Fechar a porta



Fechar a porta

Texto de Charlotte Joko Beck,
extraído do livro”Sempre Zen

Na década de 60, Hakuun Yasutani Roshi começou uma série de visitas anuais para pregar o dharma nos Estados Unidos. Em cada visita, conduzia sesshins que duravam uma semana inteira, na parte sul da Califórnia. Como tantos outros que começaram a prática zen com Yasutani Roshi durante tais visitas, comecei a praticar intensamente com ele, por sete dias, todos os anos, e, no resto do ano, continuava meu zazen por conta própria. Aqueles sesshins eram bastante difíceis para mim, e devo acrescentar que, se alguma vez houve uma prática confusa, foi a minha. Entretanto, ter a oportunidade de estudar com ele, mesmo que fosse por sete dias a cada ano, e ver o que ele era: humilde, suave, vigoroso, espontâneo — era o suficiente para manter-me nesse caminho.

Ele já era muito idoso quando o conheci, perto dos oitenta e tantos anos, e apresentava algumas dificuldades físicas. Quando entrava no zendo, ficava atenta para ver se ele conseguia chegar até o lugar em que se sentava. Um homenzinho miúdo, curvado, entrando na sala. Quando começava a falar sobre dharma, eu não conseguia acreditar! Era como uma corrente elétrica percorrendo a sala:

a vitalidade, a espontaneidade, a devoção total. Não importava o que ele dizia, nem o fato de precisar de intérprete. Sua presença em si revelava o dharma: não se podia esquecê-lo depois de tê-lo visto uma só vez.

Duas qualidades em Yasutani Roshi impressionaram-me profundamente. Eu diria que ele era, ao mesmo tempo, luminoso e comum. Se olhássemos em seus olhos durante uma entrevista formal, veríamos que ali não existia nada, era como um espaço de milhares de quilômetros vazios. Era espantoso. Porém, de alguma forma, naquele espaço aberto havia a cura total.

Fora do zendo ele era apenas um homenzinho igual a todos, indo de um lado para outro com sua vassoura, de calças enroladas, comendo cenoura. Ele adorava cenoura.

Yasutani Roshi foi minha primeira experiência do que é um verdadeiro mestre zen e foi uma experiência de muita humildade, porque ele era muito humilde. Irradiavam-se dele liberdade, espontaneidade e compaixão, a jóia que todos nós buscamos com nossas próprias práticas. Entretanto, precisamos tomar cuidado para não buscar a jóia no lugar errado, fora de nós, e assim ficaremos sem ver que nossa vida em si é a jóia, talvez ainda em estado bruto, mas já perfeita, completa e inteira.

Quando se chega ao dharma de verdade, ele é muito simples e sempre disponível, contudo o problema é que não sabemos como vê-lo. Diante dessa falha, a jóia, a liberdade, nos escapa.

É uma coisa complicada falar de liberdade. Nossa forma habitual de falar a respeito é considerá-la uma questão de ficar sozinho para poder ir onde quiser e fazer tudo o que der vontade. Ficamos esperando que algo "do lado de lá" nos dê liberdade para que, se estivermos em uma situação desagradável e restritiva, possamos deixar uma porta aberta por onde passar correndo em busca de novas esperanças e de liberdade. Todos nós fazemos isso, sem exceção. O que nos leva a outra palavra difícil de ser comentada: compromisso.

Um dos aspectos importantes de nossa prática é olhar com honestidade para este processo constante de esperanças e de temores, e para todos os esquemas que são um reflexo de nossa ausência de comprometimento com a vida. Para tanto é preciso fecharmos a porta que tanto gostamos de manter aberta, dar-lhe as costas e ficar de frente para quem somos. Isso é comprometimento e, sem ele, não há liberdade.

Mediante nossa prática, vamos desbastando as fantasias que temos a respeito de sair correndo pela porta, para encontrar uma outra coisa em algum lugar, lá fora. Dedicamos quase todos os nossos esforços à manutenção e à proteção da estrutura de ego criada a partir da ignorância de que "eu" existo em separado do resto da vida. Precisamos tomar consciência dessa estrutura e ver como ela funciona, porque — muito embora seja artificial e não constitua nossa verdadeira natureza — a menos que a compreendamos, ela continuará agindo à base do medo e da arrogância. Por arrogância entendo o sentimento de ser especial, de não ser como todo mundo. Podemos ser arrogantes a respeito de qualquer coisa: nossas conquistas e nossos resultados, nossos problemas, até mesmo nossa "humildade". Por medo e arrogância, apegamo-nos a todos os tipos de atitudes e julgamentos autocentrados e, dessa forma, criamos todas as espécies de infelicidade para nós e para os outros.

