Um continente maior



Um continente maior

Texto de Charlotte Joko Beck,
extraído do livro”Sempre Zen

Com 95 anos de idade, Genpo Roshi, um dos grandes mestres zen da atualidade, falava do "portão sem portão" e enfatizava que, de fato, não existe portão algum por onde tenhamos de passar a fim de darmo-nos conta do que nossa vida é. Não obstante, segundo ele, do ponto de vista da prática, devemos atravessar um portão, o portão de nosso orgulho. Todos nós, desde o momento em que nos levantamos pela manhã, temos de confrontar nosso orgulho, de alguma maneira — todos nós que estamos aqui. Para ultrapassarmos esse portão, que não é um portão, temos de ir além do portão de nosso próprio orgulho.

Bem, a filha do orgulho é a raiva. Quando me refiro a raiva, digo todos os tipos de frustrações, incluindo a irritação, o ressentimento e o ciúme. Falo tanto da raiva como do modo de trabalhar com ela porque entender como praticar com a raiva é entender como aproximar-se do "portão sem portão".

Em termos de vida diária, entendemos o que significa distanciar-se de um problema. Por exemplo, observei que Laura fez um lindo arranjo de flores. Ela mexe aqui, ali, tira, põe, e, num determinado momento, dá um passo atrás para ver as flores, o que fez com elas, como foi que ficou o arranjo pronto. Se você está costurando um vestido, primeiro corta o pano e~ une as peças, costura e arremata, e em um determinado momento, você vai para a frente do espelho para ver como ficou. Está penso nos ombros? Como está a bainha? Está caindo bem? Tornou-se um vestido adequado? Você dá um passo atrás. Da mesma forma, para pôr nossa vida em perspectiva, devemos dar um passo atrás e dar uma olhada.

Bom, a prática zen é fazer isso. Ela desenvolve a habilidade de dar um passo atrás e olhar. Tomemos um exemplo prático, uma discussão. A qualidade ostensiva de qualquer discussão é o orgulho. Suponhamos que sou casada e discuto com meu marido. Ele fez alguma coisa de que não gostei — gastou, digamos, as economias da família comprando um carro novo — e acho que nosso carro atual está bom. Acredito — aliás, eu sei — que tenho razão. Fico com raiva, fico furiosa. Quero gritar. Bem, o que posso então fazer com a minha raiva? O que é proveitoso que eu faça? Antes de mais nada, creio que é uma boa idéia simplesmente dar um passo atrás: fazer e dizer o mínimo possível. Quando recuo um pouco que seja, posso me lembrar de que o que na realidade desejo é ser aquilo que poderia ser chamado de Um Continente Maior (em outras palavras devo praticar as coisas mais elementares). Agir assim é o mesmo que penetrar em uma outra dimensão, numa dimensão espiritual, se quisermos dar-lhe um nome.

Consideremos uma seqüência de passos da prática, tendo em mente que, no auge da raiva, é impossível à maioria efetuar a prática no desenrolar do drama. Entretanto, tente de fato dar um passo atrás; faça e diga o mínimo possível; afaste-se. Depois, quando estiver sozinho, apenas sente e observe. O que quero dizer com "observe"? Observe a novela que está passando na televisão da cabeça: o que ele (o marido) disse, o que ele fez; o que tenho a dizer a respeito disso tudo, o que eu deveria fazer sobre o caso… todas essas considerações são fantasia. Não são a realidade do que está acontecendo. Se pudermos rotular esses pensamentos (difícil de fazer quando estamos com raiva), devemos fazê-lo. Por que é tão difícil? Quando estamos com raiva, há um enorme obstáculo no caminho da prática: o fato de não querermos praticar. Preferimos alimentar nosso orgulho, ter "razão” na discussão, no argumento. ("Não busque a Verdade: apenas cesse de alimentar suas opiniões.") É por isso que o primeiro ato é dar um passo atrás, falar pouco. Semanas de prática assídua podem passar, até que sejamos capazes de ver que, o que desejamos, não éter razão, mas ser Um Continente Maior. Dê um passo atrás e observe. Rotule os pensamentos do drama: sim, ele não deveria ter feito isso; sim, não consigo suportar o que ele está fazendo; sim, vou encontrar um jeito de me vingar. Tudo isso pode se dar num nível superficial, porém, não deixa de ser uma novela.

