de Dilgo Khyentse Rinpoche (1910-1991)
Traduzido por Matthieu Ricard
Depois de Garab Dorje, a transmissão continuou com Manjushrimitra, Shri Simha, Jnanasutra e Vimalamitra. Apesar de estes mestres terem se manifestado em forma humana, não havia necessidade de eles darem ou receberem transmissão por palavras, já que todos eles eram seres completamente realizados. A transmissão foi efetuada simplesmente por “sinais” – por mudras ou por expressões simbólicas. Quando o mestre dá a transmissão deste modo, os discípulos compreendem seu significado de uma vez e atingem a realização completa das três categorias do Dzogpachenpo: da mente, do espaço e das instruções essenciais.
A transmissão oral foi passada de um indivíduo para outro, começando com Guru Rinpoche. Ele deu isto aos seus discípulos: aos vinte e cinco discípulos principais, aos oitenta siddhas de Yerpa, aos cinqüenta e cinco seres realizados de Sheldrag e outros. Os três principais discípulos de Guru Rinpoche foram o rei Trisong Detsen, Vairochana, e sua consorte Yeshe Tsogyal. A transmissão então continuou até o onisciente Longchen Rabjam, que passou para o grande detentor do estado desperto, Jigme Lingpa, e que por sua vez transmitiu estes profundos tesouros aos seus discípulos. Seus quatro principais discípulos eram chamados “os quatro Jigmes” – “os quatro destemidos”. Dos quatro, os dois principais eram Dodrubchen Jigme Trinle Özer e Jigme Gyalwe Nyugu, uma emanação de Avalokiteshvara; os outros dois eram Jigme Gocha e Jigme Ngotsar. De Jigme Trinle Özer a transmissão foi para o mahasiddha Do Khyentse Yeshe Dorje, e de Jigme Gyalse Nyugu ela passou para Jamyang Khyentse Wangpo; tanto Do Khyentse quanto Jamyang Khyentse foram emanações autênticas de Jigme Lingpa. As duas linhagens então se fundiram nos grandes professores Gyalse Shenpen Taye, Patrul Rinpoche e Khenpo Pema Dorje. Eles, por sua vez, transmitiram-na a Wönpo Tenga, Nyoshul Lungtog, Adzom Drugpa, ao terceiro Dodrubchen Jigme Tenpe Nyima e a muitos outros mestres. Novamente, estas linhagens se juntaram na pessoa de Jamyang Khyentse Chökyi Lodrö, que foi uma emanação de Jamyang Khyentse Wangpo.
É assim que esta linhagem de indivíduos tem permanecido inquebrantável até os dias presentes. Apesar de dizermos “indivíduos”, todos eles são seres realizados que permanecem nos bhumis, os níveis dos bodhisattvas. Agora, para que possamos receber as bênçãos destes mestres, precisamos rogar para eles com devoção unidirecionada.
A Prática do Dzogpachenpo
Quanto à prática destes ensinamentos, há muitos métodos, que correspondem à capacidade do indivíduo.
Os indivíduos comuns simplesmente se esforçam para discriminar entre o que deve ser feito e o que deve ser evitado, com a meta de atingir a felicidade temporária desta vida.
Os indivíduos de capacidade média reconhecerão que a própria natureza dos três mundos da existência cíclica é sofrimento e, refletindo sobre isto, realizarão a preciosidade deste corpo humano, que é o suporte para atingir a iluminação. Eles contemplarão a impermanência, que é o estímulo para a sua diligência, sem nunca esquecer que a morte pode vir a qualquer hora. Então eles realizarão como é que as suas próprias ações são a causa ou de sofrimento ou de felicidade. Tendo visto que o sofrimento permeia o samsara inteiramente, surgirá em suas mentes um forte sentimento de renúncia e de querer, por todos os meios possíveis, se liberar do samsara.
Porém, desejar se liberar deste oceano de sofrimento não é suficiente em si mesmo; como vimos, precisamos confiar em um guia, um objeto de refúgio. Supremo entre eles todos é o mestre-vajra, o professor autêntico qualificado com todos os sinais de um ser realizado. Uma vez que tenhamos encontrado esse professor, precisamos proteger nossa ligação espiritual com ele tão cuidadosamente quanto protegeríamos nossos próprios olhos.
