito trabalho. Vamos esclarecer a tríplice concentração budista sobre o VAZIO, ilusão, e centro. Das três contemplações vem como primeira o VAZIO. Se observarmos todas as coisas como vazias, logo segue a ilusão. Embora se saiba que são vazias, não as destruímos mas continuamos nossos afazeres no meio do vazio. Porém se as coisas não são destruídas por nós, tampouco  damos valor a elas: isto é a contemplação do centro. Enquanto se pratica a contemplação do vazio, sabemos que não é possível destruir as inúmeras coisas, e, no entanto não as tomamos em consideração. Desta maneira coincidem as três contemplações. Porém finalmente a força repousa na contemplação do VAZIO. Portanto quando praticamos a contemplação do VAZIO, o vazio esta seguramente vazio, porém também a ilusão é vazia e o centro é vazio. É necessária uma grande força para praticar a contemplação da ilusão, porém também o vazio é ilusão e o centro é também ilusão. No caminho do centro criamos imagens do vazio, porém não a denominamos vazias, mas de centrais. Praticamos também a contemplação da ilusão, porém não a chamamos de central. E quanto ao que concerne ao centro, não há necessidade de falar mais8.

 [8]- O SEGREDO DA FLOR DE OURO –   C. G. Jung e R. Wilhelm

 

A VACUIDADE TRANSCENDE AS DUALIDADES

Nirvana” é outra denominação de Vacuidade. A expressão vacuidade, pode ser mal interpretada, por diversos motivos.

1 :  A lebre e o coelho não têm chifres, a tartaruga não tem pelos. Isso é uma forma de vacuidade. O “Shunyata” budista não significa ausência

2 :   Um fogo estava aceso até agora e já não está. Eis uma nova forma de vacuidade. O “Shunyata” budista não significa extinção.

3 :   A parede cerca o aposento: deste lado há uma mesa e do outro não há coisa alguma, o espaço está desocupado. O “Shunyata” budista não significa lacuna.

Ausência, extinção, e não ocupação, não constituem a concepção budista de vacuidade. A vacuidade não está no plano da relatividade. É a Vacuidade Absoluta, que transcende todas as formas de relação mútua, de sujeito e objeto, de nascimento e morte, de Deus e do mundo, de alguma coisa e nada, de sim e não, de afirmação e negação. Na Vacuidade não existe tempo, nem espaço, nem tornar-se, nem não ser. Ela é o que faz todas as coisas possíveis; é o zero pleno de infinitas possibilidades, é o vácuo de conteúdo inesgotável.9

[9] – MÍSTICA CRISTÃ E BUDISTA – Suzuki

 

 Céu e terra tem a mesma raiz.

Tudo é Um.

A forma visível das coisas não é diferente do vazio,

que é sua natureza essencial.

Um “satori” fraco é aquele em que o mundo do vazio

é ainda visto como diferente do mundo da forma.

Sua mútua interpenetração ainda não foi percebida.

A mente é a verdadeira natureza das coisas.

Buda é Mente.

A Mente não está no interior, nem no exterior,

nem entre os dois.

Não é o Ser ou o Não-Ser, o nada ou o não-nada.

Portanto é chamada a Mente sem morada.

A Mente transcende todas as formas,

mas é inseparável delas.

Qual é a substância desse Buda ou Natureza-Dharma?

No Budismo se chama “Shunya” (Vazio).

Ora, o “Shunya” não é apenas o esvaziamento.

É aquilo que esta vivendo, dinâmico, carente de volume, não fixo,      para além da individualidade

ou personalidade.     

A Matriz de todo o fenômeno.

 Temos aqui o princípio fundamental, a Doutrina, ou a Filosofia Budista.  Com a experiência da iluminação, que é a fonte de toda doutrina budista, percebemos o mundo de “shunyata”. Este mundo não fixo, carente de conteúdo, para além da realidade ou da personalidade [existe fora do domínio da imaginação].

De acordo com isso, a verdadeira substância das coisas, isto é, sua Natureza-Budha ou “Dharma”, é inconcebível e inescrutável. Uma vez que tudo que é imaginável compartilha da forma e da cor, seja o que for que se imagine ser a Natureza-Buda deverá necessariamente ser irreal.

A mente do ego, e a Mente Cósmica são dois lados da mesma Realidade. Quando se compreende a verdadeira natureza do Universo sabe-se que não existe realidade nem objetiva nem subjetiva. Nesse mesmo instante estruturas “kármicas que carregariam você ao mais profundo dos infernos são apagadas. Esta verdadeira natureza é a raiz e substância de todo ser sensível. O homem custa a se convencer que sua própria mente é a Grandiosa Integridade compreendida por Budha, por isso se apega as formas superficiais e olha para a verdade fora de sua mente, lutando para ser um Budha, através de práticas ascéticas. O que busca e não encontra ainda, está amarrado por suas ilusões dos dois mundos: um da perfeição que esta além, de paz sem luta, de alegria sem fim; outro o mundo do cotidiano do sofrimento e do mal, sem sentido, com o qual vale muito pouco a pena se relacionar.

Secretamente ele deseja o primeiro, mesmo porque abertamente despreza o último. Entretanto,  hesita em mergulhar no fecundo Vazio, no abismo de sua própria Natureza-Original, porque, na sua  mais profunda inconsciência, receia abandonar seu mundo familiar de dualismo pelo mundo desconhecido da Unidade, de cuja realidade ainda duvida.

Neste mundo há incontáveis objetos e cada um é, respectivamente, o mundo inteiro. Quando alguém chega a compreender esse fato, percebe que cada objeto, cada ser vivo é o todo, mesmo  que ele próprio não  compreenda.

Se compreendermos o corpo de Budha,

Não existe mais nada.

Fonte original,

Nossa própria natureza

É o puro e verdadeiro Budha.

    Esse verso do Sutra Shodoka, “O canto do Satori imediato”, de Yoka Daïshi, significa que, se compreendemos a realidade, se obtivermos a realização completa, nosso corpo/Mente já é Budha. Realizar Budha significa receber e apreender a vida Cósmica. Temos de compreender que nosso corpo e o Cosmos não estão separados; eles formam uma unidade. A essência do sutra do Hannya Shingyo (Prajna Paramita) é:

Os fenômenos não são diferentes do vazio,

o vazio não é diferente dos fenômenos 10.

 (A essência e os fenômenos se interpenetram)

[10] – SHODOKA – “O CANTO DO IMEDIATO SATORI” de Yoka Daïshi – Tradução e comentários de Taïsen Deshimaru.

 

ZERO = INFINITO

O “Prajna não é alcançado quando alguém atinge o mais profundo centro interno do “próprio” ser. Não consiste na “permanência” em um ponto místico secreto do “próprio” ser, mas permanência em parte alguma em particular, no ser ou fora dele. Não consiste na auto-realização como afirmação do “próprio” ser limitado, ou no gozo da “própria” essência espiritual interna, mas ao contrário é isenta da necessidade de auto-afirmação e auto-realização de qualquer espécie. Numa palavra, Prajna não é auto-realização, mas realização pura e simples além do sujeito e do objeto. Evidentemente, numa realização desse tipo a “Vacuidade” já não mais se opõe à “Plenitude”, porque Vacuidade e Plenitude são UM. O Zero é igual ao Infinito. Onde existe “alguma coisa”, um objeto definido ou limitado, não é possível existir a “Plenitude”. Mais uma vez, a “Vacuidade” de todas as formas limitadas é a plenitude do “UM”: entretanto, o UM jamais deve ser encarado como uma forma isolada. Para evitar essa tentação, os mestres Zen sempre se referem a Vacuidade11.

[11]  – Trechos do Livro THE ZEN DOCTRINE OF NO MIND –   Daisetz Teitaro Suzuki

 

NA CIÊNCIA MODERNA

 

 BUDISMO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA,

 O Novo veículo de Sabedoria

 Todas os fenômenos dos mundos externo e interno, com exceção do espaço natural e da vacuidade, existem na impermanência. Das maiores cadeias de montanhas, estrelas e galáxias à corrente interna de energia de vida dos seres humanos com suas emoções e pensamentos sempre em mutação, tudo está continuamente se desintegrando momento a momento e se transformando em outra manifestação de vida e de energia elemental.

A dança cósmica da criação, transformação e destruição, nos níveis grosseiro, sutil e muito sutil, segue o ritmo cósmico fundamental e a melodia do carma, da vacuidade e do surgimento interdependente dos fenômenos.

Em minha opinião, os yogues tântricos antigos e modernos, os mahasiddhas, santos, filósofos tibetanos (gueshes) e outros Seres Sagrados que pesquisam o mundo interior e os físicos do século XX, que investigam o mundo externo, independentemente uns dos outros, descobriram a verdade da vacuidade e da interdependência dos fenômenos. É claro, que da perspectiva budista, tudo isso é criado pela mente. Acreditamos que a investigação científica interna da mente sutil e da energia, realizada por muitas gerações de yogues, santos e grandes meditadores, é muito mais profunda e poderosa que a investigação científica do nível grosseiro, realizada por nossa geração atual. Entretanto, ambos parecem estar tocando a mesma realidade a partir de ângulos diferentes e em diferentes níveis, Os cientistas estão tocando a vacuidade e o surgimento interdependente dos fenômenos do ponto de vista objetivo, no nível grosseiro, baseados nos objetos manifestos e no que pode ser registrado pelas máquinas e conceitualmente formulado pela matemática. Os mahasiddhas e grandes meditadores tocam a vacuidade diretamente, subjetivamente e sem conceitos, nos níveis sutil e muito sutil, baseados em sua experiência pessoal da dissolução de seus elementos, ventos e consciência, resultado de terem aprendido a cuidar de seus canais, ventos e gotas. Ambos estão tocando a vacuidade e o surgimento interdependente dos fenômenos utilizando as estruturas de suas próprias metodologias científicas.

Os yogues budistas afirmam o seguinte:

–  Os fenômenos físicos e mentais são vazios de existência em si mesmos, pois todos os fenômenos são projeções de nossa mente nos níveis grosseiro, sutil e muito sutil, e o criador supremo do universo fenomênico é nossa mente muito sutil de clara luz

– Todos os fenômenos se manifestam interdependentemente e funcionam devido ao karma (a lei de causa e efeito). Podemos examinar níveis diferentes de surgimento interdependente dos fenômenos, desde o mais grosseiro (as coisas dependem de suas partes, causas e condições) até a interdependência no nível muito sutil, quando percebemos que nosso “rotular” mental dos fenômenos é o verdadeiro ato de criação que os traz à realidade.

– O macrocosmo é um reflexo do microcosmo e vice-versa.

Conforme posso entender, as idéias defendidas pelos cientistas são as seguintes:

Nenhum fenômeno do mundo material existe de forma concreta substancial ou independente como normalmente aparentam. Verificando o interior dos átomos, não encontramos nada além de espaço e energia em movimento.

Todos os fenômenos materiais estão se desintegrando e se transformando momento a momento, no nível sutil, de acordo com uma precisa lei de conservação da energia, segundo a qual, a energia nunca pode ser perdida no universo e, assim, se transforma continuamente em novas formas.

Todos os fenômenos do macrocosmo e do microcosmo são uma grande rede interdependente, O macrocosmo reflete-se no microcosmo tal como os campos eletromagnéticos de nossos corpos.

Alguns pesquisadores da física quântica afirmam que o universo material não pode ser entendido sem uma referência à consciência humana e que, de alguma forma, a mente está ajudando a criar os fenômenos materiais.

Em minha opinião, a visão dos yogues budistas está muito próxima da visão dos físicos de hoje. Talvez suas explicações sejam exatamente as mesmas, ou talvez, muito pouco diferentes. Mesmo não podendo ter certeza sobre isso, não há como negar que os físicos de hoje podem virtualmente concordar com a visão budista da realidade. Por isso, muitos cientistas estão começando a se interessar por aspectos específicos do budismo tibetano, e também por outras tradições espirituais antigas, como o hinduísmo e o taoísmo.

Os cientistas estão iniciando um diálogo com os yogues budistas porque o budismo pesquisou por completo a relação mente-matéria, os níveis sutil e muito sutil de consciência e os cinco elementos. Se os cientistas tivessem acesso a esse nível sutil subjetivo e objetivo da realidade, não precisariam comunicar-se com os Lamas. Isso não significa que os cientistas precisam tornar-se budistas. Os Lamas modernos como eu desejam apenas oferecer a essência da prática e da filosofia Prajnaparamita, Pramana, Abhidharmakosha, do Tantra e outros métodos aos cientistas, para que eles os utilizem como lhes parecer mais adequado.

Sua Santidade o Dalai Lama está pedindo à geração atual de Lamas que mostrem a qualidade da investigação budista ao mundo. Hoje em dia, quase tudo já foi examinado e pesquisado. As únicas coisas interessantes que ainda não foram pesquisadas por completo são as mensagens das antigas culturas de sabedoria, como o budismo tibetano. Precisamos fazer uma ponte entre a maravilhosa pesquisa dos cientistas modernos e a maravilhosa investigação dos lamas, yogues e mahasiddhas. Eu gostaria de organizar uma série de conferências sobre isso e publicar os resultados para poder apresentar com clareza as boas novas dos cientistas e yogues ao mundo.

Não é necessário que os cientistas entendam tudo sobre o budismo ou que os budistas entendam tudo sobre a ciência. Precisamos apenas explorar conjuntamente as áreas de interesse comum e fazer uma ponte, iniciar o diálogo e a comunicação. Essa troca é muito importante pois, no próximo século, todos nós estaremos ligados à ciência ou à tecnologia, mas ainda estaremos procurando respostas profundas para o “sentido da vida e da realidade”.

Se você está interessado em pesquisar o solo comum entre o budismo e a ciência, por favor, considere as seguintes citações de uma seleção dos mais influentes cientistas do mundo interno e externo dos últimos dois mil e quinhentos anos como ponto de partida para sua reflexão. Por favor, não se sinta desencorajado ou impaciente ao ler suas palavras. É natural que os cientistas, em seu trabalho de investigação da realidade, usem seus termos científicos próprios para explicar suas descobertas. Mesmo não conhecendo o significado de algumas destas palavras, é possível ter algum sentimento sobre as verdades que eles estão tentando revelar.

Precisamos sentir e entender que essas duas correntes de visão e resultados experimentais possuem ambas a capacidade de desvelar algo da natureza fundamental do universo. Embora os cientistas do mundo interno e externo se expressem de formas diferentes, sinto que existe certamente uma relação entre suas visões de mundo e, se fosse possível sintetizá-las, isso seria de grande benefício para a sociedade, tanto em termos do desenvolvimento da ciência e da tecnologia, quanto para o desenvolvimento da paz interior e da paz no mundo.

 

A VACUIDADE

 O bodisatva Avalokitesvara disse no Sutra da Essência da Perfeição da Sabedoria, há dois mil e quinhentos anos:

 “Forma é Vacuidade, Vacuidade é Forma

Vacuidade não é outra coisa que forma. Forma também não é outra coisa que vacuidade”.

“Assim, os sentimentos, a discriminação e os fatores composicionais são vazios. Portanto… na vacuidade não há corpo existente por si mesmo, sentimento existente por si mesmo, consciência existente por si mesma. Não há forma existente por si mesma, som existente por si mesmo, cheiro existente por si mesmo, gosto existente por si mesmo, objetos táteis existentes por si mesmos, fenômenos mentais existentes por si mesmos”.

Tchandrakirti, um famoso mahasiddha indiano do século IV, filósofo e cientista interno, disse em seu comentário das quatrocentas estrofes de Aryadeva:

“Que as coisas existam por si mesmas significa que as coisas não são dependentes de outros fatores para sua existência. Mas porque as coisas realmente dependem de outros fatores, não pode haver existência por si mesma”.

 Robert Oppenheimer, o físico que desenvolveu a bomba de hidrogênio para os americanos durante a Segunda Guerra Mundial, afirmou:

“Se perguntarmos, por exemplo, se a posição do elétron permanece a mesma, devemos responder que não; se perguntarmos se a posição do elétron muda com o tempo, devemos responder que não; se perguntarmos se ele está em movimento, devemos responder que não.