A liberdade está intimamente ligada à nossa relação com a dor e o sofrimento. Gostaria de traçar uma distinção entre a dor e o sofrimento. A dor vem de se experimentar a vida tal como ela é, sem artifícios. Podemos até chamá-la de vivenciar a alegria de modo direto. Contudo quando tentamos fugir e escapar de nossa experiência de dor, sofremos. Por causa do medo da dor, construímos uma estrutura de ego para proteger-nos e, por isso, sofremos. A liberdade consiste em arriscarmo-nos como vulneráveis perante a vida; é a experiência do que surge em cada momento, seja doloroso ou agradável. Isso exige um comprometimento total de nossa vida. Quando formos capazes de dar-nos por inteiro, sem reter nada e sem qualquer idéia de fugir, de escapar à experiência desagradável do momento, não haverá sofrimento. Quando vivenciamos, na íntegra, nossa dor, há alegria.

Liberdade e comprometimento são intimamente vinculados. Quando duas pessoas se comprometem entre si, num casamento, em certo sentido estão fechando a porta à sua oportunidade de fugir ao calor e à pressão que são parte dessa relação. Mas, quando esses elementos são aceitos como parte do compromisso, o calor e a pressão favorecem o crescimento e o relacionamento floresce. Não estou afirmando que a pessoa deva se comprometer com qualquer relação que lhe passe pela frente: seria loucura. Insisto que nossa prática é o compromisso com a experiência de cada momento. O zazen, como o compromisso matrimonial, nos coloca sob situações de calor e pressão. Podemos dizer até que a primeira coisa que devemos fazer com o zazen é casarmo-nos com ele. Fechamos a porta e sentamo-nos silenciosamente para a prática do que é, sentindo o calor e a pressão.

As pessoas costumam imaginar que a prática será agradável e confortável, quando estão no início. Porém, a prática zen tem fases que não são nada agradáveis. Quando nos sentamos com este momento, seja ele qual for, caem por terra as paredes seguras da estrutura do ego, o que pode ser confuso e doloroso. A vivência física da confusão e da dor, em lugar de evitar tais sensações, é a chave da liberdade. Precisamos acolher a infelicidade, fazer dela a nossa melhor amiga, e atravessá-la de frente até a liberdade.

Essa jóia da liberdade é nossa vida tal como ela é, mas, se não entendermos a relação entre dor e liberdade, podemos causar sofrimento a nós e a outros. Precisamos estar dispostos a andar pelo fio da lâmina, estando ali simplesmente, não nos importando com o que vier a cada momento. Orgulho, cobiça, arrogância, dor, alegria, não tente manipular o que nos aparece com o zazen. Permanecendo sentados com tanta presença e consciência quanto for possível, os apegos terminarão com o tempo, cedendo e sumindo.

Quando Yasutani Roshi estava com 88 anos, seu último aniversário, escreveu: "As colinas ficam mais altas". Quanto mais claramente virmos que não há nada que precise ser feito, mais vemos aquilo que necessita ser feito. É uma coisa engraçada. Quando partilhamos de verdade o que temos: tempo, bens e, o mais importante, nós, nossa vida flui com facilidade. Há a história de um poço que era alimentado por pequenas nascentes que sempre forneciam seu suprimento de água. Certo dia o poço foi coberto e esquecido até que alguém, anos depois, o destampou. Porque ninguém nunca mais tinha ido ali para buscar água, as nascentes tinham deixado de enchê-lo e o poço estava seco. Acontece a mesma coisa conosco: podemos nos dar e nos abrir cada vez mais, ou podemos nos conter e segurar, e ficarmos secos.

A prática zen é fechar a porta para uma maneira dualista de ver a vida, o que exige comprometimento. Se ao acordar de manhã, você não quiser ir até o zendo, feche a porta para isso. Ponha o pé fora da cama e vá. Se sentir preguiça durante o trabalho, feche a porta para ela e faça o máximo. Nas relações, feche a porta para as críticas e a falta de delicadeza. No zazen, feche a porta ao dualismo e se abra para a vida tal como ela é. Muito devagar, ao aprendermos a vivenciar nosso sofrimento em vez de fugir dele, a vida se nos revela como alegria.


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