Ouvindo

Texto de Thich Nhat Hanh,
extraído do livro”Flamboyant em chamas

T’ô tinha se familiarizado com a arrumação da casa e ajudava a mãe quando esta ia nos bosques. Embora cega, T’ô podia varrer, lavar arroz e cozinhar uma refeição; até mesmo a escolher legumes ela aprendeu. Ao entardecer, quando a mãe retomava dos bosques, T’ô já havia terminado de preparar a refeição da noite. Ambas se sentavam e comiam. Quando acabavam, a mãe de T’ô lavava a louça e arrumava tudo.

T’ô descia para o riacho e sentava numa pedra ou, então, seguia até a orla do bosque. Sentada na margem do rio ou na orla do bosque, T’ô ouvia ruídos que jamais havia ouvido antes de ficar cega. Talvez fosse porque antes nunca houvesse prestado atenção a esses sons. Era como se as faculdades auditivas de T’ô se tivessem tornado mais sutis e aguçadas. Ela escutava o rio e era como se alguém falasse e cantasse. Quando ouvia correr a água, sentia que todos os galhos e as folhas das árvores levantavam e dançavam à sua volta. Ela via até, em sua mente, como se a própria luz se tornasse mais brilhante e começasse a dançar. Quando ouvia o vento na folhagem, T’ô pensava que podia ver milhares de mãos subirem aos céus, acenando para ela.

No começo de suas visitas habituais aos bosques, quando estava encostada num tronco de árvore, T’ô tinha a impressão de que os bosques eram um castelo sombrio e misterioso, um lugar sem ruídos, mas, pouco a pouco, aprendeu a conhecer todos os tipos de barulho: os de dezenas de milhares de criaturas vivendo lado a lado. Sob o tapete de musgo, sobre a casca das árvores, na terra, de todos os lugares, criaturas faziam-lhe sinais para lhe dizerem que existiam. T’ô escutava os pios de centenas de passarinhos diferentes e cada um de seus cantos trazia-lhe uma outra impressão, uma outra mensagem; era como se ela respondesse a cada uma dessas criaturas que lhe falavam. T’ô pegava sua flauta doce e tocava.

Desde que tinha perdido a vista, era raro o dia em que T’ô passava sem tocar flauta à margem do riacho ou na orla da floresta. A mãe tinha avisado muitas vezes sobre o perigo de ir muito longe na floresta: temia que o avião voltasse a jogar desfolhante. Constantemente dizia a T’ô que devia fugir dos bosques tão logo ouvisse chegar um avião.


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