Buda deu as mesmas respostas quando interrogado sobre as condições do ‘eu’ do homem após a morte. Mas essas não são respostas familiares à tradição científica do século XVII ou XVIII”.

 Thomas Stapp disse em seu relatório para a comissão de energia atômica dos Estados Unidos:

“Com certeza não existe um mundo físico substancial”

 Heisenberg comentou a descoberta da mecânica quântica com as seguintes palavras:

“Foi como se nos tirassem o chão. Não havia mais nenhuma fundação firme sobre a qual se pudesse construir algo”.

 Niels Bohr, o pai da mecânica quântica ganhador do Prêmio Nobel, afirmou:

“A mecânica quântica impõe a necessidade de uma renúncia definitiva às idéias clássicas de causalidade, assim como uma revisão radical de nossa atitude em relação ao problema da realidade física”.

 

A INTERDEPENDÊNCIA

 Na ciência interna budista, temos a imagem de uma rede feita de jóias cobrindo o telhado do palácio de Indra, na qual cada jóia reflete a rede e o palácio inteiros. Lama Tsong Khapa, um famoso budista tibetano, cientista interno e filósofo do século XIV, fundador da escola Guelupa, afirmou:

“A Rainha das Razões, a Interdependência dos Fenômenos, mostra que “todas as coisas carecem de existência por si mesmas, pois sãofenômenos dependentemente relacionados”.

 E em seu texto Os Três Principais Aspectos do Caminho, ele diz:

“Quem enxergar a relação causa-efeito completamente não ilusória de todos os fenômenos do samsara e do Nirvana e destruir todas as percepções dualistas enganosas entrará no caminho que satisfaz os conquistadores”.

 Pantchen Tchoekyi Gyaltsen, um famoso budista tibetano do século XVI, cientista interno e detentor da linhagem de Lama Tsong Khapa, afirmou em seu texto Lama Tchoepa:

 “Não há contradição, mas sim harmonia, entre a ausência de um único átomo existente por si mesmo no samsara e no Nirvana e a relação dependente não ilusória entre causa e efeito.”

 Niels Bohr, o físico dinamarquês do século XIX ganhador do Prêmio Nobel, afirmou:

“As partículas materiais isoladas são abstrações, sendo suas propriedades definíveis e observáveis apenas por meio da interação com outros sistemas”.

 Thomas Stapp, um famoso físico americano do século XX, afirmou em um relatório patrocinado pela Comissão Norte-­Americana de Energia Atômica:

“O mundo físico não é uma estrutura construída a partir de entidades não analisáveis existentes independentes umas das outras, mas sim uma rede ele relações entre elementos cujos significados surgem totalmente a partir de suas relações com o todo”.

               e

 “Uma partícula elementar não é uma entidade não-analisável que existe independente de outras, mas sim um conjunto de relações que se estendem a outras coisas”.

 

A RELAÇÃO ENTRE O MACROCOSMO E O MICROCOSMO

 O Tantra de Kalachakra diz:

“Assim como é no mundo externo, também é no mundo interno”.

 Segundo Bohm, um famoso físico do século XX:

“As partes são vistas como estando em conexão imediata, na qual suas relações dinâmicas dependem irredutivelmente do estado do sistemacomo um todo e do todo do universo. Somos, portanto, levados à nova noção de uma totalidade sem quebras, que nega a ideia clássica da possibilidade de se analisar o mundo em partes separadas e existentes independentemente umas das outras”.

  A MENTE ESTÁ CRIANDO A REALIDADE MATERIAL

 Uma das conclusões da física quântica éa de que os fenômenos são trazidos à existência pelo nosso ato mental que os rotula ou os nomeia, por exemplo, “gato vivo ou gato morto”. Segundo essa teoria, talvez os fenômenos não existam senão como qualificações mentais. Isso éo mesmo que os sábios budistas vêm dizendo há séculos. Estas são as palavras de Saraha, um mahasiddha indiano do século X:

“Apenas a mente é a semente de todas as realidades, de onde se originam o samsara e o Nirvana”.

 Segundo James Jeans, um grande físico americano do século XX:

“O curso do conhecimento está se movendo em direção a uma realidade não mecânica. O universo começa a se parecer mais como um grande pensamento do que com uma grande máquina”.

 Fritzof Capra, um físico americano do século XX, afirmou:

“A abordagem ‘bootstrap’ abre a possibilidade inédita de sermos forçados a incluir explicitamente o estudo da consciência humana nas futuras teorias da matéria.”

 E Evan Walker, um físico americano do século XX, disse:

“A consciência pode ser associada a todos os processos da mecânica quântica”.

 Wolfgang Pauli, um físico ganhador do Prêmio Nobel:

“A partir de um centro interno, a psique parece mover-se para fora no sentido de uma extroversão no interior do mundo físico”.

 Eugene Wigner, um físico americano do século XX:

“Não foi possível formular as leis da mecânica quântica de uma forma completamente consistente sem referir-se à consciência”.

 NGELSO – AUTOCURA III – T.Y.S. Lama Gangchen Tulku Rimpoche

“Toda a neurofisiologia, escreveu o Prof. P. Chauchard, repousa sobre a atividade psico-química do sistema nervoso. A atividade nervosa é uma verdadeira sociologia neurônica de onde emerge o indivíduo superior”. Os fenômenos da consciência são não somente ligados a transformações eletrônicas, mas não se limitam somente a intervenção de neurônios específicos. Assim escreve o Prof. Pierre Rylant: “Não é possível, como mostrou claramente Sherrington, limitar a consciência a intervenção de neurônios específicos”.

Uma certa forma de consciência se acha intimamente ligada a energia formando a essência de toda materialidade.

É de se supor que os caracteres de surgimento e de renovação onde se encontram marcados os mais altos estados de consciência espiritual estão em relação íntima com o processo de criação constante que se persegue nas profundezas do mundo atômico.

Assim se exprime P. Jordan: “A cada instante, há qualquer coisa de totalmente nova no interior de cada átomo”.

“Le Zen” – de Robert Linssen – Ed. Marabout Université

Matthieu Ricard: – “Quando fala da ‘vacuidade’ dos fenômenos, o budismo diz que estes ‘aparecem’, mas não refletem absolutamente a existência de entidades fixas. A física moderna nos diz que um elétron, por exemplo, pode ser considerado uma partícula ou uma onda, duas noções completamente incompatíveis, segundo o senso comum. Certos fenômenos de interferência causados por elétrons só podem ser explicados supondo-se que um elétron passe no mesmo instante por dois buracos diferentes. Segundo o budismo, os átomos não podem ser considerados como entidades fixas, existentes sob um modo único e determinado; por conseguinte, como o mundo da manifestação grosseira, que supostamente é composto dessas partículas, teria uma realidade fixa? Tudo isso contribui para destruir nossa noção de solidez das aparências. É nesse sentido que o budismo afirma que a natureza última dos fenômenos é vacuidade, e que essa vacuidade traz em si um potencial infinito de manifestações”.

 […]. “Fala-se de partículas que ‘não tem partes’, que não podem ser subdivididas. Ou seja, o componente último da matéria. Consideremos agora uma dessas partículas indivisíveis, concebida como uma entidade autônoma. Como poderia ela se associar com outras partículas para constituir a matéria? Se essas partículas se tocarem, o oeste de uma partícula, por exemplo, tocará o leste da outra. Mas se têm direções, elas podem ser novamente divididas e então perdem seu caráter ‘indivisível’. Se não tem nem lados nem direções, então se assemelham a um ponto matemático – sem dimensão, espessura ou substância. Se tentarmos juntar duas partículas sem dimensão, ou elas não se tocam e não podem se juntar, ou entram em contato e, ao fazerem isso, se confundem. Assim, uma montanha de partículas indivisíveis poderia se fundir em uma só dessas partículas! A conclusão, portanto, é que não podem existir partículas indivisíveis, descontínuas, dotadas de uma existência intrínseca, que seriam os constituintes da matéria. Além disso, se um átomo possui uma massa, uma dimensão, uma carga etc., será ele idêntico ao conjunto de seus atributos? Existe fora de seus atributos? O átomo não é idêntico a sua massa nem a sua dimensão. Tampouco é outra coisa além de sua massa e de sua dimensão. O átomo, portanto, tem um conjunto de características, mas ”não é” nenhuma delas. O átomo, portanto, não passa de um conceito, uma etiqueta que não abarca uma entidade existente de modo independente e absoluto. Tem uma existência apenas convencional, relativa”. […]

Ao demonstrar que não podem existir partículas indivisíveis, o budismo não pretende dar conta de fenômenos físicos, no sentido no qual a ciência os entende hoje: ele procura quebrar o conceito intelectual da solidez do mundo fenomenal. Pois é esse conceito que faz apegar-nos ao ‘eu’ e aos fenômenos; portanto, é esse conceito a causa da dualidade entre o eu e o outro, existência e não-existência, apego e repulsa etc., é a causa de todos os nossos tormentos. De qualquer modo, nesse particular o budismo vai ao encontro, intelectualmente falando, de certas visões da física contemporânea e sua contribuição deveria ser incluída na história das idéias. Eu gostaria de citar, por exemplo, um dos grandes físicos de nossa época, Henri Margenau, professor da Universidade de Yale, que escreve: “No fim do século XIX, sustentava-se que todas as interações implicavam objetos materiais. Hoje em dia, em geral já não se considera isso uma verdade. Prefere-se pensar que se trata da interação de campos de energia ou de outras forças que são, basicamente, não-materiais”. E Heisenberg dizia: “Os átomos não são coisas”. Para Bertrand Russel: “A idéia de que existe ali uma bolinha, uma massinha sólida que seria o elétron, é uma intrusão ilegítima do senso comum, derivada da noção do tato”, e ele acrescenta: “A matéria é uma fórmula cômoda para descrever o que sobrevêm no lugar onde, na verdade, a matéria não está, portanto, no lugar onde não há nada”. Por outro lado, Sir James Jeans, em suas Rede’s lectures (Conferencias de rede) chegava a dizer que “O universo começa a parecer mais um grande pensamento do que uma grande máquina”. […]

“O Monge e o Filósofo” –  Jean-François Revel (Filósofo) e Matthieu Ricard (Monge)

 

BUDISMO E CIÊNCIA MODERNA.

 “A vida e a consciência existem ao níveldas partículas intranucleares”.

Dr. D. Lawden

“É interessante notar que o progresso da ciência moderna, especialmente da física e da psicologia, trazem  a luz certas similitudes entre os ensinamentos da ciência e do Budismo”.

A rapidez da evolução recente das ciências obriga os pesquisadores a se descartar cada vez mais dos valores antigos.

Esta atitude encontra indiretamente a do Ch’an e do Zen, definida por um eminente cientista francês, G. Cahen: “A despersonalização do julgamento científico é considerado como uma condição essencial de sua validade. Em toda medida o físico deve lutar contra a precariedade duma constatação que seria muito individual. Ele deve sempre que possível eliminar sua equação pessoal. Face ao fato, ele se torna invisível, passivo, impessoal, inexistente”.

 Nessa mesma obra G. Cahen conclui por um lado pela identidade da essência entre o intelecto e o universo, e por outro lado a existência de um “vazio” como realidade fundamental do universo, o que nos lembra o Sunyata Budista.

Ele declara: “O exame dos fenômenos em face ao conteúdo imediato de nossas percepções, apresenta dois caracteres que colocaremos em evidência. Por um lado, esse processo revela uma identidade de essência entre o intelecto e o universo. Por outro lado esse conteúdo se esvazia progressivamente de sua substância aparente: a matéria tendendo ela mesma a não ser mais que uma forma vazia,[Como é dito no Maha-Prajna-Paramita Sutra: “A forma é vazia de qualquer substância própria e o vazio não é diferente da forma; na realidade, a forma é o vazio”] um campo de ação das propriedades estruturais de nossa mente, quer dizer qualquer coisa de imaterial.

Exprimiremos assim da maneira mais extrema a tendência ùltima da ciência: “redução da realidade ao vazio”.

 Esse vazio, esse Não-Ser, esse “Nada”, é o Ser mais completo possível, pois ele contém potencialmente o universo”.

Podem-se estabelecer outros paralelismos entre os ensinamentos do Budismo e da ciência moderna. Queremos mostrar aqui que o satori, esta experiência fundamental do Ch’an e do Zen, está em estreita ligação com uma interfusão universal na qual participam todos os átomos do corpo humano em relação com o universo inteiro e reciprocamente.

Tudo se sustenta, nada é separado no universo, desde a densa matéria física até os últimos confins do universo não manifesto.

As oposições entre o mundo fenomenal e o mundo noúmenal, entre matéria e mente, entre o que é regido pela lei de causa e efeito e o que está fora de toda a causalidade, entre o temporal e o atemporal, devem desaparecer. Elas existem somente em nosso intelecto.

Na Antigüidade, tanto no Oriente como no Ocidente, não se estabeleciam distinções entre o pensamento filosófico e o científico. Para o Budismo Mahayana, mente e matéria, o Nirvana e o Samsara são faces opostas, mas complementares de uma só e mesma realidade. Para Heráclito, Demócrito, Pitágoras, Platão, e Aristóteles, os fenômenos naturais, a vida, o homem formam um todo homogêneo, inseparável. A recusa de considerar a unidade do físico e do psíquico e as ligações existentes entre a microfísica e a metafísica provém principalmente de uma tendência que foi delineada no séc. XVI, quando a ciência se tornou experimental e se liberou de toda obediência religiosa, libertação que permitiu à ciência e a técnica  conseguirem os progressos extraordinários que atualmente assistimos, ao mesmo tempo perplexos e inquietos. Nós observamos um movimento durante o qual, desde o séc. XIX, os sábios foram obrigados a consagrarem-se a trabalhos cada vez mais específicos e tornaram-se especialistas em razão da extensão e da variedade dos fenômenos estudados. Eles recusaram de saída qualquer ingerência da metafísica na ciência e tomaram atitudes parciais e sectárias do cientificismo e do materialismo estrito, representados principalmente por Taine e Le Dautec.

Veremos em seguida que esse movimento atravessa uma fase inversa. Os sábios mais e mais numerosos adotam em nossos dias uma atitude absolutamente oposta. Eles crêem superar as deformações inerentes aos especialistas cujos conhecimentos, separados por compartimentos estanques, chegaram, voltados sobre eles mesmos, a verdadeiros impasses. Os sábios compreendem hoje que todas as ciências são solidárias e que as descobertas aparentemente as mais afastadas se fecundam mutuamente em uma espécie de simbiose contínua. Eles se dedicam de novo e de maneira definitiva ao estudo da unidade fundamental dos fenômenos. Eles se empenham em realizar uma síntese e uma coordenação das inumeráveis descobertas realizadas cada novo ano no mundo inteiro. É assim que vemos reunidos no mesmo congresso astrônomos, físicos, químicos, especialistas em anatomia do cérebro, cibernéticos, biólogos, médicos. Sem esta cooperação e esses confrontos contínuos, sem tais êxitos o envio dos cosmonautas a Lua teria sido impossível. As sínteses novas que se formam de um encontro mais numeroso entre todos os especialistas de todos os setores nos forçam a repensar certas posições tradicionais do pensamento. Nesta nova tendência  vemos reaparecer com uma força particular as instituições dos antigos sábios do Oriente, impregnados de unidade e universalidade. Em um memorável estudo intitulado “Microfísica e Metafísica”, Mathilde Niel escreveu: “Os progressos conquistados nos domínios muito variados da física, biologia, astronomia, psicologia conduzem a repensar certos problemas colocados a muito tempo pela espiritualidade e principalmente pela espiritualidade Oriental. As novas descobertas sobre o mundo atômico e as partículas elementares obrigaram os pesquisadores a renovar inteiramente sua visão do universo e seu modo de pensar. A razão em si mesma que acreditávamos imutável tem sido desmantelada, e Gaston Bachelard saúda a chegada de um novo espírito científico. Mas essas descobertas tendem a transformar igualmente nosso senso metafísico, ou se somos espiritualistas, nosso modo de experimentar o divino, é preciso atentar que após a revolução racional sucede uma revolução espiritual”.

