Comunhão com a natureza

 

yni-yang

 

Comunhão com a natureza

Do livro: O PORTAL DA SABEDORIA de John Blofeld – [pgs. 56-60]

 

 

OBJETIVO

 Superar a ilusão individual de existir à parte através da percepção intuitiva direta de sua unidade essencial com a existência da natureza, aprender a viver em concordância harmoniosa com todas as obras da natu­reza, libertar a mente de pensamentos pretensiosos e, assim, alcançar o estado permanente de profunda tranqüilidade mental. […]

 

 PREPARAÇÃO

 A verdadeira sabedoria é, essencialmente, um produto do “ensino sem palavras”, que Lao-tzu tinha em tão alta consideração. Conseqüentemente, o progresso iogue dificilmente dependeu do aprendizado através de livros, que mais freqüentemente constitui um obstáculo do que um auxílio. Entre­tanto, os livros são necessários para indicar a direção para a qual a mente deve voltar-se. Creio que os aprendizes ocidentais do Caminho encontrarão nos escritos de Ralph Waldo Emerson uma ponte entre a sua própria herança de aprendizagem e a arguta percepção de Lao-tzu acerca do ser da natureza e da natureza do ser. […]

ACEITAR O BOM E O RUIM
A contemplação frequente do ambiente natural leva à amorosa apreciação da natureza em todos as suas manifestações. Ciclones, enchentes devastadoras, incêndios nas florestas, dilúvios gelados de granizo e pedras, embora freqüentemente sejam catastróficos, são tão necessários para o modelo da natureza como o sol quente, a chuva da primavera e a suavidade da brisa. Destruição e criação são os dois lados da mesma moeda. As florestas densas, por exemplo, pereceriam por falta de espaço para respirar se não fosse a ocorrência periódica de incêndios florestais; o solo útil perderia a sua capacidade de nutrir se fosse privado da matéria orgânica resultante da morte das plantas, e assim por diante. A natureza não se ocupa com indivíduos, mas com o bem-estar do todo. O ciclo anual envolve geração, crescimento, declínio e dissolução; o princípio yang domina durante metade do ano, sendo que gradualmente sucumbe ao início do yin. Para os taoístas, cada estação tem o seu encanto, cada uma é única, mas não superior ou inferior às outras. Uma grande intimidade com a natureza nos leva a apreciar tanto a sua ferocidade quanto a sua bondade e, desse modo, chegamos a uma compreensão clara da grandiosa forma do ser. Enquanto os jardineiros se afligem com as ervas daninhas e os viajantes com o vento e a neve, o adepto taoísta saúda tudo o que aparece; imerso profunda­mente no mistério do ser, ele vê em cada mudança uma manifestação mira­culosa das obras do sublime Tao. Como fonte e conteúdo de toda energia, mente e matéria, a própria “matéria-prima do ser”, o Tao cria e destrói em larga escala, ainda que nunca acrescente ou subtraia o que quer que seja do todo.

É bom caminhar pelos campos, pelas florestas e montanhas pensando sobre essas coisas, com os olhos bem abertos para o que quer que ocorra, pois isso auxilia a provocar um permanente estado mental cujas consequências são muito importantes para o adepto. Ao deparar-se com contrariedades em sua própria vida, ou ao ser assaltado por calamidades tão aparentes como – enfermidades, a aproximação da morte, perdas, privações e assim por diante, a sua serenidade permanecerá imperturbável, pois todas as manifestações do Tao lhe serão espiritualmente nutritivas. Pesar e ansiedade não têm lugar numa mente alimentada por lembretes diários sobre a verdade simples de que não pode haver o fácil sem o difícil, nem o alto sem o baixo. Será útil para a prática iogue se, durante seus passeios pelos ambien­tes naturais, o iniciado selecionar ilustrações concretas específicas desta verdade como objetos de meditação. Ao observar este ou aquele fenômeno, ele refletirá a respeito por alguns instantes e, depois, aplicará a lição, em primeiro lugar, à sua própria situação e, depois, por extensão, a um campo maior, que ele gradualmente expandirá com a finalidade de abranger todo o cosmos. Esse tipo de contemplação permite às vezes que se experimentem intuições profundas, não comunicáveis por palavras; além disso, poderá sobrevir um estado de êxtase.

