Bodhidharma(483d.C – 540 d.C)
O Vigésimo oitavo Patriarca
Primeiro Patriarca chinês
por Shinzen
por Kapleau
por Varenne
Transmissão na Índia
Transmissão na China
Textos
Linhagem
Bodhidharma na China4
Este texto foi traduzido para o português por Shinzen, que ofereceu sua tradução como presente ao Lama Samten na sua ordenação em 14 de dezembro de 1996.
O Budismo chegou à China 2.000 anos atrás. Reporta-se que já no ano 65 d.C., uma comunidade de monges budistas vivia sob proteção da realeza na parte norte da Província de Kiangsu, próxima do local de nascimento de Confúcio, e os primeiros monges provavelmente chegaram 100 anos antes.
Desde então, dezenas de milhares de monges da Índia e da Ásia Central têm viajado para China por terra e mar, mas dentre aqueles que trouxeram os ensinamentos de Buda para China, nenhum teve impacto comparável ao de Bodhidharma.
Conhecido apenas por alguns discípulos durante sua vida, Bodhidharma é o patriarca de milhões de zen-budistas e de estudantes de kung-fu. Também é o protagonista de muitas lendas. Além de ter trazido zen e kung-fu, relata-se também ter trazido o chá para a China. Para se resguardar de cair no sono durante a meditação, ele cortou suas pálpebras, e onde elas caíram cresceram arbustos de chá. Desde então, o chá tornou-se a bebida não somente de monges, mas de todos no Oriente. Fiéis a essa tradição, os artistas invariavelmente representam Bodhidharma com olhos salientes e sem pálpebras.
Como sempre acontece com as lendas, tornou-se impossível separar fato de ficção. As datas são incertas. De fato, eu conheço pelo menos um erudito budista que duvida que Bodhidharma tenha existido. Mas correndo o risco de escrever sobre um homem que nunca existiu, eu esbocei uma biografia, baseada nos registros mais recentes e algumas suposições, para fornecer um cenário para os sermões a ele atribuídos.
Bodhidharma nasceu em torno do ano 440 em Kanchi, capital do reino sulista indiano de Pallawa. Ele era um brâmane de nascimento e o terceiro filho do Rei Simhavarman. Quando ele era jovem, ele converteu-se ao budismo, e mais tarde o Dharma lhe foi ensinado por Prajnatara, de Magadha, que foi convidado pelo seu pai. Magadha era o antigo centro do budismo. Também foi Prajnatara quem disse para Bodhidharma ir para China. Uma vez que a tradicional rota terrestre estava bloqueada pelos hunos, e uma vez que Pallawa tinha laços comerciais por todo Sudeste Asiático, Bodhidharma partiu de navio de um porto nas proximidades, Mahaballipuram. Depois de contornar a costa da Índia e a Península da Malásia por três anos, ele finalmente chegou ao sul da China ao redor do ano 475.
Nessa época o país estava dividido pelas dinastias Wei do norte e Liu Sung. Essa divisão da China numa série de dinastias nortistas e sulistas começou no início do Séc. III e continuou até o país ser reunificado sob a dinastia Sui no fim do Séc. VI. Foi durante esse período de divisão e conflito que o budismo indiano transformou-se em budismo chinês, com os nortistas de mente militarista enfatizando meditação e mágica e os intelectuais sulistas preferindo discussão filosófica e a compreensão intuitiva de princípios.
Quando Bodhidharma chegou à China, no fim do Séc. V, haviam aproximadamente 2 mil templos budistas e 36 mil clérigos no sul. Ao norte, um recenseamento em 477 contou 6,5 mil templos e aproximadamente 80 mil clérigos. Menos de 50 anos mais tarde, outro recenseamento feito ao norte aumentou esses números para 30 mil templos e 2 milhões de clérigos, ou cerca de 5% da população. Sem dúvida, isso incluía muitas pessoas que estavam tentando evitar impostos ou recrutamento ou que procuravam a proteção da igreja por outras razões não religiosas, mas claramente o budismo estava espalhando-se pelas pessoas comuns ao norte do Rio Yangtze. No sul, permaneceu muito confinado à elite educada até o Séc. VI.