O ponto de partida da revolução espiritual encontra-se nas revelações recentes sobre a natureza estranha do infinitamente pequeno. As descobertas relativas aos constituintes últimos da matéria são cada dia mais fascinantes. A importância do papel do infinitamente pequeno  em todos os fenômenos não somente físicos mais igualmente bioquímicos, biológicos, neurofisiológicos, e psicológicos se revela cada dia mais importante. Cada vez mais, a natureza energética, não causal, atemporal e talvez não-condicionada do infinitamente pequeno nos conduz ao limiar de mundos físicos e espirituais. Além da antiga mecânica quântica, os sábios, como Robert Tournaire, elaboraram uma mecânica sub-quântica. Nessa reside igualmente uma das revoluções metafísicas e espirituais mais fundamentais dos tempos modernos. Esta posição de equilíbrio e síntese entre o materialismo ultrapassado e o espiritualismo se encontra, nos parece, definida nas tendências modernas do Zen. Os progressos da biologia e da neurofisiologia psicológica são efeitos de descobertas do infinitamente pequeno. A evolução das espécies, as mutações, correspondem a mudanças de ordem molecular nos genes. O gene é uma molécula complexa de ácido desoxiribonucleico [DNA] que transmite a hereditariedade desde a concepção. Os genes são reunidos em cromossomos. Cada célula humana contém 48 cromossomos ou 24 pares.

E. Schrödinger escreveu:

“Grupamentos incrivelmente pequenos de átomos, pequenos demais para se conformarem às leis estatísticas exatas, jogam uma regra dominante nos eventos muito bem ordenados que se produzem no interior de um organismo vivo”.

Na obra “A Física e o segredo da vida orgânica” o físico alemão P. Jordan nos mostra como alguns fótons de luz projetados sobre a retina  de um olho habituado a escuridão são suficientes para criar uma sensação luminosa, portanto “um processo de consciência no interior do cérebro humano”. Jordan acrescenta que “os fenômenos de ordem de grandeza atômica correspondem, do ponto de vista físico, ao movimento tão fino e tão tênue dos pensamentos e das sensações”. Os trabalhos do Dr. Roger Godel  “A experiência liberadora, Vida e Renovação” e os do Prof. Pierre Rylant, da Universidade de Bruxelas, colocaram em evidência a importância dos fenômenos eletrônicos e elétricos em todas as manifestações da consciência.

“Toda a neurofisiologia, escreveu o Prof. P. Chauchard, repousa sobre a atividade psico-química do sistema nervoso. A atividade nervosa é uma verdadeira sociologia neurônica de onde emerge o indivíduo superior”. Os fenômenos da consciência são não somente ligados a transformações eletrônicas, e não se limitam somente à intervenção de neurônios específicos. Assim escreve o Prof. Pierre Rylant: “Não é possível, como mostrou claramente Sherrington, limitar a consciência a intervenção de neurônios específicos”.

Uma certa forma de consciência se acha intimamente ligada a energia formando a essência de toda materialidade.

É de se supor que os caracteres de surgimento e de renovação onde se encontram marcados os mais altos estados de consciência espiritual estão em relação íntima com o processo de criação constante que se busca nas profundezas do mundo atômico.

Assim se exprime P. Jordan: “A cada instante, há qualquer coisa de totalmente nova no interior de cada átomo”.

Nos níveis mais profundos da vida espiritual, há precisamente alguma coisa integralmente nova e desconhecida, de instante a instante. É em outros termos e em outro nível, o que exprime igualmente M. Niel: “Se nosso sentimento de liberdade provém, como parece provar a nova psicanálise, da consciência que não impede uma energia de ordem cósmica, então a indeterminação quântica e nosso sentimento de liberdade, embora diferentes um do outro, podem ter uma causa semelhante”. Esta causa semelhante é evidentemente, para os mestres Zen, a Mente Cósmica. Esta realidade se manifesta sob a forma de um campo para o qual muitos sábios tentam estabelecer uma fórmula, porém qualquer que seja ela escapa a toda tentativa de formulação. A noção de “Campo Unificado” preocupava particularmente A. Einstein, e Heisenberg. Na França J. Charon procurava a fórmula de um campo unificado capaz de explicar em uma só equação os campos nucleares, eletromagnéticos, e gravitacionais. Os fenômenos nucleares, eletromagnéticos, e gravitacionais são regidos por uma realidade idêntica na qual estão suspensas as manifestações do universo inteiro. Esta realidade foi designada pelo astrônomo inglês Fred Hoyle como um “Campo de Criação”. A noção de campo permite ultrapassar a antiga dualidade de mente e matéria. Tal é igualmente a opinião de Emile Bréhier que declara que “o Campo seria a Realidade Universal que ultrapassa a distinção da matéria e do espírito”.

Podemos deixar a conclusão aos cuidados de M. Niel que escreveu: “é curioso ver que a noção de campo, considerado como realidade universal, une certas intuições do pensamento oriental, principalmente a da Mente Cósmica, do Zen-Budismo ou da Consciência Cósmica de Tagore”.

“É, pois a ação desse campo sobre as partículas elementares que parece determinar as combinações infinitas, as criações de estruturas novas, limítrofes ao que chamamos de matéria, de vida, de consciência.

“Mas uma vez surgida a consciência individual, o Campo Universal agirá então por seu intermédio. Ela será pois criadora, porque tem a mesma natureza que o Campo fundamental da criação”.

 

CAMPO DE CRIAÇÃO E SATORI

Em sua essência mais profunda, o Universo se resolve em um Campo Unificado de Criação Pura. O Ser puro dos filósofos, o Deus dos místicos não seriam, pois diferentes. Quando estabelecemos em nossa mente uma visão panorâmica dos progressos recentes da maioria das ciências, uma realidade emerge sobre qualquer outra: a do campo unificado de criação onde se alimentam todas as manifestações do universo visível e invisível. Esta realidade ocupa um lugar de prioridade cuja evidência se afirma dia a dia. Assim se exprime Schrödinger:

“Não existe senão uma só coisa, a pluralidade aparente é uma série de aspectos diferentes desta coisa única”.

A complexidade da arquitetura celular que caracteriza o corpo humano manifesta uma admirável flexibilidade e uma receptividade  perfeita dos ritmos mais profundos e mais sutis da natureza.

O homem pode ser particularmente receptivo ao ritmo cósmico no qual se recria constantemente o universo porque sua essência e a do universo se confundem em um campo de criação idêntico.

O satori do Zen ou do Ch’an é a experiência viva do Campo unificado da criação pura tomando consciência de si mesmo por ele mesmo, em nós.

Mas trata-se de uma comodidade de linguagem que parece fazer ainda algumas concessões ao dualismo. Na realidade, a experiência do satori esta além da dualidade do experimentador e da experiência. Ela não é mais uma objetivação semelhante a outras experiências familiares. Krishnamurti, o Ch’an e o Zen, insistem particularmente sobre esse ponto. Quer estejamos lá ou não, o Campo unificado de criação pura é a realidade fundamental do universo e de nós mesmos fora de qualquer distinção de objeto e de sujeito. Por esta razão, a experiência viva do Campo unificado da criação exige de nossa parte uma abertura mental e uma transparência interior totais.

 

CO-EXTENSIVIDADE  UNIVERSAL DO ÁTOMO E SATORI

Acabamos de examinar sumariamente as ligações que possam existir entre o  Campo unificado da criação pura e a  experiência do Satori.

Propomo-nos agora examinar o comportamento do universo e dos átomos que nos constituem, a um nível mais aproximado do mundo fenomenal: onde perseguimos a extraordinária e constante interfusão atômica por intermédio dos aspectos ondulatórios da energia. Sabemos que a essência profunda da materialidade é fluida, movente, em contínua mudança. Não podemos comparar o universo a um edifício arquitetonicamente “sólido”. O tempo, o espaço, a solidez estão ausentes nas “bases últimas do mundo”. Como exprime freqüentemente Lao-tzu, “A flexibilidade e a espontaneidade são as leis da Vida”.

Temos mostrado repetidamente que esta flexibilidade e esta espontaneidade manifestam-se principalmente na forma de um processo fundamental: o processo das relações. Definimos em detalhe as leis e as modalidades em uma outra obra que resumiremos aqui.

Nas zonas últimas da materialidade, ao nível intra-nuclear, assistimos às inter-permutações  prodigiosas. Os corpúsculos situados no interior dos núcleos atômicos não têm nenhuma individualidade. Após haver enunciado esse fato, enunciamos um principio: “No intra-átomo,  o fato das relações é mais importante que a individualidade dos elementos interligados”. Podemos fazer a mesma constatação em biologia, onde a vida é essencialmente função da habilidade celular, da flexibilidade, da rapidez e da fluidez das trocas. Os progressos da genética moderna colocaram em evidência a importância da noção de interação entre os genes de um indivíduo e os fatores do meio. O meio e a hereditariedade são fatores em contínua interação das quais depende todo comportamento do indivíduo. Os genes reagem entre eles, o meio reage sobre os genes e os genes por si mesmos mudam e operam por seu turno sobre um meio transformado. Isso, sobretudo no domínio atômico, assim uma vez mais descobriremos um novo aspecto do fato fundamental das relações regendo o universo em todos os níveis. Evocamos precedentemente a intensidade das relações ou das trocas no interior de um sistema atômico entre o elétron planetário e o núcleo de um lado, do mesmo modo que no interior mesmo do núcleo, por outro lado. Vamos examinar um fato bem mais significativo ainda.

“Não existe no universo nenhum ser, nenhum objeto, alguma coisa, algum átomo independente”.

Assim se exprime T. Chardin:

“Quanto mais, pelos meios de um poder sempre aumentado, penetramos profundamente na matéria, mais as interligações de suas partes nos confundem. Cada elemento do cosmos esta positivamente tecido de todos os outros, mais acima dele mesmo, pelo misterioso fenômeno da composição que o faz subsistente, num conjunto organizado, e mais abaixo, pela influência sofrida das unidades de ordem superior que o englobam e o dominam para sua própria finalidade.

Impossível cortar-se essa rede, isolar uma peça, sem que essa não se desfie e se desmanche por todos os lados. A perder de vista, a nossa volta, o universo se mantém por seu conjunto… e não há  senão uma maneira realmente possível de o considerar, é tomando-o como um bloco inteiro”.

A física moderna nos ensina, com efeito, que independentemente do seu aspecto corpuscular claramente definido e localizado, cada corpúsculo atômico comporta um aspecto oposto complementar: o aspecto ondulatório. A ação de um elétron, por seu aspecto ondulatório, se estende ao universo inteiro.

Existe uma presença potencial do aspecto ondulatório de cada corpúsculo atômico que nos constituem, que se estende até os últimos confins do universo [em expansão ou não]. E reciprocamente, cada átomo das nebulosas situadas nos abismos insondáveis de milhares de anos luz, está presente em cada um de nós, em cada objeto, em cada grão de areia de nosso planeta. Lá se encontra trabalhando a constante, mas invisível interpenetração mútua de todos os constituintes do universo. Tudo se comporta como se o cosmos inteiro não fosse mais que um bloco imenso perfeitamente homogêneo. Tudo está em tudo, verdadeiramente, com uma intensidade, uma continuidade, uma profundidade tais que a imaginação é impotente para conceber a mais fraca parte desta interfusão universal. Repetindo – não diremos nunca suficientemente – afim de que cada um se impregne profundamente: Tudo está em tudo; o universo inteiro está em nós e reciprocamente. Parece a primeira vista uma linguagem muito paradoxal vinda de um visionário ou poeta. Nada é, entretanto mais conforme à verdade ao mesmo tempo física e metafísica. Assim escreveu T. Chardin:

“O raio de ação próprio a cada elemento cósmico deve ser prolongado por direito até os limites últimos do mundo. Pois que o átomo é naturalmente co-extensivo a todo espaço no qual ele se situa, e já que este espaço universal é o único que conhecemos, somos forçados a admitir que é esta imensidão que representa o domínio de ação comum a todos os átomos. Cada um deles tem por volume, o volume do universo inteiro. O átomo não é mais o mundo microscópico e fechado que imaginávamos… Ele é o centro infinitesimal do mundo”.

Compreendemos enfim que um fragmento de matéria qualquer não é somente constituído pela soma dos átomos que a compõe. Há infinitamente mais que uma simples soma de elementos justapostos. Mas esta perspectiva nova é tão diferente daquela que aprendemos, e também daquela que nos oferecem os sentidos, que admitimo-la com espanto e dificuldade. Existe uma força de ligação que une cada fragmento de matéria, todos os átomos, o universo inteiro e reciprocamente. A energia inclusa nesta força de ligação é considerável e faz parte integrante da matéria de cada objeto, de todas as coisas, de cada ser. Teilhard Chardin escreveu a esse propósito:

“Os centros inumeráveis que partilham em comum um dado volume de matéria não são, portanto independentes. Alguma coisa une uns aos outros, e os faz solidários. Longe de se comportar como um receptáculo inerte, o espaço que permeia essa multidão age sobre ela à maneira de um meio ativo  de direção e de transmissão no seio do qual apluralidade se organiza. Simplesmente adicionados ou justapostos, os átomos não fazem ainda a matéria. Uma misteriosa unidade os engloba e os cimenta de uma maneira que nossa mente se choca, mas é finalmente forçada a aceitar”.

Compreendemos no presente como é ridículo considerar um ser vivo, uma coisa ou um objeto quaisquer sob o angulo de um isolamento ou de uma independência quaisquer que seja. Nada é independente, isolado. Tudo se interpenetra. Pretender o isolamento de um objeto, tal como um corta-papéis metálico, porque os sentidos da visão e do tato lhe conferem contornos definidos e exatos é, de fato uma infantilidade que é importante denunciar. A ação dos átomos deste corta-papéis se estende a totalidade dos mundos  inter-estelares. Ela enche o universo inteiro até milhares de anos luz com sua presença potencial. E reciprocamente, qualquer coisa de cada um dos átomos situados nos últimos confins das galáxias se acham no âmago desse corta-papéis aparentemente isolado. É muito provável que, se essa qualquer coisa de proveniência longínqua não está presente, uma modificação notável na organização coletiva dos átomos e das moléculas intervirá e dará um aspecto ao nosso corta-papéis absolutamente irreconhecível. Milhares de liames invisíveis, mas intensamente ativos unem entre si todas as partes aparentemente separadas do universo. Isso ilustra de maneira impressionante, não somente o fato fundamental das relações, mas também a da interfusão universal. Esta interfusão universal é o fato fundamental de cada segundo que se escoa, enquanto que, simultaneamente, a um nível mais profundo, o campo unificado da criação pura regenera as últimas profundezas do universo.

É interessante notar  que o que acabamos de dizer forma a base dos ensinamentos do Avatamsaka Sutra o qual o Kegon, muito próximo ao Zen, nos tem dado desenvolvimentos profundos. O fato da interfusão [interdependência] está ai. Quer pensemos nisso ou não, quer saibamos ou não, a ação do aspecto ondulatório de todos os átomos que nos constituem está presente no universo inteiro. E reciprocamente. Deste ponto de vista, o Satori não será outra coisa do que uma tomada de consciência desta interdependência, embora a um nível mais profundo, o campo unificado da criação pura se revela em nós e por nós. A condição da experiência viva da interfusão cósmica poderá ser enunciada como segue: é indispensável deixar esta interfusão “ser o que ela é” sem que intervenhamos por um ato de vontade ou escolha. [caso essa intervenção fosse possível!]. Não devemos querer “interfundir”. A Interfusão É. Não devemos querer nos recriar segundo o ritmo do campo unificado da criação pura. Ele se recria por si mesmo. Não devemos proceder à uma representação mental qualquer da interfusão ou da ubiqüidade do campo unificado da criação pura. Eles são autógenos, absolutos, onipresentes. Os despertos nos ensinam que a “suprema benção” nos é dada quando o que resta de nós se torna permeável, vulnerável, disponível ao ritmo da criação  do campo unificado da criação pura, e a interfusão cósmica.