Para fazer isto, precisamos ser sábios de três modos diferentes. Primeiro, precisamos ser sábios para encontrar um professor autêntico e para examinar suas qualidades através do aprendizado sobre sua vida e seus ensinamentos. Então, quando tivermos encontrado um professor, devemos ser sábios para atendê-lo perfeitamente, seguindo suas instruções à risca. Finalmente, devemos ser sábios para realizar suas instruções, praticando-as. Se formos sábios destes três modos, então viajaremos pelo caminho sem esforço e sem erro.
Há também três níveis para agradar o mestre e realizar seus desejos. O melhor é atingir a realização suprema da iluminação através da prática – realizar a Visão através da Meditação e da Ação. O segundo melhor modo é servir o professor com o corpo, a fala e a mente. O terceiro é fazer oferendas materiais o trabalho e ensinamentos do professor.
Progredimos ao longo do caminho Mahayana tomando refúgio e gerando a mente iluminada da bodhichitta. A fim de eliminar os obscurecimentos e ações negativas que criam máculas no caminho, realizamos a prática de purificação de Vajrasattva e, a fim de juntar condições favoráveis através da acumulação de mérito, fazemos a oferenda de mandala. Finalmente chegamos à prática de Guru Yoga, a prática mais essencial para despertar e fazer surgir a sabedoria.
A meta atrás de cada uma de todas estas práticas não é simplesmente a de meditar, de realizar certas atividades ou de recitar um grande número de preces. Todas são diferentes meios de se realizar nosso objetivo principal, que é o de treinar e transformar nossa mente. Como é dito, “Transforme sua mente e você será perfeito; todo êxtase vem do domar a mente.”
Então faça uma resolução firme e decida: “De agora em diante, até eu morrer, praticarei diligentemente, todo o tempo.” Se pudermos fazer assim, terminaremos como Jetsün Milarepa, que realizou o maior método de agradar o mestre: atingindo a iluminação. Já que o próprio motivo pelo qual o mestre veio a este mundo é o de nos mostrar o caminho, o melhor modo de realizar seus desejos é realizando os ensinamentos. Mas como Jigme Lingpa apontou, “A teoria é como um remendo, um dia simplesmente cairá”. Precisamos integrar os ensinamentos em nossa experiência e fazer deles uma parte intrínseca de nosso ser; de outro modo, eles não serão realmente de muita utilidade.
Finalmente, para os seres de capacidade superior, há os caminhos profundos do estágio de desenvolvimento ou geração (Mahayoga), do estágio de completude (Anuyoga) e então o mais sublime de todos, o Dzogpachenpo (Atiyoga).
Mahayoga
Tendo encontrado um precioso professor, tendo sido aceito por ele e tendo recebido suas profundas instruções, agora viemos colocar as instruções em prática. Para fazer isso, precisamos transformar nossa percepção impura dos fenômenos externos em uma visão de pureza infinita.
Para praticarmos o tantra interior, precisamos realizar que tudo é primordialmente puro. Do mesmo modo, os elementos exteriores não são percebidos como sendo comuns, mas sim como os cinco buddhas femininos. Os cinco agregados dentro do corpo também não são percebidos como comuns, mas sim como os cinco buddhas masculinos. Do mesmo modo as oito consciências, assim como seus oito objetos, são percebidos como os oito bodhisattvas masculinos e femininos. Através deste tipo de percepção, não apenas veremos a pureza de todos os fenômenos, mas também perceberemos a “grande igualdade do samsara e do nirvana.” Não mais olharemos o samsara como algo a ser descartado e o nirvana como algo a ser atingido; eles serão vistos e entendidos como a “união da grande pureza e da grande igualdade.” Porém um estado como este não é algo que deva ser fabricado de maneira nova; ele sempre esteve lá, desde o início.
A essência do Kyerim – o estágio de desenvolvimento ou de geração – do Mahayoga é reconhecer todas as aparências como a divindade, todos os sons como mantras e todos os pensamentos como o dharmakaya. Este é o caminho mais profundo através do qual podemos atualizar todas as qualidades do corpo, fala e mente de um buddha. Dizemos “atualizar” porque estas são apenas a expressão da natureza primordial das coisas, que está agora simplesmente sendo revelada.