Seguindo a sua chegada ao porto de Nanhai, Bodhidharma provavelmente visitou centros budistas no sul e começou a aprender Chinês, se é que ele já não havia feito isso em seu caminho desde a Índia. De acordo com A Transmissão da Lâmpada de Tao-yuan, obra terminada em 1002, Bodhidharma chegou ao sul tarde, em 520, e foi convidado para capital em Chienkang para uma audiência com o Imperador Wu da dinastia Liang, sucessor de Liu Sung. Durante esse encontro o imperador perguntou sobre o mérito de executar trabalhos religiosos, e Bodhidharma respondeu com a doutrina do vazio. O imperador não entendeu, e Bodhidharma partiu. Os registros mais recentes, no entanto, não mencionam tal encontro.
Em qualquer caso, Bodhidharma cruzou o Rio Yangtze – de acordo com a lenda, numa embarcação de bambu – e estabeleceu-se ao norte. Primeiramente ele permaneceu ao norte na capital de Wei, Pingcheng. Em 494, quando o Imperador Hsiao-wen mudou sua capital para o sul de Loyang na margem norte do Rio Lo, a maioria dos monges que viviam na área de Pingcheng mudou-se também, e Bodhidharma provavelmente estava entre eles. De acordo com o livro Vidas Remotas de Monges Exemplares de Tao-hsuan, cujo primeiro esboço foi escrito em 645, Bodhidharma ordenou um monge com o nome Sheng-fu. Quando a capital foi mudada para Loyang, Sheng-fu mudou-se para o sul. Uma vez que a ordenação normalmente requer um aprendizado de três anos, Bodhidharma já devia estar ao norte em torno do ano 490 e então devia estar razoavelmente fluente em Chinês.
Alguns anos mais tarde, em 496, o imperador ordenou a construção do Templo de Shaolin no Monte Sung, na Província de Honan ao sudeste de Loyang. O templo, que ainda existe (principalmente como atração turística), foi construído para outro mestre de meditação da Índia, e não para Bodhidharma. Embora mais mestres zen passaram pelo templo nos últimos 1.500 anos, Bodhidharma é o único monge que alguém além de um historiador budista associa com Shaolin. Foi aqui, no Pico Shaoshih ocidental do Monte Sung, que se diz que Bodhidharma passou nove anos em meditação, de frente para parede de pedra de uma caverna a cerca de uma milha do templo. Shaolin mais tarde tornou-se famoso como centro de treinamento de monges em kung-fu, e Bodhidharma é honrado como o fundador dessa arte igualmente. Vindo da Índia, sem dúvida ele instruiu seus discípulos em alguma forma de yoga, mas nenhum registro antigo menciona-o ensinar qualquer exercício ou arte marcial.
Pelo ano 500, Loyang era uma das maiores cidades no mundo, com uma população acima de meio milhão. Quando o Imperador Hsuan-wu morreu em 516 e a imperadora Dowager Ling assumiu o controle do governo, um de seus primeiros atos foi mandar construir o Templo Yung-ning. A construção desse templo e de seu pagoda de 400 pés de altura quase exauriram o tesouro imperial. De acordo com um registro dos templos de Loyang escrito em 547 por Yang Hsuan-chih, os sinos-de-vento dourados pendurados nos beirais do telhado podiam ser ouvidos a três milhas de distância e a ponta do pagoda do templo podia ser vista a 30 milhas de distância. O relato de Yang inclui os comentários de um monge do leste chamado Bodhidharma, que disse ser a estrutura mais imponente que ele já tinha visto. Uma vez que o templo não foi construído antes de 516 e foi destruído por fogo em 534, Bodhidharma deve ter estado na capital por volta de 520. Registros antigos dizem que ele viajou por toda área de Loyang, indo e vindo com as estações. Na capital, no entanto, ele deve ter estado no Templo Yung-ming. Não confundir com o Templo Yung-ning, Yung-ming foi construído alguns anos antes, no começo do século VI, pelo Imperador Hsuan-wu, como templo central para monges estrangeiros. Antes da evacuação de massas da cidade durante o colapso de Wei ao norte em 534, o templo foi lar de mais de 3 mil monges de países tão distantes como a Síria.
Apesar da súbita popularidade do budismo na China, Bodhidharma encontrou poucos discípulos. Além de Sheng-fu, que mudou-se para o sul logo após a ordenação, os únicos discípulos mencionados são Tao-yu e Hui-k’o. Diz-se que ambos estudaram com Bodhidharma por cinco ou seis anos. Tao-yu, nos é dito, entendeu o Caminho mas nunca ensinou. Foi para Hui-k’o que Bodhidharma confiou o manto e a tigela de sua linhagem e, de acordo com Tao-hsuan, uma cópia da tradução do Sutra Lankavatara feita por Gunabhadra. No sermão traduzido aqui, no entanto, faz citações principalmente do Sutra do Nirvana, Avatamsaka e Vimilakirti e não usa terminologia alguma característica do Lankavatara. Talvez tenha sido Hui-k’o, e não Bodhidharma, quem tinha uma boa opinião desse sutra.