Assim é dito no Tao: “Deixemos o império do Real ser sua própria lei em nós”. A experiência do Satori ou a “liberação” de um Krishnamurti não é, pois nenhuma projeção imaginativa, especulações, dos “a priori”, nem dos estados de auto-hipnose resultando de uma meditação sobre um determinado tema. O satori será realizado no instante em que deixamos o campo unificado da criação retomar o lugar que ele ocupa desde a eternidade. Para isto, todas as nossas interpretações, nossas imagens as mais sutis relativas a esse campo devem previamente desaparecer após terem sido evocadas. O mesmo para a interfusão. Esta não será experimentada senão a partir do momento onde qualquer traço de sua representação mental de interfusão for banida de nosso mente. Tratamos desse assunto porque ele é interessante para os homens de certa cultura, quando de uma primeira aproximação. Mas para a aproximação última, dizem paradoxalmente os mestres Zen e do Ch’an, tudo isso deve ser ultrapassado e esquecido. No seu discurso a seu discípulo Thot, Hermmes Trimegisto disse que “o infinito se move em sua estabilidade”. Este enunciado paradoxal parece ser bastante verídico. O homem é uma imagem estampada desse processo universal de interfusão, de interações no âmago de uma estabilidade aparente tanto quanto provisória. Qual significado teriam um fígado, ou um rim sem o conjunto do organismo para o equilíbrio do qual eles contribuem? Somente a interligação, a interação e a organização do conjunto dão, tanto ao indivíduo global como aos órgãos particulares, sua plena significação. Do mesmo modo que uma pedra é exteriormente estável, tomada em bloco e de maneira superficial, malgrado sua estabilidade exterior, tudo se movimenta intensamente em profundidade, do mesmo modo a totalidade universal se move intensamente ao longo de sua aparente estabilidade exterior. Do mesmo modo que o homem parece à primeira vista uma individualidade imutável cuja aparente continuidade, e a vida mesma, são baseadas na interfusão rápida e complexa da circulação sangüínea, alimentando os órgãos separados, mas interdependentes. Igualmente a totalidade  universal vive ao ritmo de uma interfusão prodigiosa entre os elementos aparentemente separados que a constituem.

Segundo uma antiga imagem indiana, a interfusão infinitamente complexa e sutil é o “respirar” da realidade universal. O ritmo de renovação do campo unificado da criação será a fonte de vida subjacente a esse “respirar” fundamental. Tudo que foi dito se aplica ao universo “exterior” ou mundo manifestado, de modo que nosso pensamento pode concebê-lo e compreende-lo nos limites do tempo e do espaço. Os mestres do Ch’an e do Zen vão muito mais em profundidade, em direção ao que alguns filósofos chamam de “noumeno” ou mundo não manifestado. A exposição que acabamos de fazer serve de aproximação intermediária entre essas duas faces opostas e complementares do Real.

 

OS KOANS E O “MONDO”

Os koans são enunciados de pensamentos paradoxais empregados pelos mestres Zen para dar um choque psicológico em seus discípulos. São também questões que não podem ser resolvidas pelo pensamento e criam um grande estado de tensão intelectual que pode ser seguido por uma experiência interior [satori]. O “mondo” é apresentado mais comumente sob forma de perguntas e respostas com o mesmo fim. Os dois forçam o discípulo a realização do silêncio mental e projetam uma espécie de obstáculo em suas agitações. Graças a esse silêncio, os níveis mais profundos da consciência podem se manifestar. Eis aqui um exemplo de koan seguido de nossos comentários.

1 – No início as montanhas são as montanhas.

2 – No meio as montanhas não são mais as montanhas.

3 – No final, as montanhas são novamente as  montanhas.

A primeira vista, esses enunciados parecem uma mistificação. Na verdade eles estão cheios de ensinamentos. A interpretação correta desse texto permite dar uma visão panorâmica das etapas que conduzem ao satori segundo o Ch’an e o Zen.

Ao longo da fase anterior a qualquer procura não colocamos nada em dúvida, não refletimos sobre os grandes problemas da existência. Deixamos os outros pensarem por nós. Quando vemos, dizemos muito simplesmente: “Essas montanhas são montanhas”. Os contornos exteriores  representam aos nossos olhos a única realidade. Os rochedos não são mais que rochedos, a terra é a terra. Quando começamos a despertar para a busca interior, descobrimos que as imagens que nos dão nossos sentidos ao contato com o mundo exterior não correspondem à realidade. Vemos que nada é imóvel. Tudo se move, tudo se transforma. Em lugar dos rochedos, da terra e das montanhas, descobrimos a ação duma energia prodigiosamente ativa animando partículas estranhas que se movem com a velocidade da luz. Conhecemos, seja por intuição, seja por pesquisa científica, a vida secreta e a natureza profunda de toda matéria. Os aspectos superficiais e sua multiplicidade de nuanças são secundários diante de uma essência comum de natureza energética formando sua realidade profunda. Quando olhamos as montanhas, ao longo dessa fase, elas não são mais, para nós, as mesmas montanhas de antes. Elas parecem miragens desprovidas de qualquer consistência real. No início de nossas buscas, temos tendência a nos orientar para uma atitude de oposição extrema à nossa primeira atitude. Sofremos a tal ponto a magia encantadora da realidade profunda das coisas, que esta luz interior mascara aos nossos olhos sua aparência de superfície. A matéria se tornou para nós o véu, a ilusão [maya] e dizemos: “as montanhas não são mais as montanhas”. Chegaremos a discernir um dia que não existe nenhuma cisão entre o mundo material tal como o vemos superficialmente e a pura essência da Mente Cósmica em profundidade. Essas distinções resultam de uma falta de penetração e da faculdade de síntese de nossa mente. Tudo é a Mente Cósmica. Nem um grão de areia esta fora desta Totalidade Una. Deste instante em diante, quando nosso olhar pousa de novo sobre as montanhas, dizemos como no início: “as montanhas são as montanhas”. Mas situamos sua aparência material no lugar justo que elas ocupam em um conjunto infinitamente mais vasto e profundo. As montanhas não são mais absolutamente uma ilusão. A noção de ilusão ou de maya provém de um vício de funcionamento em nossa mente. É essa última que nos dá, dos seres, das coisas e de nós mesmos noções ilusórias. Quando o Desperto diz: “as montanhas são as montanhas” essas palavras exprimem um estado de visão panorâmica englobando as aparências de superfície e a realidade profunda. Seus olhos lhes dão uma imagem do mundo exterior condicionada por sua escala de observação física enquanto que, simultaneamente, a Mente Cósmica se revela como sendo a única realidade das montanhas ao nível das profundidades últimas. Quando de nosso contato com o Prof. D. T. Suzuki, o eminente especialista do Zen nos apresentou o seguinte koan: “Quando eu entendo, eu vejo; e quando eu vejo, entendo”, o que parece menos paradoxal. Por isso, devemos compreender que na experiência do satori nossa percepção das coisas não é distinta, mas global, mas isso não diminui nada a capacidade que temos de perceber claramente a singularidade das coisas em um certo nível. Quando capto o som de um sino longínquo, duas possibilidades se apresentam na minha maneira de reagir. Ou bem estou distraído, sem nenhuma profundeza de percepção e a experiência é banal. Ela se limita a simples audição de um som que não tem nenhum dom de me emocionar ou de me revelar o que quer que seja. Fico fechado em mim mesmo. O sino e o som são fenômenos completamente estranhos que não me interessam. Ou bem eu estou “desperto”, nesse caso, todas as provocações do meio, quer sejam visuais, auditivas, olfativas, táteis, me revelam a unidade e a interdependência dos seres e das coisas. Quando entendo o som de um sino longínquo, sou eu em certo sentido – pela Mente Cósmica – a essência energética desse sino. Sou as moléculas do ar que ele faz vibrar, sou a onda sonora que se propaga no espaço. Sou a essência mesma do espaço. Estando atento à natureza profunda de todas as coisas, todo evento exterior, todo movimento me permite vibrar em perfeita identidade de essência comum por uma ressonância secreta renovando-se de instante em instante. Num certo sentido tudo que vejo, eu percebo através desta realidade mais profunda. Não se trata de uma auto-sugestão, nem duma criação mental qualquer. Ao contrário. Tudo que escuto, compreendo através desta identidade insondável. Ela acaba por ocupar a meu ver um lugar de tal modo preponderante que é ela que forma a nota dominante de todas as percepções distintas. Ao final desse processo eu posso dizer efetivamente: “Quando entendo, eu vejo; quando eu vejo, entendo”.

Extratos  do livro de   Robert Linssen – “LE ZEN” – Ed . marabout université Tradução: Flávio Capllonch Cardoso

A visão da matéria que emerge do estudo dos átomos e dos núcleos mostra-nos que essa matéria, em sua maior parte, acha-se concentrada em minúsculas gotas separadas por distâncias consideráveis. No vasto espaço existente entre as gotas nucleares compactas e intensamente ferventes movem-se os elétrons. Estes constituem apenas uma reduzidíssima fração da massa total, embora confiram a matéria seu aspecto sólido e forneçam os vínculos necessários a construção das estruturas moleculares. Eles se acham ainda envolvidos nas reações químicas, sendo também responsáveis pelas propriedades químicas da matéria. As reações nucleares, por outro lado, geralmente não se verificam de modo natural nessa forma de matéria, em virtude do fato de que as energias disponíveis não são suficientemente elevadas para perturbar o equilíbrio nuclear. Essa forma de matéria, entretanto, com sua grande variedade de formas e texturas e sua complexa arquitetura molecular, só consegue existir sob condições muito especiais, quando a temperatura não é muito elevada, de modo que as partículas não se agitem em demasia. Quando a energia térmica aumenta cerca de cem vezes mais, como sucede na maioria das estrelas, todas as estruturas atômicas e moleculares são destruídas. A maior parte da matéria presente no universo existe, de fato, num estado bastante diverso daquele acima descrito. No centro das estrelas existem vastas acumulações de matéria nuclear, e processos nucleares que raramente são registrados na Terra, são predominantes lá. São, aliás, essenciais para a grande variedade de fenômenos estelares observados na Astronomia, a maioria dos quais deriva de uma combinação de efeitos nucleares e gravitacionais. Para o planeta em que habitamos, os processos nucleares no centro do Sol são de particular importância, pois fornecem a energia que mantém nosso ambiente terrestre. Um dos grandes triunfos da Física moderna foi a descoberta de que o continuo fluxo de energia proveniente do Sol – nosso elo vital com o mundo dos corpos de grandes dimensões – resulta de reações nucleares, de fenômenos no mundo do infinitamente pequeno. Na história da penetração humana dentro deste mundo sub-microscópico, uma nova etapa foi alcançada no inicio da década de 1930, quando os cientistas imaginaram haver finalmente descoberto os “blocos de construção básicos” da matéria. Sabia-se que toda a matéria consistia em átomos e que todos os átomos consistiam em prótons, neutros e elétrons. Essas chamadas “partículas elementares” eram encaradas como as últimas e indestrutíveis unidades da matéria, átomos tais como os tinha concebido Demócrito. Embora a teoria quântica implique o fato já mencionado de que não podemos decompor o mundo nas menores unidades existentes independentemente, esse fato não foi, via de regra, percebido naquela época. Os hábitos clássicos de pensamento ainda se mostravam de tal forma persistentes que a maioria dos físicos tentava compreender a matéria em termos de seus “blocos de construção básicos”, tendência de pensamento que, aliás, ainda hoje continua sólida. Dois desenvolvimentos posteriores da Física moderna mostraram-nos, entretanto, que a noção de partículas elementares como sendo as unidades primarias da matéria tinha que ser posta de lado. Um desses desenvolvimentos foi experimental, o outro teórico, e ambos tiveram inicio na década de 30. Do lado experimental, foram descobertas novas partículas a medida que os físicos aperfeiçoavam suas técnicas experimentais e desenvolviam novos e engenhosos dispositivos para a detecção de partículas. Assim, o numero destas ampliou-se de três para seis por volta de 1935, de seis para dezoito por volta de 1955; hoje, conhecemos mais de duzentas partículas ”elementares”. As duas tabelas, […] apresentam a maior parte das partículas atualmente conhecidas. Essas tabelas demonstram convincentemente o fato de que o adjetivo “elementar” deixou de ser atraente em tal situação. A medida que um numero crescente de partículas iam sendo descobertas ao longo dos anos, ia se tornando claro que nem todas elas poderiam ser chamadas de “elementares”. Hoje é crença generalizada entre os físicos que nenhuma dessas partículas merece esse nome. Essa crença é reforçada pelos desenvolvimentos teóricos que caminharam paralelos com a descoberta de um numero sempre crescente de partículas. Logo após a formulação da teoria quântica, tornou-se claro que uma teoria completa dos fenômenos nucleares não deveria ser apenas uma teoria quântica, mas deveria incorporar, igualmente, a teoria da relatividade. Isto se deve ao fato de que as partículas confinadas às dimensões do núcleo freqüentemente se movem tão rápido que sua velocidade se aproxima da velocidade da luz. Esse fato é fundamental para a discrição do seu comportamento, pois toda descrição de fenômenos naturais envolvendo velocidades próximas a da luz precisa levar em conta a teoria da relatividade. Essa descrição, como se costuma falar, precisa ser “relativística”. 0 que precisamos, pois, para um entendimento integral do mundo nuclear é uma teoria que incorpore tanto a teoria quântica quando a da relatividade, Uma teoria desse porte ainda não foi encontrada, o que nos impede de formular uma teoria completa do núcleo. Embora saibamos bastante acerca da estrutura nuclear e das interações entre as partículas nucleares, ainda não compreendemos a natureza e a forma complexa da força nuclear a nível fundamental. Inexiste uma teoria completa do mundo das partículas nucleares comparável a teoria quântica para o mundo atômico. Dispormos, isto sim, de diversos modelos “quantico-relativísticos” que nos descrevem adequadamente alguns aspectos do mundo das partículas; mas, a fusão das teorias quântica e da relatividade numa teoria completa do mundo das partículas ainda constitui o problema central e o grande desafio da Física moderna. A teoria da relatividade tem exercido profunda influência na maneira como figuramos a matéria, forçando-nos a modificar de um modo essencial nosso conceito de partícula. Na Física clássica, a massa de um objeto sempre esteve associada a uma substancia material indestrutível, a algum “estofo” com o qual se acreditava que todas as coisas fossem feitas. A teoria da relatividade demonstrou que a massa nada tem a ver com qualquer substância, sendo, isso sim, uma forma de energia. A energia, entretanto, é uma quantidade dinâmica associada com a atividade, ou com processos. 0 fato de a massa de uma partícula ser equivalente a uma certa quantidade de energia significa que a partícula não pode mais ser encarada como um objeto estático, mas sim, que ela deve ser concebida como um modelo dinâmico, um processo que envolve uma energia que se manifesta a si mesma como a massa da partícula. Essa nova concepção de partícula foi iniciada por Dirac, ao formular uma equação relativística que descreve o comportamento dos elétrons. A teoria de Dirac mostrou-se não apenas extremamente bem-sucedida na explicação dos pequenos detalhes da estrutura atômica como também revelou uma simetria fundamental entre a matéria e a anti-matéria. Dirac previu a existência de um anti-elétron com a mesma massa do elétron, mas com carga oposta. Essa partícula positivamente carregada, agora denominada positron, foi realmente descoberta dois anos depois de Dirac ter predito a sua existência. A simetria entre matéria e anti-matéria implica o fato de que para cada partícula existe uma anti-partícula, portadora de igual massa e carga oposta. Pares de partículas e anti-partículas podem ser criados se dispusermos de suficiente energia e podem ser transformados em energia pura no processo reverso de aniquilação. Esses processos de criação e aniquilação de partículas haviam sido previstos pela teoria de Dirac antes de serem efetivamente descobertos na natureza, Tem sido, desde então, observados milhões de vezes. A criação de partículas materiais a partir da energia pura é, por certo, o efeito mais espetacular da teoria da relatividade, podendo ser compreendida somente em termos da concepção de partículas acima esboçada. Antes da Física das partículas relativísticas, sempre se considerara a matéria constituída ou de unidades elementares, que seriam indestrutíveis e imutáveis, ou de objetos compostos, que podiam ser fragmentados em suas partes componentes. A questão básica girava em torno da indagação se seria possível dividir indefinidamente a matéria ou se, ao invés disso, poder-se-ia chegar às menores unidades indivisíveis. Após a descoberta de Dirac, toda essa questão da divisão da matéria apareceu sob uma nova luz. Quando duas partículas dotadas de elevada energia colidem, geralmente fragmentam-se, mas cada um desses fragmentos não é menor que as partículas originais. Trata-se, uma vez mais, de partículas da mesma espécie e que são criadas a partir da energia do movimento (energia cinética) envolvida no processo de colisão. 0 problema da divisão da matéria é, assim, resolvido de uma forma inesperada. A única maneira de dividir partículas subatômicas consiste em lança-las em processos de colisão envolvendo energias elevadas. Pode-se, desse modo, dividir indefinidamente a matéria, embora jamais obtenhamos pedaços menores uma vez que simplesmente criamos partículas a partir da energia envolvida no processo. As partículas subatômicas são, pois, destrutíveis e indestrutíveis ao mesmo tempo.