Anuyoga
A prática do estágio de completude, ou Anuyoga, é baseada principalmente nas seis yogas: tummo, ou calor interior, a raiz do caminho; gyulü, ou corpo ilusório, o fundamento do caminho; milam, ou sonho, a medida do progresso sobre o caminho; ösel, ou luminosidade, a essência do caminho; bardo, ou estado intermediário, o convite para continuar no caminho; e p’howa, ou transferência de consciência, que nos permite viajar pelo restante do caminho.
Atiyoga
A prática do Dzogchen ou Atiyoga é realizar o tathagatagarbha, ou natureza búddhica, que tem estado presente como nossa verdadeira natureza desde o início. Aqui não é suficiente focalizar sobre práticas fabricadas que envolvem o esforço e conceito intelectuais. Para reconhecer nossa verdadeira natureza, a prática deve estar completamente além da fabricação. A prática é simplesmente realizar a vacuidade e a radiância, ou expressão natural, da sabedoria, que está além de todos os conceitos intelectuais. É a realização verdadeira da natureza absoluta assim como ela é – a fruição última.
No momento, nosso estado desperto – rigpa – está emaranhado dentro de nossa mente, completamente envolvido e obscurecido pela atividade mental. Através da prática do Trekchö, ou “cortar através de todo apego”, e da “realização direta” do Tögal, podemos desmascarar este estado desperto e deixar sua radiância surgir.
Para realizar isto, precisamos praticar os quatro modos de deixar as coisas em sua simplicidade natural (chogshyag) e, por meio deles, adquirir perfeita estabilidade na prática do Trekchö. Então virão as “quatro visões do Tögal”, que são o surgimento natural de visões de discos e raios de luz, de divindades e de terras puras. Estas visões estão naturalmente prontas para surgir de dentro do canal central que junta o coração aos olhos. Este surgimento do canal central aparecerá em um processo gradual: do mesmo modo que a lua crescente aumentando primeiro ao décimo-quinto dia do mês, estas visões gradualmente aumentarão – da simples percepção de pontos de luz à toda a ostentação da vasta expansão das terras puras do sambhogakaya. Esta manifestação do espaço e do estado desperto assim alcançará seu ponto culminante.
Estas experiências não estão ligadas à consciência ou ao intelecto como as experiências anteriores estavam; elas são uma manifestação verdadeira, ou radiação do estado desperto. Depois disto, do mesmo modo que a lua diminui e desaparece do décimo-quinto ao trigésimo dia do mês, todas as experiências e visões – todas os fenômenos – gradualmente virão à exaustão e se reabsorverão no absoluto. Neste ponto a mente deludida que concebe sujeito e objeto desaparecerá, e a sabedoria primária, que está além do intelecto, gradualmente se expandirá. Eventualmente você atingirá a iluminação perfeita do buddha primordial Samantabhadra, dotado com as seis características extraordinárias.
Este é o caminho intentado para pessoas de faculdades superiores, que podem atingir a iluminação nesta mesma vida. Para aqueles de capacidade média, há a instrução sobre como atingir a liberação no bardo, ou estado intermediário. Quando dizemos “bardo”, de fato reconhecemos quatro bardos: o bardo da concepção até a morte, o bardo do momento da morte, o bardo da natureza absoluta e o bardo do vir à próxima existência.
O bardo entre a concepção e a morte é nosso estado presente. A fim de destruir todas as percepções deludidas ou pensamentos deludidos neste bardo, a prática última é o Atiyoga do Dzogchen, no qual há os dois caminhos principais do Trekchö e do Tögal, como descritos acima. A fruição última desta prática vem quando o corpo comum feito de agregados grosseiros dissolve-se no “corpo de arco-íris da grande transferência” ou “corpo-vajra”, ou então se dissolve sem deixar quaisquer restos físicos.