Em sua Transmissão da Lâmpada, Tao-yuan diz que logo depois que ele transmitiu o patriarcado de sua linhagem para Hui-k’o, Bodhidharma morreu em 528 no quinto dia do décimo mês, envenenado por um monge ciumento. Tao-hsuan somente diz, em sua biografia muito mais antiga, que Bodhidharma morreu nas margens do rio Lo e não menciona a data e a causa da morte. De acordo com Tao-yuan, os restos de Bodhidharma foram enterrados perto de Loyang no templo Tinglin na Montanha Orelha de Urso. Tao-yuan também diz que três anos mais tarde um oficial encontrou Bodhidharma caminhando nas montanhas da Ásia Central. Ele estava carregando um cajado no qual estava pendurada uma única sandália, e ele disse ao oficial que estava voltando para a Índia. Relatos desse encontro levantaram a curiosidade dos outros monges, que finalmente concordaram em abrir a tumba de Bodhidharma. Tudo que eles encontraram dentro foi uma única sandália, e desde então Bodhidharma tem sido representado carregando um cajado no qual se pendura a sandália faltante.
Com o assassinato do Imperador Hsiao-wu em 534, a nortista Wei dividiu-se em duas dinastias, Wei Ocidental e Oriental, e Loyang foi atacada. Uma vez que a poderosa família Kao de Wei Oriental era famosa por seu patrocínio ao budismo, muitos dos monges que viviam em Loyang, incluindo Hui-k’o, mudaram-se para Yeh, capital de Wi Oriental. Lá finalmente Hui-k’o encontrou T’an-lin. T’an-lin trabalhou primeiramente em Loyang e mais tarde em Yeh escrevendo prefácios e comentários para novas traduções dos sutras budistas. Depois de encontrar Hui-k’o, ele ficou interessado na abordagem ao budismo de Bodhidharma e adicionou um breve prefácio ao Esboço da Prática. Nesse prefácio ele diz que Bodhidharma veio do sul da Índia e que depois de sua chegada à China, ele achou apenas dois discípulos de valor, Hui-k’o e Tao-yu. Ele também diz que Bodhidharma ensinava meditação na parede e as quatro práticas descritas no Esboço.
Se isso é tudo que sabemos de Bodhidharma, por que, então, é ele o mais famoso de milhões de monges que estudaram e ensinaram o Dharma na China? A razão é que a ele somente é creditado ter trazido o zen para China. É claro que o zen, como meditação, tinha sido ensinado e praticado por centenas de anos antes de Bodhidharma chegar. E muito do que ele tinha para dizer a respeito da doutrina tinha sido dito antes – por Tao-sheng, por exemplo, uma centena de anos antes. Mas a abordagem ao zen de Bodhidharma era única. Como ele diz nesses sermões “Ver sua natureza é zen… Não pensar sobre coisa alguma é zen… Tudo que você faz é zen.” Enquanto outros viam o zen como purificação da mente ou como um estágio no caminho para buditude, Bodhidharma equacionou zen com a buditude – e a buditude com a mente, a mente do dia-a-dia. Em vez de dizer aos seus discípulos para purificarem suas mentes, ele lhes apontava paredes de pedra, movimentos de tigres e garças, uma embarcação de bambu flutuando no do Rio Yangtze, uma sandália. O zen de Bodhidharma era zen Mahayana, e não zen Hinayana – a espada da sabedoria, e não a almofada de meditação. Como fizeram outros mestres, sem dúvida ele instruiu seus discípulos em disciplina budista, meditação e doutrina, mas ele usou a espada que Prajnatara lhe deu para livrar-lhes a mente das regras, transes e escrituras. Tal espada, no entanto, é difícil de pegar e difícil de usar. É uma pequena maravilha o fato que seu único sucessor, Hui-k’o, tinha um braço só.
Mas tal entendimento radical do zen não originou-se com Bodhidharma ou com Prajnatara. Dizem que um dia Brahma, senhor da criação, ofereceu a Buda uma flor e pediu-lhe para pregar o Dharma. Quando Buda levantou a flor, sua audiência estava confusa, exceto Kashyapa, que sorriu. Foi assim que o zen começou. E foi assim que ele foi transmitido: com uma flor, com uma parede de pedra, com um grito. Essa abordagem, uma vez que se fez conhecida por Bodhidharma e seus sucessores, revolucionou o entendimento e prática do budismo na China.