Esse estado de coisas permanecerá paradoxal enquanto adotarmos a concepção estática que postula “objetos” compostos consistindo em “blocos de construção básicos”. Somente quando adotarmos a concepção dinâmica e relativista o paradoxo desaparecerá. As partículas passam então a ser vistas como padrões (processos) dinâmicos, que envolvem uma determinada quantidade de energia que se manifesta a nós como sua massa. […]

 

VAZIO E FORMA

A visão clássica, mecanicista do mundo baseava-se no conceito de partículas sólidas e indestrutíveis deslocando-se no vazio. A Física moderna trouxe a tona uma revisão radical dessa representação, levando não apenas a uma noção inteiramente inédita do que sejam “partículas”, mas também transformando profundamente o conceito clássico de vazio. Essa transformação ocorreu nas chamadas teorias de campo. Teve inicio com a idéia de Einstein de associar o campo gravitacional a geometria do espaço e tornou-se ainda mais pronunciada quando a teoria quântica e a teoria da relatividade foram combinadas para descrever os campos de força das partículas subatômicas. Nessas “teorias quânticas do campo”, a distinção entre partículas e o espaço circunvizinho perde sua nitidez original e o vazio passa a ser reconhecido como uma quantidade dinâmica de exponencial importância. 0 conceito de campo foi introduzido no século XIX por Faraday e Maxwell, através de sua descrição das forças entre cargas e correntes elétricas. Um campo elétrico é uma condição no espaço em torno de um campo carregado e que produzirá uma força sobre qualquer outra carga nesse espaço. Os campos elétricos são, pois, criados por corpos carregados e seus efeitos só podem ser experimentados por corpos carregados. Campos magnéticos são produzidos por cargas em movimento, isto é, por correntes elétricas, e as forças magnéticas dai resultantes podem ser sentidas por outras cargas em movimento. Na Eletrodinâmica clássica, a teoria construída por Faraday e Maxwell, os campos são entidades físicas primarias que podem ser estudadas sem qualquer referencia a corpos materiais. Campos elétricos e magnéticos em vibração podem deslocar-se através do espaço sob a forma de ondas de radio, de ondas de luz ou de outras modalidades de radiação eletromagnética. A teoria da relatividade tornou muito mais elegante a estrutura da Eletrodinâmica através da unificação dos conceitos de cargas e correntes e campos elétricos e magnéticos. Levando-se em conta que todo movimento é relativo, cada carga pode igualmente aparecer como uma corrente – num referencial onde se desloca em relação ao observador – e, conseqüentemente, seu campo elétrico também pode aparecer como um campo magnético. Na formulação relativística da Eletrodinâmica, os dois campos são dessa forma unificados num único campo eletromagnético. 0 conceito de campo tem sido associado não apenas a força eletromagnética, mas também, a força de maior expressão no mundo das grandes escalas, a força de gravidade. Os campos gravitacionais são criados e experimentados por todos os corpos sólidos e as forças dai resultantes são sempre forças de atração, ao contrário dos campos eletromagnéticos, que são experimentados apenas por corpos carregados e que originam as forças de atração e repulsão. A teoria do campo adequada ao campo gravitacional e a teoria geral da relatividade; nessa teoria, a influência de um corpo sólido sobre o espaço circunvizinho é mais ampla do que a influência correspondente de um corpo carregado na Eletrodinâmica. Uma vez mais, o espaço em torno do objeto é “condicionado” de tal modo que outro objeto experimentará uma força. Desta vez, contudo, o condicionamento afeta a Geometria e, através desta, a própria estrutura do espaço. Matéria e espaço vazio – o cheio e o vazio – foram os dois conceitos fundamentalmente distintos sobre os quais se basearam o atomismo de Demócrito e de Newton. Na relatividade geral, esses dois conceitos não podem mais ser separados. Sempre que exista um corpo sólido, existirá igualmente um campo gravitacional, e este se manifestará como a curvatura do espaço circunvizinho aquele corpo. Não devemos pensar, contudo, que o campo preenche o espaço e o “curva”. Os dois não podem ser diferenciados; o campo é o espaço curvo! Na relatividade geral, o campo gravitacional e a estrutura ou geometria do espaço são idênticos e se acham representados nas equações de campo de Einstein por uma única quantidade matemática. Na teoria de Einstein, pois, a matéria não pode ser separada de seu campo de gravidade e este não pode ser separado do espaço curvo. Matéria e espaço são, pois, encarados como partes inseparáveis e interdependentes de um único todo. Os objetos materiais não apenas determinam a estrutura do espaço circunvizinho como são, por sua vez, influenciados de forma essencial por seu meio. De acordo com o físico e filósofo Ernst Mach, a inércia de um objeto material – ou seja, a resistência deste contra a aceleração – não é uma propriedade intrínseca da matéria, mas uma medida de sua interação com o restante do universo. Na concepção de Mach, a matéria só possui inércia porque existe outra matéria no universo. Quando um corpo gira, sua inércia produz forças centrifugas (utilizadas, por exemplo, numa máquina de lavar para retirar a água da roupa), mas essas forças só aparecem porque o corpo gira “em relação as estrelas fixas”, segundo as palavras de Mach. Se essas estrelas fixas desaparecessem repentinamente, a inércia e as forças centrifugas do corpo que gira também desapareceriam. Essa concepção de inércia, que se tornou conhecida como o principio de Mach, exerceu uma profunda influência sobre Albert Einstein e foi sua motivação original para construir a teoria geral da relatividade. Em razão da considerável complexidade matemática da teoria de Einstein, os físicos ainda não puderam concluir se essa teoria efetivamente incorpora o princípio de Mach. Muitos físicos acreditam, contudo, que esse principio deveria ser incorporado, de uma forma ou de outra, numa teoria completa da gravidade. Assim, a Física moderna mostra-nos, uma vez mais – e desta vez em nível macroscópico – que os objetos materiais não são entidades distintas, mas se encontram inseparavelmente vinculadas a seu meio; que suas propriedades só podem ser compreendidas em termos de sua interação com o restante do mundo. De acordo com o principio de Mach, essa interação volta-se para o universo como um todo, para as estrelas e galáxias distantes. A unidade básica do cosmos manifesta-se, portanto, não apenas no mundo do muito pequeno, mas também no mundo do muito grande, um fato crescentemente reconhecido na Astrofísica e na Cosmologia modernas. Nas palavras do astrônomo Fred Hoyle:

“Os desenvolvimentos atuais da Cosmologia estão a ponto de sugerir, com certa insistência, que as condições cotidianas não poderiam persistir a não ser para as partes mais distantes do universo, que todas as nossas idéias acerca do espaço e da geometria tornar-se-iam inteiramente inválidas se as partes distantes do universo fossem retiradas. Nossa experiência cotidiana, até mesmo nos detalhes mais insignificantes, afigura-se tão intimamente integrada às características em grande escala do universo que se torna praticamente impossível encará-las como coisas separadas”.

 A unidade e inter-relação entre um objeto material e seu meio, manifestada em escala macroscópica na teoria geral da relatividade, aparece ainda mais notável em nível subatômico. Aqui, as idéias da teoria clássica do campo são combinadas com as da teoria quântica, de modo a descrever as interações entre as partículas subatômicas. Uma combinação desse tipo ainda não se tornou possível para a interação gravitacional em razão da complexidade matemática da teoria einsteiniana da gravidade; contudo, a outra teoria clássica do campo, a Eletrodinâmica, foi fundida à teoria quântica, na chamada teoria “eletrodinâmica quântica” que descreve todas as interações eletromagnéticas entre as partículas subatômicas. Essa teoria incorpora tanto a teoria quântica quanto a da relatividade. Foi o primeiro modelo “quântico-relativístico” da Física moderna, sendo até hoje o mais bem-sucedido de todos. A surpreendente nova característica da Eletrodinâmica quântica deriva da combinação de dois conceitos, ou seja, o do campo eletromagnético e o dos fótons como manifestações, sob a forma de partículas, das ondas eletromagnéticas. Uma vez que os fótons também são ondas eletromagnéticas, e uma vez que essas ondas são campos vibratórios, os fótons devem ser manifestações de campos eletromagnéticos. Resulta dai o conceito de um “campo quantizado”, isto é, de um campo que pode assumir a forma de quanta ou de partículas. Trata-se, de fato, de um conceito inteiramente novo que foi ampliado de modo a descrever todas as partículas subatômicas e suas interações, sendo que cada tipo de partícula corresponde a um campo diferente. Nessas “teorias quânticas dos campos”, o contraste clássico entre as partículas sólidas e o espaço circunvizinho é completamente superado. 0 campo quantizado é concebido como entidade física fundamental, um meio continuo que está presente em todos os pontos do espaço. As partículas não passam de condensações locais do campo, concentrações de energia que vem e vão, perdendo dessa forma seu caráter individual e se dissolvendo no campo subjacente. Nas palavras de Albert Einstein:

Podemos então considerar a matéria como constituída por regiões do espaço nas quais o campo é extremamente intenso”.[…]

Não há lugar nesse novo tipo de Física para campo e matéria, pois o campo é a única realidade.

A concepção de fenômenos e coisas físicas como manifestações transitórias de uma entidade fundamental subjacente não é apenas um elemento básico da teoria quântica dos campos, mas é também um elemento básico da visão oriental do mundo. A semelhança de Einstein, os místicos orientais consideram essa entidade subjacente como a única realidade: todas as suas manifestações fenomênicas são vistas como transitórias e ilusórias. Essa realidade do místico oriental não pode ser identificada com o campo quantizado do físico, pois é vista como a essência de todos os fenômenos deste mundo e, conseqüentemente, está situada além de todos os conceitos e idéias. 0 campo quantizado, por outro lado, é um conceito bem definido que responde apenas por alguns dos fenômenos físicos. Não obstante, a intuição implícita na interpretação que o físico faz do mundo subatômico, em termos do campo quantizado é estreitamente paralela a do místico oriental que interpreta sua experiência do mundo em termos de uma realidade subjacente última. Posteriormente ao aparecimento do conceito de campo, os físicos tentaram unificar os diversos campos num único campo fundamental que incorporaria todos os fenômenos físicos. Einstein, em particular, passou os últimos anos de sua vida na busca desse campo unificado. O Brahman dos hindus, a semelhança do Dharmakaya dos budistas e do Tao dos taoistas, pode talvez ser encarado como o campo unificado fundamental do qual emergem não apenas os fenômenos estudados na Física como também todos os outros fenômenos. Na visão oriental, a realidade subjacente a todos os fenômenos está além de todas as formas e desafia qualquer descrição e especificação. Por isso freqüentemente se diz que ele é sem forma, vazio ou vácuo. Mas essa vacuidade não deve ser encarada como o simples nada. Ao contrario, ela é a essência de todas as formas e a fonte de toda a vida. Nas palavras dos Upanishads, Brahman é vida. Brahman é alegria. Brahman é o vazio […]

Alegria, na verdade, é o mesmo que o Vazio.

O Vazio, na verdade, é o mesmo que alegria.

Os budistas expressam a mesma idéia ao afirmarem que a realidade última – Sunyata (“Vazio” ou “Vacuidade”) – é um Vazio vivo que gera todas as formas do mundo dos fenômenos. Os taoistas conferem semelhante criatividade, infinita e eterna ao Tao e, uma vez mais, chamam-na de vazio. “O Tao do Céu é vazio e sem forma”, afirma o Kuan Tsé. Lao Tsé utiliza várias metáforas para ilustrar esse vazio, comparando o Tao a um vale vazio ou a um vaso perenemente vazio e que possui o potencial de conter uma infinidade de coisas. Apesar de lançar mão de termos como vazio e vácuo, os sábios orientais deixam bem claro que não se referem ao vazio usual quando falam acerca de Brahman, de Sunyata ou de Tao; ao contrario, referem-se a um Vazio que possui um potencial criativo infinito. Assim, o Vazio dos místicos orientais pode ser facilmente comparado ao campo quântico da Física subatômica. A semelhança deste, aquele origina uma variedade infinita de formas que mantém e, eventualmente, reabsorve. Conforme expressam os Upanishads:

 “Tranqüilo, deixe que alguém o adore

Como aquilo de onde veio,

Como aquilo no qual se dissolverá,

Como aquilo no qual respira”.

As manifestações fenomênicas do Vazio místico, a semelhança das partículas sub-atômicas, não são estáticas e permanentes, mas dinâmicas e transitórias, surgindo e desaparecendo numa dança incessante de movimento e energia. A semelhança do mundo subatômico do físico, o mundo fenomênico do místico oriental é um mundo de samsara, de nascimento e morte contínuos. Por serem manifestações transitórias do Vácuo, as coisas neste mundo não possuem qualquer identidade fundamental. Esse ponto é enfatizado particularmente na filosofia budista que nega a existência de qualquer substancia material {Prajna Paramita} e igualmente sustenta que a idéia de um Si-mesmo constante e que passa por experiências sucessivas é uma ilusão. Os budistas comparam com freqüência essa ilusão de uma substância material e de um Si-mesmo individual ao fenômeno de uma onda de água, no qual os movimentos de ascensão e queda das partículas da água levam-nos a acreditar que um “pedaço” de água se move sobre a superfície. É interessante observar que os físicos utilizaram a mesma analogia no contexto da teoria de campo para indicar a ilusão de uma substância material criada por uma partícula em movimento. De acordo com Hermann Weyl:

“Segundo a teoria [de campo da matéria], uma partícula material – por exemplo, um elétron – é apenas um pequeno domínio do campo elétrico dentro do qual a intensidade do campo assume valores extremamente elevados, indicando que uma energia de campo comparativamente elevada acha-se concentrada num espaço bastante pequeno. Um tal nó de energia, que de forma alguma está claramente delineado contra o campo restante, propaga-se através do espaço vazio como uma onda de água através da superfície de um lago. Não existe ‘algo’ que seja uma substância única da qual o elétron se compõe sempre”.

Na filosofia chinesa, a idéia de campo não está apenas implícita na noção do Tao como algo vazio e sem forma e, contudo gerador de todas as formas, mas é igualmente expressa, de maneira explicita, no conceito de ch’i. Esse termo desempenhou um papel importante em quase todas as escolas chinesas de filosofia natural, tornando-se particularmente importante no neoconfucionismo, a escola que tentou chegar a uma síntese do Confucionismo, do Budismo e do Taoismo. A palavra ch’i significa, literalmente, “gás” ou “éter” e era utilizada na China antiga para denotar o sopro vital ou a energia que anima o cosmos. No corpo humano, os “caminhos do ch’i constituem a base da medicina tradicional chinesa, 0 objetivo da acupuntura consiste em estimular o fluxo do ch’i através desses canais”.

