A Manifestação da Iluminação

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A Manifestação da Iluminação
(GENJO KOAN)
Dogen Zenji
Traduzido por Giovanni Dienstmann

Quando todas as coisas são o Buda-Dharma, há iluminação, ilusão, prática, vida-e-morte, Budas e seres sencientes. Quando todas as coisas são vistas como carecendo de um eu, não há iluminação nem ilusão, nem Budas nem seres sencientes, nem vida-e-morte. Originalmente o Caminho transcende a si mesmo bem como a qualquer ideia de abundancia ou falta – mesmo assim há vida-e-morte, ilusão e iluminação, seres sencientes e Budas. Entretanto, as pessoas odeiam ver as flores morrendo e não gostam que as ervas daninhas cresçam.

É uma ilusão tentar realizar a nossa prática e iluminação através de nós mesmos, mas ter prática e iluminação através dos fenômenos é iluminação. Buda é quem tem uma grande iluminação sobre a ilusão; ser sensciente é quem tem uma grande ilusão sobre a iluminação. Ainda, alguns alcançam a iluminação além da iluminação, enquanto outros acrescem ilusões sobre ilusões.

Quando os Budas se tornam Budas, não é necessário para eles estarem conscientes de que são Budas. Entretanto, eles são ainda Budas iluminados, e continuamente realizam o Buda. Através do corpo e mente nós podemos compreender a forma e os sons das coisas. Eles funcionam em conjunto como unidade. Todavia, não é como o reflexo de uma sombra num espelho, ou como a lua refletida na água. Se você olhar apenas para um lado, o outro lado fica obscuro.

Estudar o Caminho do Buda é estudar a si mesmo. Estudar sobre si mesmo é esquecer-se de si mesmo. Esquecer-se de si mesmo é perceber-se sendo todas as coisas. Realizar isso é abandonar o corpo e mente do eu e dos outros. Quando você alcança esse estágio você estará livre até mesmo da iluminação, mas continuará a praticá-la sem pensar sobre ela.

Quando as pessoas começam a buscar o Dharma [fora de si mesmas] elas imediatamente se afastam de sua verdadeira localização. Quando o Dharma é recebido através de sua correta transmissão, o nosso eu real aparece imediatamente.

Andando de barco, se você olhar apenas para a costa, pode pensar que ela está se movendo; mas se você olhar para o barco verá que é ele que está se movendo. Semelhantemente, se você tentar entender a natureza dos fenômenos usando a sua própria percepção confusa você erroneamente acreditará que sua natureza é permanente. Além disso, se você tiver uma prática correta e retornar à origem você verá claramente que todas as coisas carecem de um eu permanente.

Uma vez que a lenha é reduzida à cinzas ela não mais volta a ser lenha; mas não devemos pensar que “lenha” é o antes e “cinzas” é o depois. As cinzas são cinzas e a lenha é lenha. Elas têm o seu próprio passado e futuro, e sua própria existência independente.

Assim, também, depois de morrer o ser humano não volta à vida; mas no Budismo nunca dizemos que a vida se transforma em morte. Esse é um ensinamento estabelecido do Dharma Budista. Nós o chamamos de “não-nascimento”. Também a morte não se transforma em vida. Esse é outro principio do Dharma, chamado de “não-morte”. A vida e a morte tem existência absoluta, tal como o relacionamento de inverno e primavera. Não pense que o inverno se torna primavera, ou que a primavera se torna verão.

Atingir a iluminação é como a lua refletida na água. A lua aparece na água, mas não se molha; a água reflete a lua sem ser perturbada por ela. Além disso, a luz da lua ilumina a terra inteira, e ainda assim pode ser contida até mesmo em uma gota d’água.

Assim como a lua não perturba a água, a iluminação não perturba as pessoas. A iluminação não obstaculiza a vida. As profundezas da gota d’água refletem as alturas do céu.