Tal abordagem não se encontra por acaso muito bem em livros. Mas em seu livro Vidas Remotas de Monges Exemplares, Tao-hsuan diz que os ensinamentos de Bodhidharma foram escritos. Muitos eruditos concordam que Esboço da Prática é um de tais registros, mas as opiniões dividem-se a respeito dos outros três sermões aqui traduzidos. Todos os três há muito são atribuídos a Bodhidharma, mas em anos recentes um número de eruditos tem sugerido que esses três sermões são trabalhos de discípulos mais jovens. Yaganida, por exemplo, atribui o Sermão do Ciclo da Vida* a um membro da Escola de Zen Cabeça de Boi, que floresceu nos séculos VII e VIII, e pensamos que o Sermão do Despertar foi um trabalho do Séc. VIII da escola de zen do norte e que o Sermão da Grande Descoberta era de Shen-hsiu, o patriarca do Séc. VII da escola de zen do norte.
Lamentavelmente, faltam evidências que comprovem ou não a autoria. Até o corrente século, as cópias conhecidas mais antigas desses sermões são versões do Séc. XIV dos originais da dinastia T’ang (618-907) da coleção Kanazawa Bunko do Japão. Mas com a descoberta de milhares de manuscritos budistas da dinastia T’ang no início deste século nas cavernas Tunhuang na China, agora temos cópias dos séculos VII e VIII. Claramente esses sermões foram cedo compilados por monges que remontavam seus ancestrais até Bodhidharma. Se não foi Hui-k’o ou um de seus discípulos, talvez tenha sido T’an-lin quem os escreveu. Em qualquer caso, na ausência de evidências contrárias convincentes, eu não vejo razão para não aceitar os sermões como do homem a quem têm sido atribuídos por mais de 1.200 anos.
Os discípulos de Bodhidharma foram poucos, e a tradição zen que remonta seus ancestrais a ele não começou seu florescimento pleno até aproximadamente 200 anos após sua morte. Dada a espontaneidade e desapego promovidos pela abordagem de Bodhidharma ao zen é fácil ver porque esses sermões foram por fim negligenciados em favor de sermões de mestres zen nativos. Por comparação, os sermões de Bodhidharma parecem um tanto estranhos e despojados. Eu mesmo só os encontrei por acaso, numa edição da Essência da Transmissão da Mente de Huan-po. Isso foi 12 anos atrás. Desde então eu afeiçoei-me ao seu zen de ossos nus, e eu sempre tento imaginar por que eles não são mais populares. Mas, populares ou não, ei-los novamente. Antes que se evanesçam novamente na poeira de alguma cripta ou biblioteca, leia-os uma ou duas vezes e procure a única coisa que Bodhidharma trouxe para a China: procure a a marca da mente.
Pinheiro Vermelho
Lago do Bambu, Taiwan
Grande Frio, Ano do Tigre
* N. da T. brasileira: A tradução literal do ideograma para esse sermão seria Sangüíneo. O título em Inglês é Sistema Circulatório.
Por Philip Kapleau
Bodhidharma (J. Daruma): o vigésimo oitavo Patriarca na linha do Buda, o primeiro Patriarca do Zen na China. Os estudiosos não estão de acordo quanto à data da ida de Bodhidharma da Índia para a China, ao tempo em que permaneceu ali e a ocasião de sua morte; contudo, e geralmente admitido pelos budistas Zen japonesesque ele foi de barco da Índia ao Sul da China cerca do ano 520 e, após uma curta tentativa fracassada de estabelecer ali seus ensinamentos, foi para Lo-Yang no Norte da China e finalmente se fixou no Templo Shorin (Shao-lin), localizado no Monte Su (Sung-shan). Ali praticou tenazmente o zazen durante nove anos, razão pela qual esse período veio a ser conhecido como seus “nove anos defronte da parede”.
Bodhidharma e Eka (Hui-k’o), seu discípulo a quem transmitiu o Dharma, são os personagens do quadragésimo primeiro Koan no Mumonkan, assim como de uma famosa pintura de Sesshu, o maior pintor japonês. Eka, um estudioso de certo renome, queixa-se a Bodhidharma, que está em silêncio fazendo zazen, de que não tem paz de espírito e pergunta como pode adquiri-la. Bodhidharma manda-o embora dizendo que a consecução da paz interior exige longa e severa disciplina e não é para os presunçosos ou pusilânimes. Eka, que tinha ficado do lado de fora, na neve, durante horas, implora a Bodhidharma que o ajude. De novo é repelido. Em desespero, ele corta sua mão esquerda e a oferece a Bodhidharma. Convencido de sua sinceridade e determinação, Bodhidharma aceita-o como discípulo.