O fluxo do ch’i constitui igualmente a base dos movimentos fluentes do T’ai Chi Ch’uan, a dança taoista do guerreiro. […]

As teorias de campo da física moderna forçam-nos a abandonar a distinção clássica entre partículas materiais e o vazio. A teoria de campo da gravidade, de Einstein, e a teoria quântica dos campos mostram que as partículas não podem ser separadas do espaço que as circunda. Por outro lado, determinam a estrutura daquele espaço, ao passo que não podem ser encaradas como entidades isoladas mas, em vez disso, como condensações de um campo contínuo que se acha presente por todo o espaço. Na teoria quântica dos campos, o campo é visto como a base de todas as partículas e de suas interações mútuas.

O campo existe sempre e por toda parte; jamais pode ser removido. É o portador de todos os fenômenos materiais. É o “vazio” a partir do qual o próton cria os mesons “pi”. A existência e o desaparecimento das partículas não passam de formas de movimento do campo.

A distinção entre matéria e espaço vazio teve finalmente de ser abandonada quando se tornou evidente que as partículas virtuais podem passar a existir espontaneamente a partir do vácuo e desaparecer novamente neste ultimo, sem que esteja presente qualquer nucleon ou outra partícula que interaja fortemente. A seguir aparece um “diagrama do vazio” para esse processo: três partículas – um próton (p), um antipróton (-p) e um pion (π) – são formados a partir do nada e desaparecem novamente no vazio. De acordo com a teoria de campo, eventos desse tipo ocorrem a todo instante. O vazio está longe de ser vazio. Ao contrário, contém um numero ilimitado de partículas que passam a existir e desaparecem ininterruptamente. Eis aqui o mais estreito paralelo entre o Vácuo do misticismo oriental e a Física moderna. Assim como o vácuo oriental, o “vazio físico” – como é denominado na teoria de campo – não é um estado de um simples nada, mas contém a potencialidade para todas as formas do mundo das partículas. Essas formas, por sua vez, não são entidades físicas independentes, mas simplesmente, manifestações transitórias do Vazio subjacente. Como diz o Sutra, “Forma é vazio, e vazio, na verdade, é forma”.

A relação entre as partículas virtuais e o vazio é uma relação essencialmente dinâmica: na verdade, o vazio é um “Vazio vivo” e que pulsa num ritmo sem fim de criação e destruição. A descoberta da qualidade dinâmica do vácuo é vista por muitos físicos como uma das descobertas mais importantes da Física moderna. De seu papel de recipiente vazio dos fenômenos físicos, o vácuo emergiu como uma quantidade dinâmica da maior importância. Os resultados da Física moderna parecem, pois, confirmar as palavras do sábio chinês Chuang Tsé:

“Quando se sabe  que o Grande Vazio está pleno de ch’i, compreende-se que não existe coisa alguma que seja o nada”.

 “O Tao da Física”- Fritjof Capra – Ed. Cultrix

 Na física quântica, o vazio é um formidável reservatório de energia, que cria e aniquila partículas sem parar. Nada menos que 70% da energia do universo estaria associada a esse vazio, enquanto a matéria propriamente dita contribuiria com apenas 30%. “Não temos ainda uma Física suficientemente sofisticada para lidar com o vácuo. Isso significa que 70% do conteúdo do universo jamais foi explorado pela ciência”.

Mas o espanto suscitado pela nova descoberta não termina ai. O conteúdo de energia do vazio pode ser até 10 elevado a 120 vezes maior do que o necessário para provocar a aceleração do universo. Essa cifra fantástica corresponde ao algarismo 1 seguido de 120 zeros: um número simplesmente inimaginável. “Investigar a natureza desse vácuo será o grande desafio científico das próximas décadas” 1

Revista Galileu n97 pag.28

 

ROMPENDO A REDE DE NASCIMENTO E MORTE

A mente cria a forma da realidade

Você se lembra de nossa conversa a respeito dos conceitos de espaço e tempo no Avatamsaka Sutra e na teoria da relatividade?  Tão logo abandonamos os conceitos de espaço absoluto e tempo absoluto, muitos conceitos correlatos, que durante muito tempo formaram nossos padrões de pensamentos, começam a desmoronar. Os teóricos do bootstrap reconhecem que todas as partículas atômicas, como os elétrons, não podem existir independentemente umas das outras. Existem efetivamente “interligações” entre as partículas, e essas “partículas” são por sua vez interligações” entre outras partículas. Nenhuma partícula possui natureza independente. Essa noção está muito próxima da idéia de interdependência, interexistência e interpenetração.

A teoria da relatividade exerceu forte influência em nossa interpretação das partículas nucleares. Na relatividade, a massa e a energia são a mesma coisa, do mesmo modo como descobrimos que a chuva pode ser ao mesmo tempo sujeito e verbo de uma frase.  Quando sabemos que a massa é apenas uma forma de energia, compreendemos que as “interligações” entre as partículas são realidades dinâmicas do espaço/tempo quadridimensional. Para os cientistas de hoje, uma partícula nuclear, exatamente como “um grão de poeira” ou “a ponta de um fio de cabelo” no Avatamsaka Sutra, combina o espaço e o tempo.  Essas partículas podem ser consideradas um “grão” de tempo, assim como o Avatamsaka Sutra diz que o momento mais curto possível (ksana) contém não apenas o passado, o presente e o futuro, como também a matéria e o espaço. Uma partícula não pode mais ser considerada um objeto tridimensional (como uma laje de mármore ou um grão de poeira) situado no espaço.  Ela tornou-se mais abstrata para nossa mente. Os elétrons, por exemplo, podem ser chamados de “corpos dinâmicos quadridimensionais no espaço-tempo” ou “ondas de probabilidade”.  Precisamos ter em mente que palavras como “partícula”, “corpo” e “onda” não têm mais o mesmo significado que na linguagem comum. A física contemporânea tem lutado para transcender o mundo dos conceitos e, como resultado, as partículas são agora encaradas como quantidades matemáticas abstratas (do ponto de vista do conhecimento discriminativo ordinário).

Alguns cientistas proclamam que as propriedades das partículas nucleares nada mais são do que criações da mente deles, que na verdade as partículas não possuem propriedades independentes da mente daqueles que as observam. Isso implica que, no mundo das partículas, a mente que percebe a realidade de fato a cria.

Observador eparticipante

Para os físicos de hoje, o objeto da mente e a mente em si não podem ser separados.  Os cientistas não podem mais observar nada com total objetividade.  A mente deles não pode ser separada dos objetos.  John Wheeler sugeriu que substituamos o termo “observador” pelo termo “participante”.  Para que haja um “observador”, é preciso que exista uma rígida fronteira entre sujeito e objeto, mas no caso de um “participante” a distinção entre sujeito e objeto torna-se indistinta e até mesmo desaparece, e a experiência direta passa a ser possível. Essa noção de um participante/observador aproxima-se bastante da prática da meditação. Quando meditamos sobre nosso corpo, de acordo com o Satipatthana Sutta meditamos sobre “o corpo dentro do corpo”. Isto significa que não consideramos nosso corpo como um objeto separado, independente da nossa mente que o está observando.  Meditar não é medir o objeto da mente ou refletir sobre ele, e sim percebê-lo diretamente. Isto se chama “percepção sem discriminação” (nirvikalpajnana).

O hábito de distinguir a mente do seu objeto está tão profundamente entranhado em nós que somente aos poucos, através da meditação, conseguimos eliminá-lo.  O Satípatthana Sutta apresenta quatro objetos de meditação: o corpo, os sentimentos, a mente e os objetos da mente.  Esse tipo de meditação foi praticado pelos discípulos do Buda enquanto ele estava vivo. O objetivo dessa classificação da realidade é nos ajudar a meditar, e não a analisar as coisas. No Sutta, todos os fenômenos materiais são considerados “objetos da mente”. É claro que podemos observar que o corpo, os sentimentos e até mesmo a mente também podem ser classificados como “objetos da mente”.  O fato de todos os fenômenos, inclusive os materiais, serem considerados “objetos da mente” no Sutta demonstra claramente que desde os tempos mais antigos o Budismo se opunha à distinção entre a mente e seus objetos.

As montanhas são novamente montanhas, os rios são novamente rios

Os físicos que se dedicam ao estudo da partícula elementar, quando voltam para casa após um dia de trabalho no laboratório, frequentemente têm a sensação de que os objetos comuns, como uma cadeira ou uma fruta, perderam a substancialidade que pareciam ter anteriormente. Depois de penetrar no mundo das partículas elementares, tais cientistas não conseguem encontrar nada essencial no mundo da matéria, exceto sua própria mente. Alfred Kastler declarou: “A matéria só pode ser apreciada a partir de seus dois aspectos complementares, que são ondas e partículas.  Os objetos ou coisas que sempre foram considerados componentes da natureza precisam ser repudiados22”. Embora a cadeira ou a laranja possa não ser mais matéria para nós, mesmo assim precisamos nos sentar na cadeira e chupar a laranja. Somos constituídos da mesma essência delas, mesmo que isto seja apenas uma forma matemática que nós mesmos podemos inventar. Os meditadores compreendem que todos os fenômenos se interpenetram e interexistem com todos os outros fenômenos, de modo que na vida do dia-a-dia eles encaram uma cadeira ou uma laranja de uma maneira diferente da maioria das pessoas.  Quando eles olham para as montanhas e os rios, eles percebem que “os rios não são mais rios e as montanhas não são mais montanhas”.  As montanhas “entraram” nos rios, e os rios “entraram” nas montanhas (interpenetração).  Não obstante, quando querem nadar, eles têm de mergulhar no rio, e não subir a montanha.  Quando voltam à vida do dia-a-dia, “as montanhas são novamente montanhas, e os rios são novamente rios”.

 Nem forma nem vazio

O cientista que compreende a natureza da interdependência entre as partículas provavelmente será influenciado pela maneira com a qual percebe a realidade até mesmo na vida cotidiana.  Por causa disso, também pode ocorrer algum tipo de transformação em sua vida espiritual. Os meditadores que compreendem a interpenetração e a interexistência das coisas também sofrem mudança em si mesmos. Essa transformação é a meta fundamental da meditação. É por isso que a “consciência de ser” é mantida durante todo o dia e não apenas durante os períodos de meditação. O meditador está consciente quando caminha, fica de pé, se deita e assim por diante. Alguns cientistas também fazem isso, refletindo o dia inteiro sobre o tema que estão pesquisando, através de todo seu ser, mesmo enquanto comem ou tomam banho.

A noção de inter-origem (paratantra) está muito próxima da realidade vivente. Ela destrói os conceitos dualistas de um/muitos, dentro/fora, tempo/espaço, mente/matéria, e assim por diante, que a mente usa para limitar, dividir e moldar a realidade.  A noção de inter-origem pode ser usada não apenas para destruir o hábito de retalhar a realidade, mas também para ocasionar uma experiência direta da realidade.  Como ferramenta, contudo, ela não deve ser considerada em si mesma uma forma de realidade.

Paratantra é a natureza da realidade vivente, a ausência de um eu essencial [existência inerente]. Assim como o triângulo só existe porque três linhas se cruzam, também não podemos afirmar que qualquer coisa existe em si mesma. Por não possuírem uma identidade independente, todos os fenômenos são descritos como vazios (shunya).  Isso não significa que os fenômenos estejam ausentes, mas apenas que são destituídos de um eu essencial, ou de uma identidade permanente independente de outros fenômenos.  Da mesma maneira, na física do bootstrap, a palavra “partículas” não significa pontos tridimensionais que existem independentemente uns dos outros.

A palavra “vazio” nesse caso é diferente do termo habitual.  Ela transcende os termos usuais de vazio e forma.  Ser vazio não significa ser não-existente, e sim destituído de uma identidade permanente. Para evitar confusão, os estudiosos budistas com freqüência usam a expressão “verdadeiro vazio” para referir-se a esse tipo de vazio. O mestre zen Hue Sinh, que viveu no séc. XI durante a dinastia Ly, declarou que não podemos usar as palavras vazio e forma para descrever objetos; porque a realidade está além desses dois conceitos:

Os dharmas são idênticos aos não-dharmas,

Nem existindo nem não existindo.

Aquele que compreende totalmente esta idéia

Percebe que todos os seres são Buda.

 

A flor Udumbara ainda está florescendo

Existe uma prática denominada “Meditação sobre o Verdadeiro Vazio”, na qual o meditador abandona sua maneira habitual de pensar sobre o ser e o não-ser, compreendendo que esses conceitos eram formados pela percepção incorreta das coisas como independentes e permanentes. Quando uma macieira produz flores, não vemos ainda as maçãs, de modo que poderíamos dizer: “Existem flores, mas não existem maçãs nesta árvore”. Fazemos essa afirmação porque não percebemos a presença latente das maças nas flores.  O tempo aos poucos revelará as maçãs.

Quando contemplamos uma cadeira, vemos a madeira, mas deixamos de observar a árvore, a floresta, o carpinteiro, ou nossa própria mente. Quando meditamos sobre ela, conseguimos ver na cadeira todo o universo em todas as suas relações entrelaçadas e interdependentes. A presença da madeira revela a presença da árvore. A presença da folha revela a presença do sol.  A presença da flor da maçã revela a presença da fruta. Os meditadores conseguem enxergar o um nos muitos, e os muitos no um.  Mesmo antes de verem a cadeira, eles são capazes de perceber sua presença no coração da realidade vivente. A cadeira não é separada. Ela existe apenas em suas relações interdependentes com tudo o mais no universo. Ela existe porque todas as outras coisas existem. Se não existisse, as outras coisas também não existiriam.

Cada vez que usamos a palavra “cadeira” ou que o conceito “cadeira” se forma em nossa mente, a realidade é dividida em dois. Existe a “cadeira” e existe tudo o que é “não-cadeira”. Esse tipo de separação é ao mesmo tempo violenta e absurda.  A espada da conceituação funciona dessa maneira porque não compreendemos que a cadeira é feita totalmente de elementos não-cadeira.  Uma vez que todos os elementos não-cadeira estão presentes na cadeira, como podemos separá-los? Um indivíduo desperto vê vividamente os elementos não-cadeira ao olhar para a cadeira, e compreende que a cadeira não tem limites, não tem início nem fim.

Quando criança, talvez você tenha brincado com um caleidoscópio. quantas imagens maravilhosas são formadas pelos fragmentos de vidro colorido colocados entre duas lentes e três espelhos.  Cada vez que você mexe levemente o dedo, surge uma imagem nova e igualmente bela.  Poderíamos dizer que cada imagem tem um início e um fim, mas sabemos que a verdadeira natureza dela, as lentes e o vidro colorido, não surge nem desaparece com cada nova configuração.  Esses milhares ou milhões de padrões não estão sujeitos à noção de “início e fim”.  Da mesma maneira, seguimos nossa respiração e meditamos sobre a natureza sem início e sem fim de nós mesmos e do mundo. Ao fazê-lo, podemos perceber que a liberação do nascimento e morte já está ao nosso alcance.

Negar a existência de uma cadeira é negar a presença de todo o universo. Uma cadeira que existe não pode se tornar não-existente, mesmo que a rachemos em pedacinhos ou a queimemos. Se conseguíssemos destruir uma única cadeira, poderíamos destruir todo o universo. O conceito de “início e fim” está estreitamente ligado ao conceito de “existir e não-existir”. Por exemplo, a partir de que momento no tempo podemos dizer que uma bicicleta específica passou a existir e a partir de que momento ela deixou de existir?  Se dissermos que ela começou a existir no momento em que a última peça foi montada, isto significa que não podemos dizer: “Esta bicicleta precisa apenas de uma última peça”, no momento anterior? E quando ela está quebrada e não podemos andar nela, por que dizemos que ela é “uma bicicleta quebrada”?  Se meditarmos a respeito do momento em que a bicicleta existe e sobre o momento em que ela não existe maís, perceberemos que a bicicleta não pode ser colocada nas categorias “existir e não-existir” ou “início e fim”.

O poeta indiano Rabindranath Tagore existiu ou não antes de nascer? Se você aceitar o princípio da “interpenetração” do Avatamsaka Sutra ou o princípio da “interexistência” da física bootstrap, você não poderá dizer que já houve um tempo em que “Tagore não existiu“, mesmo na época antes do nascimento ou depois da morte dele. Se Tagore não existe, então todo o universo não pode existir, e nem eu nem você existimos. Não é por causa do “nascimento” dele que Tagore existe, e tampouco por causa da “morte” dele que ele não existe.

