Preparação para a compreensão de Shunyata

Eclipse

“Tudo existe perfeitamente com total abertura.”

    Quando começarmos a considerar a possibilidade de nos tornarmos iluminados, entendemos a iluminação como alguma forma distinta de experiência. Supomos que a meditação conduzirá a estados de ser mais elevados e sutis, até que, por fim, tudo se transforma de algum modo, passando do que normalmente vemos e sentimos para uma experiência de alegria e graça contínuas. No entanto, do ponto de vista da mais alta realização, tudo aquilo com que nós nos envolvemos já está dentro da iluminação. Tudo já é perfeito; não existe uma coisa sequer que seja imperfeita, “coisa” alguma precisa ser limpa ou desenvolvida. Cada forma, cada qualidade específica já é completa exatamente como está, sendo o que é, não importa o que. Nessa perspectiva, não existe não-iluminação nem iluminação; nem samsara nem nirvana. A perfeição intrínseca da existência esta além de todas as interpretações relativas ou das tentativas de descrição de suas qualidades. Antes mesmo de começarmos a praticar e meditar, todas as formas e aparências são manifestações do ser perfeito. Assim, nada há a ganhar, nada a perder, nada a realizar e nenhum lugar para se ir. Então, por que já não somos iluminados? Como podemos estar dentro da existência perfeita, se nosso mundo e nossas vidas parecem tão distantes da utopia? As respostas a estas perguntas encontram-se em nossa tendência de a tudo dar uma identidade, de rotular, definir e categorizar toda a nossa experiência. Em virtude desse processo perdemos contato com a realidade, porque tão logo começamos a descrever e interpretar, ficamos do lado de fora, olhando para ela. Ao nos colocarmos a parte da realidade, criamos a separação que depois tentamos transpor com nossa meditação. Chegamos até a pensar na realização como a meta final de uma relação entre sujeito e objeto, sem enxergar que esta “realização” é apenas um conceito a mais, um produto do nosso condicionamento, que obscurece a clareza e a profundidade potenciais da mente. Na verdade, nada há a descobrir, quer no sujeito quer no objeto – nem espaço, nem tempo, nem matéria; não existe nem mesmo uma mente. Quem pode, então, realizar a iluminação? Ninguém.

Não existe eu; não existe quem vivencie a experiência e não existe a experiência. Tudo existe perfeitamente com total abertura. Todas as manifestações são vazias, e o vazio é todas as manifestações. Contudo, nós como indivíduos não conseguimos apreender esta perfeita abertura. Não podemos vê-la, tocá-la, cheirá-la, interpretá-la ou vivenciá-la: não há um “eu” para apreender, ver, cheirar ou vivenciar, para negar ou afirmar a fisicalidade da matéria, ou sequer para comparar o existente e o não-existente. A abertura absoluta, ou shunyata, não tem ponto de apoio, não tem posição. Sem características nem essência, não pode ser vivenciada pelos sentidos ou pela mente.

Todavia, nada está fora de shunyata. A realidade abrange todas as posições, cada aspecto da existência e da não-existência. Em shunyata há espaço para cada possibilidade, e tudo se ajusta com perfeição. Você começará a entender o vazio quando se desligar dos preconceitos. Se acreditar que shunyata é uma vasta extensão, descarte essa idéia. Se acreditar na mente, ou que tudo é criado pela mente, ou que há algum fundamento ou substância, jogue fora tais conceitos. Desmascare tudo e deixe a mente ficar em silencio total, em paz, vazia e clara: deixe-a tornar-se a experiência de shunyata. Dentro desse espaço claro e vazio que se encontra entre um pensamento e outro, antes que um outro conceito se forme, não existe sujeito, nem objeto, nem experiência. Aí está a natureza da iluminação. Talvez seja difícil aceitar isso se tivermos um conceito impreciso de iluminação. Podemos pensar que alcançar a iluminação exija mais do que simplesmente abraçar a qualidade aberta do vazio. Porém, nossas idéias sobre iluminação e sobre seres infinitos são muitas vezes restritivas.

Criamos estes conceitos para melhor entender nossa reali­dade e, no entanto, estes mesmos conceitos podem, irôni­camente, bloquear nossa realização.

Também criamos restrições ao nos considerarmos separados das outras coisas. Pensamos que nos projetamos para tocar algo separado de nós mesmos, ou que olhamos em volta para ver alguma coisa fora de nós, mas aquele que toca já está tocando, o observador já está observando. Assim que afirmamos algo como sendo separado, ou isola­mos alguma coisa a fim de tentar entendê-la, perdemos shunyata de vista.

De onde vem a mente? Aonde vai ela? Onde está a fonte da consciência? Onde se origina a vida? Onde se cria toda a existência?

A resposta a todas estas pergun­tas é: em parte alguma; tudo é a mesma realidade, a mesma energia, sem fonte nem princípio. Não há separação real entre passado e presente, aqui e lá. Nós estamos sempre dentro da realidade. Nossa mente não está separada da iluminação.

Qual é, então, a diferença entre a iluminação e a existência comum? O estado iluminado dispõe de grande riqueza, abertura e plenitude de ser, enquanto o estado samsárico inclui tremendo sofrimento, ignorância e con­fusão. Não obstante, do ponto de vista de shunyata, os dois estados coexistem: não há separação entre eles.

Quando compreendermos que o fundamento da iluminação não é um dado lugar ou uma dada pessoa, saberemos que jamais nos afastamos dessa mente desperta. Veremos que a iluminação permeia todo o nosso ser e não pode separar-se de nós, tanto quanto o som não pode se divorciar da música. Shunyata é tudo e nada. Toda a nossa experiência está compreendida dentro dessa perfeita realização da abertura.

 

Do livro: A MENTE OCULTA DA LIBERDADE – Tarthang Tulku

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