PERCEBER O MEIO AMBIENTE COMO UMA EXTENSÃO DE SI MESMO

Diferentemente dos animais, o homem (especialmente o homem moderno com sua autoconsciência extremamente desenvolvida) sofre da ilusão de que existe separado de seu meio e das pessoas que este contém. Essa condição de existir à parte é um engano porque implica uma separação do Tao, o que é impossível. O método taoista de combate a essa sensação é o seguinte: o praticante escolhe alguma manifestação específica do eterno Inominável, como um salgueiro, por exemplo, e passa algum tempo por dia, durante as sucessivas estações, sentado à sua frente, absorto em contemplação. Procura penetrar-lhe o ser, sentir-se na condição da “salgueiridade” até que, como se o fosse, ele se transforma na árvore, experimentando realmente as sensações dela, tais como a seiva que sobe ou o verde que torna a brotar de seus ramos descobertos; suas reações ao sol, à chuva ou à neve; sua ânsia por alimentos da terra e do céu e a satisfação de sua fome mitigada. Progressivamente, enquanto os dias se sucedem e as estações mudam, o iniciado compreenderá aquele salgueiro (e, portanto, todos os fenômenos naturais) como uma extensão de seu próprio ser, outrora aparentemente confinado dentro de sua pele, mas agora não limitado nem mesmo pelo horizonte. Enquanto isto, o fantasma de seu ego diminuirá ou se esquivará, deixando sua antiga vítima em estado de regozijo pelo esplendor do ser ilimitado.

Mesmo as pessoas que ignoram totalmente o exercício da ioga, se tiverem a mente aberta para tal, podem perceber cada vez mais profundamente a beleza de cada estação do ano – o despertar da vida na primavera, a exuberância do verão, o esplendor do outono, o brilho das primeiras geadas seguido pela brancura brilhante da neve amontoada sobre restolhos, galhos, telhados, e os adoráveis desenhos das ramagens descobertas contra o céu de inverno. Mas, para o iogue, existem alegrias ainda maiores. Ele cessa de ser um espectador e torna-se parte da cena, como aquelas minúsculas figuras empoleiradas no meio de grandes extensões de pedras e montanhas que vemos nas pinturas taoistas. Contudo, ele não se sente uma parte insignificante da cena, pois o todo é misteriosamente percebido nele próprio e vice-versa.

LIBERTAR A MENTE DE PENSAMENTOS PERTURBADORES E ATINGIR A TRANQÜILIDADE INTERIOR

A contemplação absorta das belezas naturais e de seus variados aspec­tos leva facilmente ao apaziguamento de pensamentos perturbadores. A mente, elevando-se acima das preocupações insignificantes do homem, torna-se límpida. As ondas saltitantes do pensamento, como se envergo­nhadas com a imensidão da natureza, diminuem. Sons até aqui mal perce­bidos, como o sussurro do vento nos pinheiros, o rangido dos bambuais, o estridular de insetos minúsculos, o ruído contínuo e monótono dos pingos da chuva, o choque da água corrente contra rochas e seixos, serão ouvidos com ouvidos novos e parecerão como ecos suaves da música das esferas. Na tranqüilidade, pouco a pouco, surgirão lampejos daquela sabedoria que está além do mero conhecimento, o maior e, com freqüência, o mais negligenciado dos tesouros humanos. O praticante deve sentar-se quietamente, e entregar-se à visão e aos sons que o rodeiam, de tal modo que seu próprio ser mal consiga penetrar a superfície externa de sua consciência; as cores das árvores e o murmurar do rio parecem ter existência própria, a ponto de dispensar a cooperação de seus sentidos, dos quais ele não tem mais cons­ciência. Com o tempo, isso também deverá esvair-se, até que nada perma­neça de horizonte a horizonte e ainda além, a não ser a neve branca da meditação. Então a ausência da forma que constitui a essência do Tao é captada diretamente. Essa é a verdadeira tranqüilidade da mente, a ponte para a sabedoria do ensino sem palavras.