Num final de tarde eu estava no pico do Abutre no estado indiano de Bihar quando vi um belo pôr-do-sol e, de repente, percebi que Shakyamuni Buda ainda estava sentado no local:

O grande mendigo de outrora

ainda se encontra no pico do Abutre

contemplando o belo pôr-do-sol.

Gautama, como é estranho!

Quem disse que a flor Udumbara

floresce apenas a cada 3.000 anos?

O som da maré alta, você não pode

deixar de escutar se tiver o ouvido atento.

Já ouvi muitos amigos se lamentarem por não ter vivido na época de Buda.  Creio que mesmo que eles cruzassem por ele na rua, não o teriam reconhecido.  Não apenas Tagore e Shakyamuni Buda, mas sim todos nós não temos início nem fim.  Estou aqui porque você está aí.  Se um de nós não existir, ninguém mais pode existir.  A realidade não pode ser limitada por conceitos como existir, não-existir, nascimento e morte.  A expressão “verdadeiro vazio” pode ser usada para descrever a realidade e destruir todas as idéias que nos aprisionam e nos dividem, e que criam artificialmente uma realidade.  Sem uma mente livre de idéias preconcebidas, não podemos penetrar a realidade.  Os cientistas estão começando a perceber que não podem usar a linguagem comum para descrever insights não conceituais.  A linguagem científica está começando a ter a natureza simbólica da poesia.  Hoje em dia, palavras como “charme” e “cor” estão sendo usadas para descrever propriedades de partículas que não possuem uma contraparte conceitual na “macro-esfera”.  Algum dia a realidade se revelará além de todas as conceitualizações e medições.

 

O Tathagata não chega nem vai embora

Esta realidade não conceitual, ou verdadeiro vazio, também é chamada de “assim é” (bhutatathata). Ela não pode ser concebida ou descrita atravês de palavras, devendo ser diretamente experimentada. Suponha que haja uma tangerina sobre a mesa e alguém lhe pergunte: “Qual o gosto dessa fruta?”

Em vez de responder, você precisa tirar um gomo da tangerina e oferecè-lo à pessoa que fez à pergunta para que ela o prove. Ao fazer isso, você permite que ela penetre a qualidade “assim é” da tangerina sem nenhuma descrição verbal ou conceitual.

Para lembrar a seus discípulos da natureza incondicionada, sem início e sem fim da realidade, Buda lhes pediu que se dirigissem a ele como o Tathagata.  Não se trata de um título honorífico. Tathagata significa “aquele que vem assim” ou “aquele que vai assim”.  Significa que ele surge do assim é, permanece no assim é e, algum dia, voltará ao assim é. Quem ou o que não surge do assim é? Você e eu, uma lagarta, um grão de poeira, tudo surge do assim é, tudo permanece no assim é, e um dia voltará ao assim é. Na verdade, as palavras “surge do”, “permanece no”, e “voltará ao” não têm um significado real. Nunca podemos abandonar o assim é. No Anuradha Sutra, o Buda respondeu a uma pergunta que estava perturbando muitos monges: “O que acontece ao Tathagata depois da morte?  Ele continua a existir?  Ele deixa de existir?  Ele continua ao mesmo tempo a existir e a não existir?  Ele não continua nem deixa de existir?”

O Buda perguntou a Anuradha: “O que você acha?  O Tathagata pode ser reconhecido através da forma?”

“Não, mestre”.

“O Tathagata pode ser encontrado fora da forma?”

“Não, mestre”.

“O Tathagata pode ser reconhecido por meio do sentimento, da percepção, das criações mentais ou da consciência?”

“Não, mestre”.

“Anuradha, se você não consegue achar o Tathagata nem mesmo nesta vida, por que você quer resolver o problema de se ele continuará ou deixará de existir, se continuará ao mesmo tempo a existir ou deixar de existir, ou se nem continuará nem deixará de existir depois da morte?”23

Robert Oppenheimer, físico conhecido como o pai da primeira bomba atômica, teve a oportunidade de ler esta seção do Anuradha Sutra. Ele a interpretou baseado nas observações que fez sobre as partículas, que não podem ser limitadas por conceitos de espaço, tempo, existência ou não-existência.  Ele escreveu:

Para aquelas que parecerem ser as mais simples perguntas, tenderemos a não dar resposta ou dar uma resposta que à primeira vista fará lembrar mais um estranho catecismo do que declarações diretas da ciência física.  Se perguntarmos, por exemplo, se a posição do elétron permanece a mesma, precisamos responder “não”; se perguntarmos se a posição do elétron muda com o tempo, precisamos responder “não”; se perguntarmos se o elétron está em repouso, precisamos responder “não”; se perguntarmos se ele está em movimento, precisamos responder “não”.24

Como você pode ver, a linguagem da ciência já começou a aproximar-se da linguagem do budismo.  Depois de ler a citação acima do Anuradha Sutra, Oppenheimer declarou que até este século os cientistas ainda não haviam sido capazes de compreender as respostas que Buda dera 2.500 anos antes.

 

A rede de nascimento e morte pode ser despedaçada

Uma outra meditação pode ser usada em lugar da do verdadeiro vazio.  Ela se chama meditação sobre a qualidade milagrosa da existência. “Existência’ significa estar no presente. “A qualidade milagrosa da existência” significa ter consciência de que o universo está contido em cada coisa, e que o universo não poderia existir se não contivesse cada coisa. Essa consciência da interligação, interpenetração e interexistência faz com que seja impossível dizermos que algo “é” ou “não-é”, de modo que a chamamos de “existência milagrosa”.

Embora Oppenheimer tenha respondido        “não” quatro vezes às perguntas a respeito da natureza dos elétrons, ele não quis dizer que os elétrons não existem.  Embora o Buda tenha dito: “Você não consegue achar o Tathagata nem mesmo nesta vida”, ele não quis dizer que o Tathagata não existe. O Grande Prajna Sutra usa a palavra “não-vazio” (asunya) para descrever esse estado. “Não vazio” é o mesmo que “a qualidade milagrosa da existência”. “Verdadeiro vazio” é “a qualidade milagrosa da existência” podem evitar que caiamos na armadilha de estabelecer uma distinção entre a existência e a não-existência.

Tanto os elétrons quanto o Tathagata estão além dos conceitos de existência e não-existência. A natureza do verdadeiro vazio e da qualidade milagrosa da existência dos elétrons e do Tathagata nos salvam das armadilhas da existência e da não-existência e nos conduzem diretamente ao mundo da não-conceituação.  Como podemos praticar a meditação sobre a qualidade milagrosa da existência?  Qualquer pessoa que compreenda a teoria da relatividade sabe que o espaço está intimamente relacionado tanto com o tempo quanto com a matéria. Para essas pessoas, o espaço tem um significado mais amplo do que para aquelas que ainda acreditam que o espaço existe independentemente do tempo e da matéria. Quando contemplamos uma abelha, talvez queiramos vê-Ia primeiro através dos olhos de um físico que compreenda a relatividade, e depois ir inclusive além dessa visão e enxergar nela o verdadeiro vazio e a qualidade milagrosa da existência. Se você tentar fazer isso regularmente, com todo o seu ser, estou certo de que conseguirá se libertar do emaranhamento da rede de nascimento e morte. Nos círculos zen, o problema do nascimento e morte sempre foi considerado extremamente premente. O mestre zen Hakuin desenhou bem grande o caracter que representa a morte e depois acrescentou a seguinte frase, em pinceladas menores: “Quem conseguir enxergar as profundezas desta palavra é um verdadeiro herói”.25

Eu costumava achar que libertar-me do nascimento e da morte era uma meta longínqua. Quando lecionei em Saigon, na Universidade Budista Van Hanh, contemplei as estátuas de Arahats descarnados, e imaginei que devia ser necessário exaurir nossas forças dessa maneira para diminuir nossos desejos, até que fôssemos tomados pela completa exaustão e compreendêssemos essa liberação. Mais tarde, porém, quando praticava em Phuong Boi, no Vietnã central, percebi que a libertação do nascimento e morte não é um projeto abstrato ou de longo prazo. O nascimento e a morte são apenas conceitos. Livrarmo-nos desses conceitos significa livrarmo-nos do nascimento e morte. É perfeitamente possível.

Mas a libertação do nascimento e morte não pode acontecer apenas em função do entendimento intelectual.  Quando percebermos a natureza interdependente de tudo no universo, quando compreendermos o significado do verdadeiro vazio e da qualidade milagrosa da existência, teremos plantado as sementes da libertação no campo da nossa consciência. Para que essas sementes cresçam, precisamos praticar a meditação. Através da prática da meditação, podemos nos tornar suficientemente fortes para abrir caminho através do conceito de nascimento e morte, que é na verdade apenas um dos inúmeros conceitos que criamos.

Um físico capaz de perceber a interpenetração e a interexistência das partículas elementares sem ultrapassar o próprio intelecto alcançou, do ponto de vista da liberação budista, apenas uma fachada decorativa. Alguém que estude o budismo sem praticar a meditação também acumulou o conhecimento como mera decoração. Temos o nosso destino em nossas mãos.  Temos a capacidade de praticar até que todos os conceitos sobre o nascimento e a morte, sobre a existência e a não-existência, sejam erradicados.

As imagens que ofereci – o sol, a laranja, a cadeira, a lagarta, a bicicleta, os elétrons e assim por diante – podem ser objetos que nos tragam uma experiência direta da realidade. Medite sobre o sol como seu segundo coração, o coração do seu “eu exterior”.  Medite sobre o sol em cada célula de seu corpo. Medite para ver o sol nas plantas, em cada pedaço nutritivo dos legumes e verduras que você ingere. Gradualmente, você verá “o corpo da realidade suprema” (Dharmakaya) e reconhecerá sua “verdadeira natureza”.  Então o nascimento e a morte não mais poderão tocá-lo, e você terá alcançado o sucesso.  Tuê Trung, um mestre vietnamita zen do séc.  XIV, escreveu:

Nascimento e morte,

Vocês têm me esmagado.

Agora vocês não mais podem me tocar.

Por favor, medite profundamente sobre essas duas frases até conseguir ver Tuê Trung em cada célula do seu corpo.

Uma folha pode nos conduzir diretamente

À  realidade não conceitual.

 Do livro,  O SOL MEU CORAÇÃO – da atenção à contemplação intuitiva –

Thich Nhat Hanh

  

FILOSOFIA

  

OS PRÉ-SOCRÁTICOS:

 ANAXIMANDRO

[ Cerca de 610-547 A.C. ] 1

O Ser originárioassim denominado está acima do vir-a-ser e, justamente por isso, garante a eternidade e o curso ininterrupto do vir-a-ser. Essa unidade última naquele “Indeterminado”, matriz de todas as coisas, por certo só pode ser designada negativamente pelo homem, como algo a que não pode ser dado nenhum predicado do mundo do vir-a-ser que aí está.

De onde as coisas têm seu nascimento, ali também devem ir ao fundo, segundo a necessidade; pois tem de pagar penitência e de serem julgadas, conforme a ordem do tempo”. Anaximandro considera todo o vir-a-ser como uma emancipação do Ser eterno, digna de castigo, como uma injustiça que deve ser espiada pelo sucumbir. Tudo que alguma vez veio a ser, também perece outra vez, quer pensemos na vida humana, ou na água, ou no quente e no frio; por toda parte, onde podem ser percebidas propriedades determinadas, podemos profetizar o sucumbir dessas  propriedades, de acordo com uma monstruosa prova experimental. Nunca, portanto, um ser que possui propriedades determinadas, e consiste nelas, pode ser origem e princípio das coisas; o que É verdadeiramente, conclui Anaximandro de Mileto [discípulo de Tales], não pode possuir propriedades determinadas, senão teria nascido, como todas as outras coisas, e teria de ir ao fundo. Para que o vir-a-ser não cesse, o “Ser originário tem de ser  indeterminado”,   “Ápeiron”  [Sem limite, infinito, ilimitado].

A imortalidade e eternidade do Ser Originário não está em sua infinitude e inexauribilidade [como comumente admitem os comentadores de Anaximandro], mas em ser destituído de qualidades determinadas, que o levam a sucumbir: e é por isso, também, que ele traz o nome de  “O Indeterminado”. [*]

HERÁCLITO

[Cerca de 540-470    A.C.]2

 Aristóteles diz que Heráclito afirma que é apenas o UM(1) que permanece; disto todo o resto é formado, modificado, transformado; que todo o resto fora deste Um flui, que nada é firme, que nada se demora; isto é, o verdadeiro é o devir, não o Ser – a determinação mais exata para este conteúdo universal é o devir. Heráclito diz: “Tudo é devir, este devir é o princípio . Isto está na expressão :”O ser é tão pouco como o não-ser; o devir é e também não é”.  As determinações absolutamente opostas estão ligadas numa unidade; nela temos o Ser e também o Não-Ser. Dela faz parte não apenas o surgir, mas também o desaparecer; ambos não são para si, mas são idênticos. É isto que Heráclito expressou com suas sentenças.  “O ser não é, por isso é o não-ser, e o não-ser é, por isso é o ser” ; isto é a verdade da identidade de ambos. Este espírito arrojado pronunciou pela primeira vez esta palavra profunda:  “O ser não é mais que  o não-ser”, nem menos; ou “ser e nada são o mesmo”. A essência é a mudança. Ele diz ainda: “Tudo flui, nada persiste, nem permanece o mesmo”. Ele compara as coisa como a corrente de um rio – que não se pode entrar duas vezes na mesma corrente” ; o rio corre e toca-se outra água. Seus sucessores dizem até que nele nem se pode mesmo entrar, pois que imediatamente se transforma; o que é, ao mesmo tempo já novamente não é. […]

 PARMÊNIDES DE ELÉIA

[cerca de 530-460 A.C.]3

Parmênides vê como Heráclito, o vir-a-ser e o não-permanecer universais, mas apenas pode interpretar um perecer de tal maneira que nele o não-ser precise ter uma culpa. Pois como podia o ser ter a culpa do perecer! Entretanto, o nascer precisa igualmente realizar-se pelo auxílio do não-ser: pois o ser está sempre, presente e não  poderia, por si mesmo, nascer nem explicar nenhum nascer. Assim, tanto o nascer como o perecer são produzidos pelas qualidades negativas. O fato de ter um conteúdo o que nasce e perder um conteúdo o que perece, pressupõe que as qualidades positivas – isto é, do ser – participem igualmente de ambos os processos: “Ao vir-a-ser é necessário tanto o ser quanto o não ser; se eles agem conjuntamente, então resulta um vir-a-ser”. […]

Parmênides examinava aquelas oposições cooperantes cujo desejo e ódio constituíam o mundo e o vir-a-ser, o ser e o não-ser, as qualidades positivas e negativas; e então ele se prendeu repentinamente, desconfiado, ao conceito de qualidade negativa, do não-ser. Algo que não é pode ser uma qualidade? Ou, interrogando no plano dos princípios: Algo que não é pode ser?  Mas a única forma do conhecimento que nos oferece imediatamente uma segurança incondicional e cuja negação iguala a loucura é a tautologia  A = A. Este mesmo conhecimento tautológico lhe dizia implacavelmente: “O ser que não é, não é! O que é, é!”. Repentinamente ele sentiu pesar sobre sua vida um monstruoso pecado lógico: ele sempre havia suposto sem escrúpulos que existiam qualidades negativas, não seres em geral, havia suposto que, formalmente expresso, A = ~A: o que somente a mais completa perversidade do pensamento poderia formular. Mas vendo as coisas de perto, como ele mesmo percebeu, a maioria dos homens julgava com a mesma perversidade; ele mesmo tinha apenas tomado parte no crime geral contra a lógica. Mas o mesmo momento que o acusa deste crime ilumina-o com a glória de uma descoberta: ele encontrou um princípio, a chave para o mistério universal, separado de toda ilusão humana; na firme e terrível mão da verdade tautológica sobre o ser, ele desce agora ao abismo das coisas.