Mas mesmo quando não podemos atingir esse atingimento último dentro de uma vida, há ainda a possibilidade de atingirmos a iluminação no momento da morte. Se o nosso professor, ou um irmão ou irmã do Dharma, estiver próximo de nós no exato momento de nossa morte, ele ou ela nos lembrará das instruções – a introdução à natureza da mente. Se pudermos nos lembrar de nossas experiências de prática e permanecermos na natureza da mente, atingiremos a realização. É então possível partir diretamente para uma terra pura sem qualquer estado intermediário. Se isto não for realizado, então aparecerá o bardo da natureza absoluta, ou do dharmata. Neste ponto, a luminosidade base do dharmakaya aparecerá. Se pudermos unir a luminosidade base, ou “luminosidade mãe”, com a luminosidade que reconhecemos durante nossa vida, chamada “luminosidade filho”, então seremos liberados no dharmakaya.
Se não formos liberados neste momento, então aparecerão incontáveis manifestações de sons, luzes e raios. Um medo tremendo nos infligirá por causa destas emanações e visões, mas se formos bons praticantes, realizaremos que não há do que ter medo. Saberemos que quaisquer divindades que apareçam, iradas ou pacíficas, são todas as nossas próprias projeções. Reconhecer isto é garantir a liberação em um campo búddhico do sambhogakaya.
Mas se isto não for realizado, então se seguirá o bardo do vir a uma próxima existência. Isto é quando, se praticarmos da maneira correta, seremos liberados em um campo búddhico nirmanakaya.
Essencialmente, a natureza primordial do Buddha Samantabhadra é como a base ou natureza-mãe da realização. A natureza que foi introduzida a nós pelo nosso professor é como a natureza-filho. Quando estas duas se encontrarem, atingiremos a realização completa e tomaremos posse do forte da iluminação.
Até mesmo os seres ordinários, incapazes de atingir a liberação nem nesta vida nem no estado intermediário, podem atingi-la nas terras puras do nirmanakaya.
Para resumir então, através da prática do caminho do Trekchö e do Tögal podemos alcançar a realização última do dharmakaya, o estado iluminado do buddha primordial Samantabhadra, dentro desta mesma vida. Este é o melhor caso. Se não, então podemos nos liberar nos outros três bardos: nos bardos do momento da morte, do dharmata, e do renascimento. Mesmo se isto não acontecer, ainda podemos ser aliviados do sofrimento e ser liberados através das virtudes ou bênçãos dos ensinamentos do Dzogchen. Quem quer que tenha uma conexão com ele é: liberado pela visão, ao ver o ensinamento ou o professor; liberado pela audição, ao ouvir o professor ou o ensinamento; liberado pelo contato, ao usar os preciosos mantras e escrituras do Dzogpachenpo; ou liberado pelo sabor, e assim por diante. Como resultado, seremos liberados em uma das cinco terras puras do nirmanakaya, de Vairochana, Akshobhya, Ratnasambhava, Amitabha ou de Amoghasiddhi, e finalmente no campo búddhico central.
Apêndice
As seis características extraordinárias da liberação de Samantabhadra:
Esta liberação surge para nosso próprio estado desperto como a exibição deste estado desperto. Não há percepções deludidas que vêm do apego a esta exibição como um fenômeno externo.
Esta liberação transcende os aspectos da “base primordial” e da “manifestação que surge da base primordial”. Se não transcendesse, haveria uma possibilidade de cair na delusão quando os fenômenos surgissem da base primordial.
Se reconhecermos a sabedoria primordial livre de todos os obscurecimentos, nesse mesmo instante aparecerão espontaneamente todas as qualidades que permanecem naturalmente dentro da expansão dessa sabedoria. Realizaremos que todos os obscurecimentos relacionados às várias tendências kármicas acumuladas sobre a amorfa consciência básica são puras desde o início. Como um sol brilhante emergindo das nuvens, transcendemos completamente a base do samsara.
No mesmo instante, o insight transcendente amadurece como o kaya da natureza última em si; conquistamos a cidadela da pureza primordial e permanecemos lá imutavelmente.
A atualização de nosso próprio estado desperto não é nascida de circunstâncias externas fornecidas por algo que não seja o próprio estado desperto, e é independente de todas as condições. O estado búddhico é atingido através do estado desperto reconhecendo sua própria natureza, através de sua própria força.
A base para a liberação permanece primordialmente no continuum de sua própria natureza, e não pode ser penetrada pelas causas da delusão.