Se, historicamente, estes episódios são reais ou não, importa menos que o fato de revelarem simbolicamente a importância dada pelos mestres Zen ao anseio pela paz de espírito, ao zazen, e à sinceridade e humildade, perseverança e fortaleza como pré-requisitos para a consecução da mais elevada verdade.
“Ao longo da roda sem fim dos nascimentos e
renascimentos.
Em busca vã. empenhei-me em encontrar
Quem concebera o edifício.
Que miséria! Nascer, sem cessar!
Ó construtor, eis que vos descobri!
Esta obra, não a reconstruireis jamais!
Todas as vigas estão destroçadas,
O teto pontiagudo jaz por terra!
Este espírito logrou a dissolução
E assistiu à cessação do desejo!”
Mil anos separam o canto vitorioso do Buda, após obter a iluminação, da chegada de Bodhidharma, o propagador do Zen, à China.
E, contudo, a mesma procura, a mesma exigência os une: logo outros cantos de vitória seriam ouvidos em terra chinesa.
Os adeptos do Zen sempre desejaram estabelecer uma filiação espiritual de mestre a discípulo desde Gautama até Bodhidharma, o último patriarca indiano. Mas é preciso levar em conta que essa genealogia tardia não encontra respaldo algum nos documentos históricos. Devemos, pois, considerá-la com />
Segundo os textos, o Zen foi diretamente transmitido pelo Buda a seu discípulo Mahakashyapadurante uma reunião da congregação.
Gautama apresentara uma flor á assembléia sem dizer uma palavra. Somente Mahakashyapa compreendera a alusão, respondendo com um sorriso…
A anedota, verdadeira ou apócrifa, tem o mérito de traduzir com exatidão o espírito não-verbal do Tch’an tal como Bodhidharma o propagou.
Os “genealogistas” do budismo nomeiam vinte e sete patriarcas indianos, que se sucederam sem interrupção até Bodhidharma. Este último, filho de um brâmane convertido ao budismo, foi enviado pelo imperador Wu á corte de Nanquim.
O relato dessa entrevista tornou-se lendário. Tem já o sabor, o tom lapidar, o estilo e a jovialidade que farão a glória dos mestres do Tch’an.
O imperador, budista fervoroso, tentou alardear aos olhos do missionário a soma dos méritos que acumulara em anos de serviço à religião: subvenções aos monastérios, cópias de escrituras, edificação de templos e santuários.
Asperamente, Bodhidharma retrucou que não via nisso motivo algum de glória, tais “méritos” estavam totalmente destituídos de valor!
Aturdido, o imperador cobrou explicações.
– Isso tudo não representa mais que atos insignificantes dos homens. Quanto aos deuses, são apenas uma fonte fugidia de recompensas que os segue como a sombra segue o corpo. Ora, a sombra não existe, embora o pareça.
– Qual é, pois, o verdadeiro mérito?
– Ele consiste na compreensão da sabedoria pura, cuja substância é o silêncio e o vazio. Mas não se pode aspirar a esse mérito como o mundo o faz.
Cada vez mais confuso, o imperador ainda replicou:
– Qual é o primeiro princípio da doutrina sagrada?
A resposta veio como uma bala de canhão:
– Um vazio insondável e nada de sagrado!
Sem argumentos, o monarca tentou pela última vez confundir o sábio:
– O que é que está diante de mim?
– Não sei.
Bodhidharma pediu permissão e deixou o imperador. Diz a lenda que enfurnou-se por sete anos numa grota, mantendo-se assentado diante de uma parede- Antes de morrer, transmitiu o conhecimento a seu primeiro discípulo.
Essa história, qualquer que seja sua veracidade original, exprime perfeitamente a via negativa ou apofática que não tardaria a constituir a essência da prática zen-budista.
Ao imperador ávido por estadear seus méritos e ocupar-se das coisas sagradas, Bodhidharma replica que semelhante concepção religiosa é absurda, votada à confusão. Enquanto insistimos em perpetuar algo como o ‘mérito”, alimentamos a crença de que somos um ser distinto, autônomo.
Finalmente, ao ser solicitado a definir sua natureza, Bodhidharma esquiva-se à pergunta e finge nada saber.