Quando o verdadeiro Dharma ainda não foi completamente atingido temos a tendência de pensar que já alcançamos o suficiente, e que nosso trabalho está acabado. Se o Dharma está completamente presente, percebemos as nossas insuficiências.

Por exemplo, no meio do oceano, onde não se vê nada a não ser água, olhamos para os lados e temos a impressão de que o oceano é redondo. Entretanto, o oceano não é redondo – suas qualidades são infinitas! Ele é como um palácio, ou um ornamento de jóias preciosas. Mas, para nós, o oceano parece ser apenas um enorme círculo de água.

Vemos todas as coisas dessa maneira. Dependendo do ponto de vista nós vemos as coisas de formas diferentes. A percepção correta depende do estudo e da prática de cada um. Para poder entender vários pontos de vista diferentes devemos estudar os inumeráveis aspectos e virtudes dos oceanos e montanhas, ao invés de apenas círculos. Deveríamos saber que isso é assim não só ao nosso redor, mas também dentro de nós – até em uma única gota d’água.

Os peixes no oceano não encontram um fim para a água; os pássaros voando não encontram limites para o céu. Todavia, nem os peixes nem os pássaros se separam de seus elementos. Quando a sua necessidade é grande, seu uso é grande; quando é pequena, o uso é pequeno. Eles verdadeiramente utilizam ao máximo cada aspecto – livremente, ilimitadamente. Entretanto, deveríamos saber que se os pássaros forem separados de seu próprio elemento eles morrerão. Deveríamos saber que a água é vida para os peixes e o céu é vida para os pássaros. No céu, os pássaros são vida; na água, os peixes são vida. Várias outras conclusões podem ser tiradas disso. Existe a prática e a iluminação [como a relação acima entre céu e pássaros, água e peixes]. No entanto, depois de clarificar a água e o céu podemos ver que se os pássaros e peixes tentarem entrar no céu e na água eles não encontram nem um lugar, nem um caminho. Se compreendemos esse ponto há a manifestação da iluminação na nossa vida diária. Se alcançarmos esse Caminho, todas as nossas ações serão a manifestação da iluminação. Este Caminho, este local, não é nem grande nem pequeno, nem eu nem outros, nem passado nem presente – ele apenas é como é.

Assim, se praticamos e realizamos o Caminho do Buda podemos ensinar e penetrar em cada dharma; podemos confrontar e ensinar qualquer prática. Há um local onde podemos penetrar o Caminho e conhecer a extensão das percepções. Isso ocorre, pois o nosso conhecimento coexiste simultaneamente com a efetivação última do Dharma Budista.

Depois dessa efetivação se tornar a base da nossa percepção, não pense que nossa percepção será necessariamente compreendida pelo intelecto. Apesar da iluminação ser realizada rapidamente, ela não é sempre totalmente manifestada [pois é profunda e inesgotável demais para o nosso intelecto limitado].

Certo dia, quando o Mestre Zen Hotetsu do monte Mayoku estava se abanando, um monge se aproximou e lhe perguntou: “A natureza do vento é imutável e penetra em toda parte então porque você está se abanando?” O mestre respondeu: “Apesar de você saber que a natureza do vento é imutável você não sabe o significado dela penetrar em toda parte”. O monge então perguntou: “Então, qual é o significado dela penetrar em todas as partes?” Hotetsu apenas continuou se abanando. O monge compreendeu e prostrou-se com profundo respeito diante do mestre.

A experiência, a realização, a vivência e a correta transmissão do Dharma são assim. Dizer que não é preciso se abanar porque a natureza do vento é permanente e penetra em toda parte é um erro, e mostra que a pessoa não conhece a natureza do vento e, nem o seu “penetrar em todas as partes”. Assim como a natureza do vento é imutável, o vento do Budismo torna a terra dourada e faz com que os rios corram com um doce leite fermentado.

Escrito no outono de 1233 e dado a um discípulo leigo chamado Yo-Ko-Shu de Kyushu.

(Capítulo 1 do Shobogengo. Baseado na versão inglesa de Kosen Nishiyama Roshi.)

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