 PRATICAR O MISTICISMO DA NATUREZA

 Já o compreenderam Wordsworth, Tennyson, Emerson, e outros poetas e filósofos que mergulhavam nos segredos da natureza: cada simples flor, cada grão de areia contém em si, em sua totalidade, o ser do cosmos. Este é um segredo que podemos descobrir por acaso, por nós mesmos, ocasião em que se torna realmente óbvio e simples, mas não existe absolutamente um caminho para descobri-lo através do pensamento conceitual, e menos ainda através das palavras. Podemos conhecê-lo realmente pela experiência direta e afirmar claramente que é assim, mas não podemos explicá­-lo a quem carece dessa experiência, como não se pode transmitir a sensação da cor a quem nasceu cego. A explicação escrita que mais se aproxima dessa experiência, que eu conheço, está num livro chamado A Doutrina Budista da Totalidade, uma obra sobre o Sutra Hua Yen, de Garma C. C. Chang. A compreensão desse segredo, exceto nos raros casos em que ele se elucida por si só, dá-se mais perfeitamente através da contemplação ioga de um tipo que transcende o pensamento lógico, embora às vezes possa ser auxiliada por reflexões sábias ao nível do pensamento conceitual. Esses exercícios, repetidos freqüentemente por um período de tempo variado, poderão ocasionar talvez o surgimento de um repentino salto da intuição, que leva a pessoa pelo resto do caminho até a compreensão total. Esse prelúdio à intuição pode dar-se mais ou menos como se segue. Sentado na postura de meditação, a pessoa reflete:

“Esta flor que está na minha mão, embora tenha uma existência fugaz, é, num sentido muito real, uma flor verdadeira, com sua substância, cor, forma e aroma próprios. Mas tais qualidades não lhe pertencem: dependem de uma grande variedade de fatores ligados à totalidade do ser, tais como os olhos e a consciência do observador, a qualidade da luz predominante no momento, sua posição em relação aos meus olhos, e assim por diante. Uma vez que qualquer mudança num ou em mais desses fatores resultará em alteração da cor e/ou forma da flor, é claro que essas qualidades não são inerentes à própria flor. Nem se pode dizer que ela tenha qualquer tamanho em especial, pois é grande em relação a algumas coisas, pequena em relação a outras e variável em relação à distância entre ela e os meus olhos. Parece que a sua única qualidade fixa seria a natureza de sua substân­cia, mas mesmo isso é ilusório, pois todas as substâncias, não importa o quanto difiram mutuamente, são na realidade manifestações da não-substância do Tao, que é impalpável, não possui densidade e não tem características diferenciadas. Enquanto seguro esta flor em minha mão, na realidade o Tao está segurando o Tao; enquanto eu a observo com meus olhos e inalo sua fragrância com meu nariz, o Tao está, de fato, observando e inalando o Tao …

Meditando sobre essas linhas, o praticante atinge a compreensão da suprema vacuidade da forma, a ausência essencial de todas as qualidades distintivas. Em seguida, ele refletirá que a não-substância do Tao (e portanto da flor), como um Oceano de Pura Consciência, não está sujeita aos limites de tempo e de espaço. Falar do oceano da consciência como se possuísse partes não faz sentido, pois não se pode pegar uma faca e cortar um pedaço da mente. A flor, então, não pode ser descrita como uma fração infinitesimal da não-substância do Tao. Uma vez que compartilha da existência do Tao, mas não pode ser uma parte dele, ela tem que ser o próprio Tao. Além desse ponto, o pensamento conceitual deve ser abandonado; o iniciado senta-se em silêncio, a mente tranqüila, a atenção concentrada inteiramente na flor. A flor é o que é. Ele não mais tenta raciocinar a respeito: apenas senta-se serenamente e observa. Seria surpreendente se, na primeira tentativa, ele pudesse, através de um súbito e intuitivo salto, penetrar de imediato no âmago do segredo; mas, se repetir a meditação, preferivelmente à mesma hora todos os dias durante um período de tempo, poderá ser surpreendido por breves clarões de intuição e então, um dia, subitamente, compreender todo o significado da afirmação de que, assim como o cosmos contém a flor, também a flor contém o cosmos – e então, é claro, o assunto parecerá ridiculamente simples. Essa compreensão despertará nele uma maravilhosa sabedoria que transcende qualquer poder de descrição. Isto é o pu yen chih chiao – o ensino sem palavras.

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