Tal é a “parede” do Tch’an: um vazio impenetrável, nem sagrado, nem profano.
O Zen recusa-se à instigação equivoca da teorização e da abstração.
Bodhidharma enunciou quatro princípios essenciais ao conjunto do “pensamento” zen ulterior. Esses princípios tornaram os adeptos imunes ao pietismo e à fé cega.
– Transmitir sem levar em conta as escrituras.
– Não depender de palavras ou textos.
– Avançar diretamente rumo ao espírito do homem.
– Contemplar sua própria natureza e alcançar a condição de buda.
Evitando fundamentar-se em textos, o Tch’an afasta as tentações fetichistas e escolásticas comuns às religiões. Quantos fiéis não se perderam no estudo e na exegese, esquecendo sua natureza inerente e deixando-se embair pelo encantamento místico ou pela razão discursiva!
O que importa é o espírito do homem aqui e agora, sem a proteção ilusória de escrituras sagradas.
Alertada pela presença de um sábio, a pseudopersonalidade deseja exibir méritos conseguidos com prática vaidosa. Mas os mestres do Tch’an sabem sempre encontrar a brecha na couraça e apontar a verdade…
O espírito Tch’an não se reveste de discursos, mas como uma ave de rapina ataca a presa oferecida pelo questionador desatento, imbuído de sua personalidade mesquinha.
Transmissão na Índia3
28. De Prajnatara para
Bodhidharma
O ex-príncipe Bodhidharma conheceu
Prajnatara. como um mestre de Vajramushti, a arte marcial da antiga Índia. Depois, ele descobriu que Prajnatara também era um mestre do Dharma de Buddha, pelo qual se interessou ainda mais.
Prajnatara: O
que é completamente sem características e, portanto, completamente
incaracterizável?
Bodhidharma: É aquilo que nunca, quando se
manifesta livremente, nunca surge no lugar original.
Prajnatara: O
que é o mais excelente, exalto e sublime?
Bodhidharma: É a clareza e
brilho inatos da própria consciência.
Prajnatara: O que é realmente
ilimitado e, portanto, sem nenhuma divisão ou ligação?
Bodhidharma:
É a própria natureza da realidade, da maneira que ela é, momento a
momento.
Depois dessa transmissão,Prajnatara pediu a Bodhidharma para que levasse a luz do Dharma até a China.
Depois de uma longa viagem de barco, ele chegou lá e se encontrou com o
imperador Wu, do reino de Liao.
Wu: Eu construí
templos e monastérios para os monges, dei dinheiro para os pobres. Quantos
méritos eu consegui?
Bodhidharma: Mérito nenhum.
Wu:
Então, o que é o ensinamento sagrado do Buddha?
Bodhidharma: É vazio
e nada tem de sagrado.
Wu: Mas afinal, quem é
você?
Bodhidharma: Não sei.
Depois disso, Bodhidharma se retirou para o norte e se instalou no monastério Shao-lin, onde se iniciaria a
luminosa linhagem chinesa do Zen.
Transmissão na China3
29. De Bodhidharma para
Hui-k’o
Hui-k’o tinha estudado as duas filosofias
chinesas, o confucionismo e o taoísmo, mas seu interesse real era pelo Dharma de
Buddha. Tornou-se monge, passou a estudar os sutras e a meditar rigorosamente.
Com a permissão do seu abade, ele viajou ao monastério Shao-lin, onde estava o
mestre Bodhidharma. Hui-k’o só foi admitido por Bodhidharma após cortar o
próprio braço, como prova de fé inabalável. Oito anos depois, ele
declarou:
Hui-k’o:
Finalmente, coloquei fim às condições.
Bodhidharma: Tal estado deve
ser equivalente à morte.
Hui-k’o: Não tem nada tem a ver com a
morte.Bodhidharma: Pode me provar isso?
Hui-k’o: Estou
claramente e continuamente desperto. Absolutamente, não há palavras adequadas
para expressar esta claridade!
Bodhidharma: Esteja certo de que tal
claridade é a própria essência da mente de todos os buddhas.
Com esta transmissão, Hui-k’o tornou-se o segundo ancestral do Ch’an, o Zen chinês.
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Fontes:
- “Os três pilares do Zen” de Philip Kapleau
- “O Zen” de Jean-Michel Varenne
- www.dharmanet.com.br
- www.zen.hpg.ig.com.br/zen.html
Textos
As Duas Entradas no Caminho
Esboço da prática
Sermão do ciclo da vida
Sermão do despertar
Sermão da grande descoberta
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