No caminho ele encontra Heráclito: um encontro infeliz! Para ele, que tinha colocado tudo na mais rigorosa separação entre ser e não-ser, os jogos de antinomias de Heráclito tinham que ser profundamente odiosos; proposições como: “Nós simultaneamente somos e não somos…” “Ser e não-ser são e não são os mesmos”, proposições através das quais tudo que ele tinha destrinchado e esclarecido se tornaria novamente opaco e inexplicável, levaram-no ao furor. […]

A compreensão da massa, glorificada através dos jogos de antinomias e exaltada como o cume de todo o conhecimento, era para ele uma vivência dolorosa e ininteligível.

Ele mergulhava então no banho frio de suas terríveis abstrações. O que é verdadeiro precisa estar no presente eterno, dele não pode ser dito “ele era”, “ele será”. O ser não pode vir-a-ser: pois de que ele teria vindo? Isto não seria senão produzir-se a si mesmo. O mesmo acontece com o perecer; ele é igualmente impossível, como o vir-a-ser, como toda mutação, como todo aumento, como toda diminuição. É válida em geral a proposição: tudo do que pode ser dito “foi” ou “será”, não é. Do ser, entretanto, nunca pode ser dito “não é”. O ser é indivisível, pois onde está a segunda potência que devia dividi-lo? Ele é imóvel, pois para onde ele deveria movimentar-se? Ele não pode ser nem infinitamente grande nem infinitamente pequeno, pois ele é acabado e um infinito dado por acabado é uma contradição.

Assim limitado, acabado, imóvel, em equilíbrio, em todos os pontos igualmente perfeito como uma esfera, ele paira, mas não em um espaço, pois caso contrário este espaço seria um segundo ser. Mas não podem existir vários seres, pois para separá-los precisaria haver algo que não fosse um ser: o que “é uma suposição que se suprime a si mesma. Assim, existe apenas a Unidade eterna (atemporal)”.

Mas, se agora Parmênides voltava seu olhar ao mundo do vir-a-ser, cuja existência ele antes tinha procurado compreender através de combinações tão engenhosas, ele zangava-se com seus olhos, por verem o vir-a-ser e com seus ouvidos, por ouvi-lo. Seu imperativo agora era: “Não siga seus olhos estúpidos, não siga seu ouvido ruidoso ou a língua, mas examine tudo somente com a força do pensamento”. Com isso ele operava a primeira crítica do aparelho do conhecimento4, extremamente importante e funesta em suas conseqüências,  se bem que ainda muito insuficiente. Através disso ele repentinamente separou os sentidos e a capacidade de pensar abstrações, a razão, como se fossem duas faculdades inteiramente distintas5, desintegrou o próprio intelecto e animou aquela divisão completamente errônea entre corpo e mente que, especialmente desde Platão pesa sobre a filosofia como uma maldição. Todas as percepções dos sentidos pensa Parmênides, dão apenas ilusões; e sua ilusão fundamental é simular que o não-ser é, que o vir-a-ser tem um ser. Toda aquela multiplicidade e variedade do mundo conhecido pela experiência, a troca de suas qualidades, a ordenação de seus altos e baixos, foram postas de lado impiedosamente como uma ilusão e pura aparência[…]

Na filosofia de Parmênides preludia-se o tema da ontologia. A experiência não lhe apresentava em nenhuma parte um ser tal como ele pensava, mas, do fato que podia  pensá-lo, ele concluía que ele precisava existir: uma conclusão que repousa sobre o pressuposto de que nós temos um órgão do conhecimento que vai à essência das coisas e é independente da experiência. Segundo Parmênides, o elemento de nosso pensamento não está presente na intuição, mas é trazido de outra parte, de um mundo extra-sensível ao qual nós temos um acesso direto através do pensamento. […]

Mas agora a multiplicidade tem um ser verdadeiro todas as qualidades têm um ser verdadeiro, e o movimento não menos; e de cada momento deste mundo, mesmo se estes momentos arbitrariamente escolhidos fossem separados por milênios, precisaria ser dito: todas as essencialidades verdadeiras presentes neles existem simultaneamente sem exceção, imutáveis, irredutíveis, sem aumento sem diminuição. Um milênio mais tarde elas são as mesmas, nada se transformou. A despeito disto, se o mundo parece uma vez completamente diferente do que em outra, isto não é nenhuma ilusão, não é nenhuma aparência,  mas conseqüência do movimento eterno.

As palavras são apenas símbolos das relações das coisas entre si e conosco, elas não fundam em parte alguma a verdade absoluta ; e a palavra “ser” indica apenas a relação mais geral que liga todas as coisas, igualmente como a palavra “não-ser”. Mas se a própria existência das coisas não é demonstrável, então a relação das coisas entre si, o chamado “ser” e  “não-ser”, não pode ajudar a aproximarmo-nos nem um passo do país da verdade. Através de palavras e conceitos não chegamos jamais a penetrar a muralha das relações, nem mesmo a algum fabuloso fundamento originário das coisas; no tempo e na causalidade, não atingimos a nada que se assemelhe a uma veritas aeterna.

É incondicionalmente impossível para o sujeito, querer conhecer e ver algo acima de si mesmo; tão impossível que conhecimento e ser são, de todas as esferas, as mais contraditórias. Se Parmênides, na ingenuidade ignorante da crítica do intelecto de então, podia presumir chegar a um ser-em-si a partir de um conceito eternamente subjetivo, hoje, depois de Kant, é uma ignorância atrevida colocar aqui e ali, como tarefa da filosofia, particularmente junto aos teólogos mal instruídos que querem brincar de filósofos, “apreender o Absoluto com a consciência [o intelecto]”, aproximadamente na forma: “O  Absoluto já está presente, senão como ele poderia ser procurado?” – como se exprimiu Hegel. Ou na direção de Beneke: “O ser precisa estar dado de alguma maneira, ele precisa de alguma maneira estar acessível, sem o que nem mesmo o conceito do ser poderíamos ter”. O conceito de ser! Como se ele já não mostrasse na etimologia a mais pobre origem empírica. Pois, no fundo, esse quer dizer apenas respirar; e, quando o homem o emprega em relação a todas as outras coisas, ele transfere a convicção que ele mesmo respira e vive as coisas, através de uma metáfora, isto é, através de algo ilógico, compreendendo a existência destas coisas como um respirar, segundo a analogia humana.

[*] – É também a visão Taoista e Budista

[1] – Nietzsche – A FILOSOFIA DOS GREGOS #4. 

[2] – Hegel – Heráclito de Éfeso.

[3] – Niettzsche – Trechos da “A Filosofia na Época Trágica dos Gregos”

[4] – Budha há 2500 AC. Já havia feito

[5] – Budha diz que é além do pensar e do não-pensar

[6] – Por isso o Tao, o Budismo usam o termo Vazio em lugar do  ser no sentido de Parmênides.

 

 SER = NADA = VAZIO ?

Sobre o Nada a Metafísica se expressa desde a Antigüidade numa enunciação, sem dúvida multívoca: “ex nihilo nihil fit”, “do nada, nada vem”.

Ainda que, na discussão do enunciado, o nada, em si mesmo, nunca se torne problema, expressa ele, contudo, a partir do respectivo ponto de vista sobre o nada a concepção fundamental do ente que aqui é condutora. A Metafísica antiga concebe o Nada no sentido do não-ente, quer dizer, da matéria informe, que a si mesma não pode dar forma  de um ente com caráter de figura, que, desta maneira, oferece um aspecto [eidos]. Ente é a figura que se forma a si mesma, que enquanto tal se apresenta como imagem. Origem, justificação e limites desta concepção do Ser, são tão pouco discutidos como é o próprio Nada.

A dogmática cristã, pelo contrário, nega a verdade do enunciado; “ex nihilo nihil fit” e dá, com isso, uma significação modificada ao Nada, que então passa a significar a absoluta ausência do ente fora de Deus: “ex nihilo fit ens creatum”. O Nada torna-se o conceito oposto ao ente verdadeiro, ao “summum ens”, a Deus enquanto “ens increatum”. Também a explicação do Nada indica a concepção fundamental do ente. A discussão metafísica do ente mantém-se,  porém, ao mesmo  nível que a questão do Nada. As questões do Ser e do Nada enquanto tais não têm lugar. É por isso que nem mesmo preocupa a dificuldade de que, se Deus cria do Nada justamente precisa poder entrar em relação com o Nada.

A superficial recordação histórica mostra o Nada como conceito oposto ao ente verdadeiro, quer dizer, como sua negação. Se, porém o Nada de algum modo se torna problema, então esta contraposição não experimenta apenas uma determinação mais clara, mas então primeiramente se suscita a verdadeira questão metafísica a respeito do Ser do ente. O Nada não permanece o indeterminado oposto do ente, mas se desvela como pertencente ao Ser do ente. “O puro Ser e o puro Nada são, portanto, o mesmo”. Esta frase de Hegel enuncia algo certo. Ser e Nada co-pertencem, mas não porque ambos [vistos a partir da concepção hegeliana do pensamento] coincidem em sua indeterminação e imediaticidade, mas porque o Ser mesmo é finito em sua manifestação no ente, e somente se manifesta na transcendência do Ser-aí [homem] suspenso dentro do Nada. 7

 [7] – QUE É METAFÍSICA – M. Heidegger

 

 AS FILOSOFIAS DA EXISTÊNCIA

O problema metafísico complica-se com o fato de que quando reeditou o opúsculo: “Que é Metafísica?”, Heidegger ter acrescentado um pós-escrito onde diz que o Nada outra coisa não é senão o Ser; nós podemos definir o Nada como o que não é qualquer sendo [ente], e que é portanto o Ser.

Heidegger subentende que não podem existir duas coisas que tenham esta mesma propriedade. Por conseguinte, é necessário dizer que “O Nada é o próprio Ser”, na medida em que é superior a toda determinação8.

Que poderemos nós dizer deste Nada? Não podemos dizer que é, porque seria um julgamento contraditório. É necessário, portanto, criar uma palavra nova. O Nada tem uma certa atividade , essa atividade que Heidegger traduz pela expressão reduzir ao Nada. Somos forçados, dirá  ele, a criar palavras, ou a novamente empregar velhas palavras gastas e em desuso, para exprimir certas noções. Por exemplo, não podemos dizer que o mundo é: diremos que se mundaniza. Não podemos dizer que o tempo é: diremos que se temporaliza. Não podemos dizer que o Nada é: ele realiza uma  atividade de redução ao Nada, pela qual abala as coisas, as faz desmoronar, saem por si próprias do Nada. O Nada é, portanto o fundamento de todas as coisas9.  Existem certamente passos nas obras de Heidegger que indicam que é no Da-sein [ser-aí], que aparece essencialmente o Nada. Mas as duas idéias estão ligadas mais estreitamente para Sartre. “Sou eu próprio o Nada, é por mim mesmo que a idéia de Nada vem ao mundo. O mundo é plenitude, ou, melhor seria plenitude  se não houvesse o “para-sí”, ou se não houvesse o homem. O homem é uma espécie de vazio, uma duração profunda e viciada, é o homem que traz ao mundo, de qualquer modo, a ausência”10.

 [8,9,10] – AS FILOSOFIAS DA EXISTÊNCIA – Jean Wahl

 A analítica existencial do homem em sua cotidianidade torna-se o ponto de partida necessário para a discussão do problema do Ser, do mundo e de Deus. O problema do Nada é levantado a partir do homem. Não é, sem dúvida uma dimensão qualquer do homem que serve de ponto de partida, mas aquela em que ele se revela na sua existência, enquanto exercício da transcendência. Desta maneira o homem é considerado o lugar privilegiado para a manifestação do Ser, manifestação que se realiza pela experiência do Nada.

– 1:     O Nada, nada tem a ver com qualquer tipo de niilismo ou pessimismo. Isto só compreende quem se desprende da atitude do objetivismo e se eleva para a dimensão transcendental. É aí que se desdobra a fenomenologia heideggeriana, é aí que “O Nada é um nome para o Ser”.

– 2:     Também a angústia deve ser compreendida na dimensão transcendental. Ela não representa algum estado psicopatológico ou sentimento. É um acontecer no “Da-sein”,  Ser-aí [no homem] na dimensão transcendental em que se realiza a experiência do Ser com o Nada.

– 3:     O mesmo acontece com a lógica, Heidegger não lhe nega a validade. Mostra apenas que há dimensões, e uma delas é aquela em que se manifesta o Ser/Nada, em que se ultrapassa a lógica do entendimento. A verdade do Ser/Nada, ou a sua manifestação ou ainda  “A compreensão do Ser/ Nada ultrapassa a lógica dos entes”. 11 

                        [11] Nota do tradutor do  QUE É METAFÍSICA de M. Heidegger – Ernildo Stein

CONSCIÊNCIA = EXISTÊNCIA PURA = VAZIO

A consciência só se define a partir de si própria, que ela é toda leveza, toda translucidez, e que não se poderia encontrar nela nenhuma substância, por infinitesimal e imaterial que fosse, nem “habitante” algum. A consciência, que é assim vazio absoluto, expulsão para fora dela mesma de toda a realidade, inclusive a do sujeito, não pode se definir por nenhuma realidade, por nenhuma essência, nem substância alguma, ela é existência pura, o existente absoluto à força de inexistência12.

Dizer que a Consciência é só existência porque ela não pode ser abarcada na reflexão, porque ela é totalmente vazia e foge imediatamente para as coisas exteriores, remete-nos então à questão da existência. Que entender por existência quando definimos como existência pura esse vazio, esse “Nada que é a Consciência?” Vê-se desde o início que não se pode tratar a existência no sentido clássico, a saber, o fato de ser, de pertencer ao domínio da realidade por oposição ao das possibilidades puras, como o supomos quando dizemos de um objeto: “existe”.  Pois, dessa existência que é a consciência cumpre dizer, ao contrário, que ela é um Vazio ou um Nada. Para dizer a verdade, não há termo que traduza essa intuição primária já que a existência da consciência, ou a consciência-existência, se distingue de todas as essências que podem trazer um nome13.   “Ela é o que ela é”, isto é, ela é a razão pela qual há um mundo com objetos e valores e que não é nem esse mundo, nem esses objetos, nem esses valores. Sartre leva a redução husserliana a seu grau último já que o doador do sentido residual, que se pode chamar consciência ou existência, é igualmente Nada. Esse campo transcendental, consciência pura ou existência, [num sentido é um Nada] , já que todos os objetos físicos , psicofísicos, todas as verdades, todos os valores, estão fora dele, já que o meu próprio eu [psicológico] não faz parte dele. Mas esse NADA É TUDO já que é  consciência de todos esses objetos. A consciência transcendental é uma espontaneidade impessoal. Ela se determina para a existência a cada instante, sem que nada se possa conceber antes dela. Assim, cada instante de nossa vida consciente nos revela uma criação “ex  nihilo”. Não um arranjo novo, mas uma existência nova14.

O existencialismo muitas vezes vai tão longe na direção do destino humano que quase não parece ser mais uma filosofia européia, mas uma filosofia hindu, ou seja, um pensamento endereçado a ser exclusivamente, até com sua lógica, um instrumento de salvação 15.

“Se eu compreendo o Dr. Suzuki corretamente, eis o que tentei dizer em todos os meus escritos”, afirma o filósofo alemão Martin Heidegger, após ter lido toda a obra de D. T. Suzuki. E arremata: “A publicação em 1927 dos primeiros ensaios sobre o Budismo Zen de Suzuki, se apresenta às gerações futuras como acontecimento tão importante quanto a tradução em latim de Aristóteles no séc. XIII, por Guilherme de Moerbeck, ou a de Platão, no séc. XV, por Marsilio Ficino”. 16

  [12,13,14]- A TRANSCENDÊNCIA DO EU J. P. Sartre

  [15]-FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA OCIDENTAL – L. M. Bochenski

 [16]-MÍSTICA CRISTÃ E BUDISTA – Suzuki

   Compilado e organizado por: Flávio Capllonch Cardoso