Se realmente recuarmos e observarmos — o que, como disse, é bastante difícil de fazer quando estamos com raiva —, seremos com o tempo capazes de enxergar nossos pensamentos como pensamentos (irreais), não como a verdade. Houve ocasiões em que repeti o processo dez, vinte, trinta vezes, antes de os pensamentos por fim cessarem. Quando isso acontece, o que me resta? Resta-me a experiência direta da reação física de meu corpo, o resíduo, por assim dizer. Quando vivencio de forma direta o resíduo (como tensão, contração), visto que na experiência direta não há dualidade, entro lentamente naquela dimensão que sabe o que fazer, qual a ação a ser empreendida (samadhi). Ali se sabe qual é a melhor atitude não só para mim, como para o outro também. Ao tornar-me Um Continente Maior, saboreio a "unidade" de modo direto.
Podemos falar sobre "unidade" até o final dos tempos. Como efetivamente nos destacamos dos outros? Como? O orgulho do qual a raiva nasce é o que nos destaca. A solução é uma prática na qual vivenciemos essa emoção de separação como um estado corporal definido. Quando fazemos isso, é criado Um Continente Maior.
O que é criado, o que cresce, é o tanto de vida que posso conter sem que ele me aborreça ou me domine. No início, esse espaço é bastante restrito, depois fica maior, cada vez maior. Nunca precisa parar de crescer, O estado de iluminação é aquele espaço enorme e compadecido. No entanto, enquanto vivermos, descobriremos que existe um limite para o tamanho de nosso continente e, nesse ponto, é que devemos praticar. Como sabemos onde se localiza esse ponto-limite? Estamos nele quando sentimos em qualquer nível raiva ou aborrecimento. Não há mistério nenhum. A força de nossa prática está no tamanho que nosso continente alcança.
Ao fazermos essa prática, precisamos ser caridosos com nós mesmos. Necessitamos reconhecer os momentos em que não estamos com disposição para efetuá-la. Ninguém tem vontade o tempo todo. E não faz mal que não a façamos sempre. Estamos fazendo sempre aquilo para o que estamos prontos.
Essa prática de fazer Um Continente Maior é em essência espiritual, porque essencialmente não é nada em absoluto. Um Continente Maior não é uma coisa; a consciência não é uma coisa; a testemunha não é uma coisa, nem uma pessoa. Não há ninguém testemunhando.

Apesar disso, aquilo que pode testemunhar minha mente e meu corpo deve ser algo que não seja minha mente e meu corpo. Se posso observar minha mente e meu corpo num estado de raiva, quem é este "eu" que observa? Ele me demonstra que sou diferente de minha raiva, que sou maior do que minha raiva, e esse conhecimento permite-me construir Um Continente Maior, crescer. Portanto, é essa capacidade de observar que deve ser expandida. O que observamos sempre é secundário. Não é importante estarmos aborrecidos; o importante é termos a habilidade de observar o aborrecimento.

Conforme essa habilidade se expande, primeiro para observar e depois experimentar, aumentam, ao mesmo tempo, dois outros fatores: a sabedoria, que é a capacidade de ver a vida tal como ela é (e não do jeito que eu gostaria que fosse), e a compaixão, que é a ação natural decorrente dê ver a vida como ela é. Não podemos ter compaixão por ninguém nem por nada se nosso encontro com eles está tingido de raiva e orgulho; é impossível. A compaixão cresce conforme criamos Um Continente Maior.

Quando efetuamos a prática, estamos penetrando profundamente em nossa vida tal como a conhecemos, e o modo como esse processo se desenrola varia de uma pessoa para outra. Para algumas, dependendo de seu condicionamento e história pessoais, o processo pode transcorrer de maneira suave, e a compreensão é gradativa. Para outros, vem em ondas, em enormes ondas emocionais. É como um dique que se rompe. Temos medo da inundação e de sermos tragados pela voragem. É como ter contido parte do oceano atrás de frágeis diques que, quando explodem sob o impacto da água, deixam-na retomar o que simples e verdadeiramente é; e há alívio nisso porque agora ela pode fluir com as correntezas e a vastidão do oceano.

Não obstante, acredito ser importante que o processo não aconteça rápido demais. Se for acelerado, creio que deveria ser desacelerado. Chorar, tremer e ficar transtornado não são coisas indesejáveis. Aquele dique está começando a se romper, mas não é preciso que se quebre rápido demais. É melhor desacelerar, e, se romper depressa, que seja, está tudo certo; quero enfatizar apenas que não tem de ser obrigatoriamente assim. Pensamos que somos todos do mesmo jeito, mas é provável que, quanto mais repressora e difícil tenha sido a infância, mais importante é que o dique ceda com lentidão. Contudo, não importa quanto nossa vida possa ter transcorrido com suavidade, sempre há um dique para estourar em algum ponto.

Lembremo-nos ainda de que um pouco de humor a respeito de tudo isso não é uma má idéia. Essencialmente, jamais nos livramos de coisa alguma. Não precisamos nos livrar de todas as nossas tendências neuróticas; o que fazemos é começar a ver como são engraçadas, como apenas fazem parte do lado engraçado da vida, da graça de viver com outras pessoas. São todas loucas, assim como nos, e claro. Mas na realidade nunca enxergamos que somos loucos; esse é nosso orgulho. Claro que eu não sou louca, afinal de contas, sou a instrutora!


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